Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação: projeto para ampliar a dependência e a privatização

A ciência e tecnologia com o advento do capitalismo monopolista tem se tornado cada vez mais estratégica para a manutenção do processo reprodutivo do capital e de expansão do mercado. Através da criação de novos produtos e processos inovadores com a tecnologia aplicada à produção, o capital tem usado o conhecimento para ampliar a gama e a velocidade de circulação de mercadorias bem como o ritmo do trabalho, como meio de ampliação da exploração. O resultado é que a produção da ciência e tecnologia tem como fim o lucro e não a satisfação das necessidades humanas.

Acontece que, como dizia Einstein, “a ciência não pode criar fins” (em Por que o socialismo?), ou seja, quem o faz são os seres humanos. Mas não são fins de neutralidade, ou de desenvolvimento “auto-justificado”, mas sim interesses que refletem posições antagônicas de classe, ou no atual momento de crise civilizatória: posições que variam entre o potencial destrutivo do capital – que se encontra em uma crise estrutural – em escala global e os interesses da humanidade em sua sobrevivência. O desenvolvimento científico e tecnológico não é capaz de em si resolver os graves problemas da humanidade. Não faltam exemplos de como as grandes potências econômicas, militares e políticas o usam na destruição extensiva de biomas, genocídios em massa, manutenção do desemprego estrutural (trocando trabalho vivo por maquinário sem diminuição de jornada de trabalho), ampliação das fronteiras agrícolas voltadas ao agronegócio, transgênicos sem consequências previsíveis, entre muitos outros exemplos.

É essa a marca do Projeto de Lei 2177 – o Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em tramitação na Câmara de Deputados e no Senado Federal desde Agosto de 2012, no Governo de Dilma. Resultado de uma ampla coalizão, que inclui partidos da base aliada ao governo federal e da “oposição” (assinam a proposição deputados do PT, PSDB, PSB, PR, PDT, PMDB e PPS), a elaboração do PL levou em consideração a contribuição de Fundações de direito privado de todo o país, há décadas empenhadas em ampliar a intervenção da iniciativa privada no interior das instituições públicas. Trata-se de uma iniciativa orquestrada pelo bloco de poder dominante em nosso país – formado pelo imperialismo, monopólios e latifúndio – e que visa ser implementada como uma regulamentação geral na área, após vários testes feitos com leis parciais, especialmente a Lei de Inovação tecnológica (lei 10.973), aprovada em 2004 pelo Governo Lula.

Recurso e patrimônio público para a iniciativa privada

Incapaz de arcar com os custos da construção de uma infra-estrutura para produzir conhecimento de ponta, os monopólios nacionais e estrangeiros pretendem deixar esse ônus para o poder público, se apropriando do bônus do seu resultado. Segundo o PL, ficaria assegurado ao poder público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios, agências de fomento) a realização de cooperação envolvendo empresas privadas nacionais e internacionais e instituições públicas e privadas com fins lucrativos, além do desenvolvimento de produtos e processos inovadores em entidades de ciência e tecnologia com fins lucrativos mediante a concessão de recursos financeiros, humanos, materiais ou de infra-estrutura. Trata-se de algo novo, não discriminado explicitamente nas legislações anteriores. Os recursos públicos poderiam ainda financiar ações de empreendedorismo tecnológico, ambientes de inovação, incubadoras, parques tecnológicos, criação de centros de pesquisa em empresas nacionais e estrangeiras, além de cobrir custos com instrumentos, equipamentos, imóveis, construções, consultorias e serviços para as instituições privadas. Mas não só será permitida a transferência direta de recursos públicos para o setor privado, como se ampliará a possibilidade das instituições públicas – como as universidades, responsáveis por mais de 90% da produção científica do país – compartilharem seus laboratórios, equipamentos, materiais e instalações com empresas privadas, inclusive transnacionais.

Mas não só a estrutura é entregue ao setor privado. O PL 2177 também reforça o papel de gestão da política científica e tecnológica empreendida pelas Fundações privadas no interior das universidades e institutos, além de deliberar pela criação do suspeito “Núcleo de Inovação Tecnológica”, o qual não possui nenhum tipo de classificação ou definição de formas de escolha de seus membros de funcionamento, podendo se tornar em mais uma estrutura para burlar os mecanismos sociais de controle em prol das necessidades mercadológicas.

Outra questão séria referente à entrega do patrimônio brasileiro aos monopólios privados é o que diz respeito ao “acesso à biodiversidade”. Pelo PL, será permitido independente de autorização prévia, o acesso ao patrimônio genético e de conhecimento tradicional para fins de pesquisa. Também será permitido, mediante autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, a extração do patrimônio para fins de produção e comercialização.

Maior desigualdade entre instituições públicas

Há muito o movimento em defesa da educação tem defendido um padrão unitário de qualidade em nível nacional das instituições de ensino superior. Sabe-se que o caminho dominante tem sido no sentido inverso: o reforço da lógica desigual das instituições em nível nacional. Desse modo, com a recente expansão de matrículas no ensino superior brasileiro, algumas poucas universidades e áreas do conhecimento têm recebido o rótulo de “centro de excelência”, enquanto a grande maioria cai na lógica da certificação massiva de diplomas em um universo de ensino de baixa qualidade, uma escola de terceiro grau ou ensino pós-médio, como tem sido chamado.

Com o Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação será firmado o ensino de baixa qualidade como estrutural. Uma das razões é a mudança na lógica da carreira do docente do ensino superior. Há uma aproximação da condição do docente-pesquisador da condição de docente-empreendedor. Ficará assegurado ao docente se afastar das atividades de ensino para constituir empresa, bem como colaborar com outras entidades privadas, já que a lógica para a reposição da perda salarial dos últimos anos não estará na luta coletiva, mas na participação na comercialização dos resultados de pesquisa, bem como em consultorias privadas, prestação de serviços, etc. Mas cabe ressaltar que esse “privilégio” será para poucos: primeiro, o recebimento de verbas estará subordinado à lógica da privatização e do alcance de resultados em produtos vendáveis, o que será possível somente para as instituições ou centros de ensino com uma estrutura laboratorial já montada, adquirida com recurso público em anos de tradição em pesquisa; segundo, nem todas as áreas do conhecimento são passíveis de produção imediata de “produtos e processos inovadores”. Não é difícil de concluir que as áreas da educação, das ciências humanas, da filosofia, as licenciaturas em geral, entre outras, serão relegadas ao rol dos “primos-pobres” da produção de conhecimento. Caso esse processo se concretize, estará montada também uma profunda cisão interna na categoria de docentes: por um lado, uma ampla massa com contratos temporários, precarizados, sem possibilidade de realização de pesquisa e extensão; por outro, um número reduzido de docentes empresários, para os quais os ganhos auferidos no processo de venda do conhecimento tornam os salários fixos quase dispensáveis.

Financiamento privado, patentes e produção destrutiva

A desresponsabilização do Estado no financiamento da ciência e tecnologia é mais uma consequência previsível. Tivemos, nos 2 últimos anos, cortes no orçamento de 50 e 55 bilhões, que somente entre os anos 2010 e 2011 fizeram cair 16,2% o orçamento para a pasta de ciência e tecnologia.

Embora entre os anos de 2006 à 2011 tenha havido um crescimento real no orçamento para a área, esse permaneceu na marca de 0,27% do orçamento da União. No mesmo período, no entanto, a parte do orçamento federal destinado para pagamento de juros e amortizações da dívida cresceu de 36,7 para 45,05%. Na verdade o controle do processo produtivo na área de ciência e tecnologia está sendo entregue ao capital financeiro, já que com a crise do capital se aprofundando, será difícil manter as mesmas taxas de incentivo. Assim, aponta-se a captação de recursos privados como alternativa, através da transferência de tecnologia e do patenteamento privado de pesquisas. Nesta mesma lógica, da apropriação privada dos resultados da pesquisa permite a sua não publicização, ou seja, reforça o monopólio privado do conhecimento que, sendo aplicado à produção, é também força produtiva, o que faz dele mais um instrumento de dominação.

A pesquisa cientifica e tecnológica se torna desta maneira auto-referenciada, voltada a sua própria expansão lucrativa e acumulação de capital, onde o retorno financeiro passa a ser a própria medida na qualificação da produção de conhecimento. Temos aqui uma clara aproximação das categorias “útil” e “vendável”. É a subordinação do valor-de-uso ao valor-de-troca. A finalidade do lucro afasta a ciência e a tecnologia da satisfação das necessidades humanas, e inclusive a coloca na esteira da produção destrutiva do capital: a própria indústria da guerra se tornou um dos mais importantes polos de “inovações” e diante da necessidade de maior circulação possível de mercadorias, a pesquisa cientifica tem sido colocada a serviço da chamada “obsolescência planejada”, onde a diminuição do tempo de vida útil de bens duráveis e o desperdício crônico são vitais para a sobrevivência do modo de produção.

Organizar a luta

Trata-se de um projeto ainda em tramitação, com a comissão especial recém-formada. Alguns setores já deram a deixa de que apesar de a “desburocratização” ser a justificativa do projeto, ele ainda contém muitas “amarras”. Todavia, sobre os princípios do PL há pleno acordo. Para tirar as demais “amarras” haverá uma mobilização dos setores privatistas, razão pela qual a tramitação deve prolongar até que se apresentem emendas (alguns falam da elaboração de um projeto substitutivo). De qualquer modo, as cartas foram lançadas, e as intenções dos grupos privados são claras: desobstruir os canais que, de uma forma ou de outra, ainda vedam a completa entrega da infraestrutura pública e dos recursos públicos às necessidades do imperialismo, dos monopólios e do latifúndio para as áreas de ciência, tecnologia e inovação.

A Corrente Comunista Luiz Carlos Prestes (CCLCP) compõe o Grupo de Trabalho Nacional de Universidade Popular – criado a partir do 1° Seminário Nacional de Universidade Popular (SENUP) – que já deliberou pela produção de um material crítico sobre o assunto, em conjunto com uma campanha para que a produção do conhecimento seja direcionada às reais necessidades do povo em consonância com um projeto político que vise a ruptura com o bloco de poder dominante, abrindo caminho para a construção de uma sociedade socialista. É fundamental que seja visto a importância estratégica da questão científica e tecnológica. Se não o fosse, a classe dominante não estaria mexendo suas peças para formulação de um marco regulatório geral que atenda plenamente seus interesses.

É necessário lutar contra o PL 2177 e as várias formas que ele possa vir a assumir. A verba pública deve ser destinada à educação e pesquisa pública, revitalizando as bandeiras históricas do movimento. É uma luta de todos os trabalhadores e do povo em geral: caso ele seja aprovado, o já baixo financiamento público destinado a projetos de pesquisa, extensão e ensino que tenham por finalidade contribuir com a reforma agrária, com a habitação popular e com a mobilidade e reforma urbana, com saneamento básico, com a saúde pública e a reforma sanitária, com a educação popular e alfabetização, enfim, com todos aqueles projetos que de alguma forma representam os anseios políticos dos setores explorados e oprimidos – e que, por sua vez, representam um caminho para o acúmulo de forças e articulação entre esses setores – será uma realidade cada vez mais distante. Os projetos críticos, criadores e populares existentes terão cada vez mais dificuldade de sobreviverem, pois estarão competindo com a lógica do negócio, para o qual não foram e não devem ser criados.

Barrar essas intenções e seus projetos deverá ser a tarefa imediata. Mas não podemos parar por aí: devemos aliar essa luta – que é defensiva – a uma nova orientação programática para a ciência e tecnologia que tenha como eixo de reflexão e ação os interesses e necessidades dos setores explorados e oprimidos pelo imperialismo, monopólios e pelo latifúndio, desatando uma dinâmica social que permita a formação de um bloco de forças sociais proletárias e populares apto a edificar uma nova ordem social.

Fonte: CCLCP

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