Cinema Incel: Tsai Ming Liang. Por Zaza.

 

Ilustração: Zaza

Por Zaza, para Desacato.info.

Tsai Ming Liang é um caso de “faz sempre o mesmo filme” que sempre surpreende, acompanhar a sua obra é como ver uma lâmina sendo afiada, aperfeiçoada, por mais que sua afirmação máxima tenha provavelmente vindo no seu segundo trabalho cinemático, Vive L’amour, de 1994.

As palavras mais batidas pra descrever seus temas favoritos são “alienação social”, a sofrida pelo seu muso Lee Kang-sheng em sua estreia, Rebeldes do Deus Neon, em que a fragmentação social da cidade grande gera sua grande doença, passando pelo amor e pela obsessão, pelo sexo e pela violência, como uma versão um pouco mais moderna de Os Garotos de Fengkui (Hou Hsiao Hsien – 1983), chamou atenção na cinefilia internética ocidental recentemente como um filme “aesthetics” pela sua representação quase fetichista das luzes frias da cidade e rivalidade entre motoqueiros, uma espécie de fenômeno Akira. Tratamento injusto para com o filminho.

Todas as ferramentas que percorrerão a filmografia do autor estão aqui. É um filme sobre necessidades insupridas, um mundo que curva toda a sua força de produção pra não acomodar seus mantedores. Os humanos com suas complexidades, carências e pirâmides de necessidades são reduzidos a necessidades biológicas, e essas são mal nutridas.

Se em História de Taipei, de Yang, o ser humano é mostrado como esse ser material indissociável do material, Liang reconhece suas sensibilidades mais emotivas como alienadas pela mesmíssima materialidade capital.

Apesar de competente, o filme ainda falha em gravitar sobre a maior marca registrada de Liang que é a sua maneira de usar o espaço como alma do social. Uma herança forte da obra arquitetônica de Yang. Em Liang, lanchonetes cobertas de plástico colorido brilhante que esconde a gordura e o trabalho são palco pra tração do erotismo urbano, no sentido Anne Carsoniano da palavra, da busca incessante pelas gotas de prazer superficial entre a rigidez da casa dos pais e do curso suplementar. É onde Ah-Kuei, dividida entre 3 homens, escolhe seu favorito entre dois amigos enquanto o proto-incel Hsiao Kang observa de longe assombrado por essa realidade hedonista que existe tão próxima e não é a dele. Seja sexo, dinheiro, futuro ou um “lifestyle” completo, todas as almas em Tsai Ming Liang procuram alguma coisa. Algo que falta e que nunca é suficiente.

“Me busque depois do trabalho, não traga Ah-ping junto”

Em Vive o estilo do artista já se encontra mais requintado: se em Rebeldes os protagonistas do filme eram a convivência social urbana e os protagonistas da cidade eram humanos, aqui os protagonistas do filme definitivamente deixam de tentar ser os humanos e se tornam a cidade, os corredores por onde eles passam e cada tijolo que define os seus caminhos, como o labirinto de ratos gigante onde cada um busca por sua própria dose de prazer, mais especificamente, um apartamento. Acompanhamos as vidas e os silêncios de 3 criaturas que perambulam pela mesma metrópole indiferente de História de Taipei, uma cidade onde toda humanidade é submetida à servidão ao capital, e o que resta nos tempos de folga é uma busca quase robótica por migalhas de serotonina, prazeres fugazes e imediatos como o sexo sem sentido que permeia toda a obra do diretor, se torna uma necessidade fisiobiológica, como todo o resto se torna nessa Taipei em crise. Hsiao Kang, May Lin e Ah-jung dividem um apartamento vazio como palco de suas escapadas do vóide social sem saberem. Ocupam sem se tocarem o mesmo espaço, proibidos de se conhecerem mesmo que tenham pulsões inarrasáveis por isso. Existe uma parede invisível do social pós-moderno entre cada ser humano desses filmes, cada um deles submisso ao cativeiro da cada vez maior distância. O “o inferno são os outros” de Sartre ou o dilema do porco-espinho schopenhauriano, o filme zomba dessas teorias, denuncia o tal inferno e o tal dilema não na natureza da coletividade humana mas em uma burocracia artificial entre esses outros porcos-espinhos, que não os choca um contra os outros, mas os distancia ao tornar esse choque doloroso de uma forma que não precisava ser, como o jeito que é impossível dizer um ao outro que todos se aproveitam de um apartamento vazio por mais que todos o façam.

Se no texto sobre História de Taipei disse que existem filmes sobre o capitalismo e SOBRE o capitalismo, sendo os “sobre” apenas retratos de suas consequências desterritorializadas, Liang prova que existem ainda os filmes SOBRE as consequências do capitalismo.

Em 2003, ainda afiando a sua lâmina da incomunicabilidade, o diretor lança Adeus, Taberna do Dragão. Se em Vive o protagonista já não era mais humano, aqui o protagonismo some, como em um Eisenstein sem egos. O palco que toma a dianteira então, sendo mesmo um filme pesadamente teatral.

Em Adeus vagamos lenta e silenciosamente pelos corredores decadentes de um cinema na véspera do fechamento, somos voyeurs (outra descrição consagrada do Liangismo) de todo o microcosmo que existe na frente do telão. Enquanto Vive denotava a impossibilidade do contato, Adeus mostra mais uma certa inevitabilidade do choque na convivência coletiva, e mesmo em suas brechas um abismo de incomunicabilidade. Um retrato da vida acontecendo e pulsando como uma erva daninha dentro de um cinema fragilizado. Filme extremamente poético, onde tudo parece guiar a um fracasso e desconforto manipulado pelas regras arbitrarias da nossa sociabilidade.

O que define as interações aqui é o ato de assistir um filme, o local onde se assiste um filme, o trabalho por trás da exibição desse filme. É o ponto gravitacional de toda uma constelação de indivíduos ativos. É o espaço, físico ou não.

Em 2020, depois de mais uma onda de filmes experimentais como a série do andarilho, Liang retorna ao seu modelo tradicional sem deixar pra trás sua fixação pela transgressão da narrativa, mas atingido pela velhice. Dessa vez, pela transgressão de si mesmo. Acompanhando um já envelhecido Kang, Days, a mais recente afiada na lâmina de Liang, começa com uma proporção extremamente intimista, com planos centrados no corpo e espaço quase nulo pro ambiente, com eventuais brechas pro universo que ele habita. Mas o filme não é sobre o homem e seu espaço. Se em Rebeldes o protagonista era humano por imaturidade, aqui é por crise de meia idade. Alienado do mundo que cresce nas suas costas pela anestesia do tempo, o Kang de Days tem um acesso insatisfatório ao prazer que apenas observava à distância em 1991, mas ainda sofre pela presença quase palpável da parede do social, que escorre quase que por mágica na cena da caixa de música: Liang não faz muito esforço, ela existe naturalmente.

Criando o cúmulo lógico de toda a saga de Kang ao se autotransgredir-se a si mesmo.

Em todos os seus filmes Liang retrata o peso esmagador do capital. Figuras etéreas deixando de importar, suas necessidades subtraídas e deixadas de lado perto da protagonista dos filmes, que sempre ocupa o centro do palco: a cidade, a China secundária de Taiwan.

Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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