Classe Média, meu amor

Por Fernando Evangelista.

O tempo anestesia tudo, inclusive a saudade.

Nós nos conhecemos num parque de diversões, na sala dos espelhos. Sem precisar dizer muito, sem apresentações formais, entendi que estava diante de uma possibilidade de amor.

Vivemos juntos e fomos felizes em alguns momentos, mas o convívio prolongado ofuscou o olhar e a capacidade de discernimento. Foi, porém, uma experiência suficiente para conhecê-la na intimidade, sem maquiagem, o que me torna apto a compartilhar com você como ela é.

Por favor, não pense que estou despeitado ou que este relato, coletânea de lugares-comuns, seja uma espécie de vingança. É apenas e sinceramente um desejo de entendimento. Você está me ouvindo?

Seu nome, talvez você a conheça, é Classe Média.

A Classe Média é loira. Faz dieta, apesar de magra, considera-se requintada, apesar de cuspir no prato em que comeu. Está sempre na moda e, quando encontra uma amiga, tem a impressão de estar olhando um espelho e isso lhe faz um bem danado. A Classe Média odeia quem é diferente.

A Classe Média, ainda que se considere amante do individualismo, compra o que a moda lhe manda, sorri para quem não quer, anda com quem não gosta e frequenta os lugares do momento – mesmo que no momento o local esteja lotado, a comida ruim e a cerveja quente.

A Classe Média, e que isso fique entre nós, é sexualmente fria. Talvez por causa da educação religiosa, talvez por ser refém das opiniões alheias, ela é incapaz de entender seus próprios sentimentos e desejos. Ela gosta daquilo que outros disseram para ela gostar.

A Classe Média é adestrada a compensar o vazio existencial nos shoppings, onde se sente bem e relaxada. Comprar roupas e sapatos é o ópio da Classe Média, por isso vive pendurada no cheque especial. Isso a angustia, mas não muito, porque ela acredita que, cedo ou tarde, por bem ou por mal, ela vai “chegar lá”, ela vai vencer.

A Classe Média julga as pessoas pela aparência e pelo bolso, e julga as coisas pela marca e pelo preço. Não só. Para ela, não basta ser rico, é preciso aparecer na coluna social. O verdadeiro vencedor é aquele que ostenta aquilo que tem.

A Classe Média não é preconceituosa, pelo menos em público, tanto que se questionada sobre a possibilidade de ter um filho gay, diz simplesmente: “cada um sabe de si”. Mas bem no íntimo, sozinha no quarto escuro, é provável que ela murmure, fazendo um rápido sinal da cruz: “Deus me livre”. Se você a conhece, sabe que isso é possível. Tudo é possível, como observou Machado de Assis.

A Classe Média se acha muito descolada e vivida, mas cai sempre nas mesmas cantadas e mentiras deslavadas. Ok, ok, estou sendo cruel. Serei um pouco mais complacente: a Classe Média, tão loira, não é racista, por isso é exclusivamente por “precaução” que, ao perceber um negro andando em sua direção na rua, aperta a bolsa, apressa o passo e muda de calçada.

A Classe Média se considera muito informada. Apesar de não gostar de ler, assina a revista Veja, e mesmo não sabendo ouvir, acompanha as análises econômicas na CBN. Aliás, e isso eu só notei com o passar dos anos, a Classe Média tem opinião formada sobre todo e qualquer assunto e se alguém tiver a má lembrança de contrariá-la, o ato pode ser entendido como agressão pessoal. Ela aceita tudo, menos agressão pessoal.

A Classe Média não gosta de perguntas. Ela só tem certezas. Ela não nutre qualquer tipo de dúvida sobre a humanidade porque, para ela, como também para a Veja e para alguns analistas econômicos, a humanidade não existe.

A Classe Média é aventureira. Da mesma maneira que os muçulmanos devem ir pelo menos uma vez na vida a Meca, a Classe Média pretende ir pelo menos uma vez a Miami. Depois da viagem inaugural, ela irá para a Europa com a CVC, uma espécie de Casas Bahia do turismo. Orgulhosa da disposição, conhecerá 60 cidades em 15 dias.

A Classe Média, principalmente quando volta dessas viagens, depois de bater mil fotografias de mil coisas que viu sem ver e de comprar ímã para as amigas distantes e bolsas falsificadas para as amigas íntimas, é invadida por uma fúria bíblica contra tudo o que é nacional. Como se estivesse num palanque, ela discursa sobre a nossa falta de cultura, de história e de talento, a não ser para o futebol e para a corrupção.

A Classe Média, dentro do seu carro zero quilômetro, comprado em 72 parcelas, vocifera contra a corrupção. Porém, bebe antes de dirigir, suborna policiais para evitar a multa, não respeita vaga para pessoas com deficiência e fura a fila na hora do rush. E, sim, mete o pau nos políticos de Brasília, mas continua votando no vereador que é seu conhecido, mesmo que o sujeito seja um reconhecido picareta.

A Classe Média é carente. Sociólogos, cineastas, dramaturgos e escritores têm fascinação pela pobreza e pela riqueza, mas não pelos remediados e a Classe Média se ressente pelo esquecimento. Por isso, para chamar a atenção, vez ou outra ela bate em algum artista. Dias desses, resolveu falar mal do Chico Buarque.

A Classe Média gosta do Chico e gosta sinceramente, mas não o perdoa por suas posições políticas, principalmente quando defende os movimentos sociais. Porque, para a Classe Média, movimento social é o que existe de mais perigoso, retrógado e violento no Brasil. Você está me ouvindo?

A Classe Média, apesar de tudo, considera-se legalista. Não admite a transgressão de algumas normas, mesmo que as normas sejam injustas. Socialmente, sua consciência é limpa e tranquila, ela faz sua parte – doa roupas velhas à empregada mal paga.

A Classe Média, se ouvir esta conversa, não vai entendê-la. O chapéu só serve se estiver na moda, e uma história desse tipo, é preciso reconhecer, não está. Como recomendou Ruy Castro, vou seguir o meu caminho, “flanando pelas ruas e chutando as minhas tampinhas”, sem pensar no dia em que a conheci naquele infeliz parque de diversão. O tempo anestesia tudo, inclusive a saudade.

 

Imagem tomada de: http://miguelgraham.lamula.pe

Texto no http://www.notaderodape.com.br/2011/08/classe-media-meu-amor.html

 

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