Cinco minutos de apologia ao ódio de classe

Por Samuel Lima, para Desacato.info.

A partida de Fidel Castro, o maior ícone das lutas populares do século 20, aos 90 anos, na madrugada de 26 de novembro, expôs uma vez mais e de forma vertical, as opções que a imprensa monopolista nativa vem fazendo: da desconstrução do jornalismo, como forma social de conhecimento, ao desprezo profundo pelo contexto histórico e a inteligência dos/as leitores e leitoras.

Observo e reflito aqui sobre três episódios: a cobertura diametralmente oposta d’O Estado de S. Paulo (que fez jornalismo em sua versão impressa, assumindo com sobriedade sua posição editorial) e da Folha de S. Paulo (que se ateve ao discurso ideológico à direita, raso) até o extremo gesto de apologia ao ódio, com o qual brindou sua audiência de milhões o Jornal Nacional (TV Globo, ed. 26/11/2016).

Ausente do poder em Cuba, há pouco mais de 10 anos, Fidel se retirou definitivamente da vida política no começo de 2008, com graves problemas de saúde. Seu irmão Raul Castro assumiu a presidência do país, conduzindo um projeto de transição que teve como marca a tentativa de costurar, com Barack Obama, a partir de 2014, a retomada das relações diplomáticas que poderia culminar com o fim do embargo comercial dos EUA em relação à Ilha, que já dura mais de 50 anos. Este último passo foi barrado pelo Congresso estadunidense, de maioria Republicana.

Apologia ao ódio

O repórter Alan Severiano foi protagonista de uma das páginas mais lamentáveis do jornalismo brasileiro nesta cobertura errática sobre a morte de Fidel Castro. Durante cinco minutos, uma eternidade em televisão, ele desfiou toda sorte de clichês e assumiu, num texto claramente editorializado, como se fora uma espécie de “mestre de cerimônia” da festa dos cubanos de Little Havana, em Miami (EUA), comemorando a morte de Fidel.

  Nestes tempos de intolerância e ódio, alimentados e retroalimentados pelos sistemas de comunicação em rede que se espraiam a partir dos meios de comunicação de massa às redes sociais (internet), o posicionamento de um meio de comunicação que fala com milhões, como é o caso da TV Globo (e do principal telejornal do país) ganha relevância absoluta.

 Sem nenhuma apuração que não fosse “abrir seu microfone” para toda sorte de “bílis ideológica” dos exilados, Severiano parecia ler um texto pronto: “No bairro de Little Havana, em Miami, no estado americano da Flórida, o clima é de comemoração pela morte de Fidel Castro, com direito a muita música e muito charuto cubano. A equipe do JN conversou com muitos cubanos e nenhum deles lamenta a morte de Fidel. Isso é compreensível, porque os cubanos que vivem em Miami são descontentes com os rumos que o país tomou ao abraçar o comunismo anos depois da revolução. São cubanos críticos ferozes de Fidel, que tiveram a família separada ou foram perseguidos e acabaram indo para Little Havana, o principal bairro de exilados cubanos do mundo. Este ano, a maioria dos cubanos que vivem em Miami apoiou o republicano Donald Trump” (Fonte: http://migre.me/vBJT1).

Comprou como lhe foi contada cada história, dando-lhes o verniz de verdade plena e, especialmente, destacando o caráter de júbilo ante a morte de um líder tratado pelos principais veículos de mídia do mundo com respeito e sobriedade. Severiano não demonstrou a menor preocupação com equilíbrio. Tampouco levou em conta o sentimento do povo cubano captado momentos antes de ele entrar, ao vivo, pela jornalista Larissa Schmidt, da mesma TV Globo, que comentava e resumia, direto de Havana, numa palavra o clima reinante: “consternação”.

Para além das opções ideológicas do repórter, há sem a menor sombra de dúvida, uma opção hierárquica: a empresa escolheu uma forma torpe de passar seu recado sobre Fidel Castro e a experiência histórica liderada por ele, nestes últimos 50 e poucos anos. O material de Severiano foi o mais longo publicado, ocupando praticamente todo o bloco de abertura desta edição do JN (26/11/2016).

            Numa narrativa que buscasse, minimamente, algum tipo de equilíbrio e pluralismo, tal reportagem não poderia vir senão acompanhada da repercussão mundial, entre líderes políticos e religiosos. É o caso, por exemplo, do telegrama assinado pelo Papa Francisco: “Ao receber a triste notícia do falecimento de seu querido irmão, o excelentíssimo senhor Fidel Alejandro Castro Ruz, ex-presidente do Conselho de Estado e do governo da República de Cuba, expresso meus sentimentos de pesar a vossa excelência. Ao mesmo tempo, ofereço preces ao Senhor por seu descanso e confio todo o povo cubano à materna intercessão de Nossa Senhora da Caridade do Cobre, padroeira desse país”. O Papa estendeu seus pêsames “aos demais parentes do morto dignitário, assim como ao governo e ao povo dessa amada nação”.

Folha: vanguarda do atraso

Os portais online dos principais meios de comunicação, em escala mundial, trouxeram a notícia da morte do líder da Revolução Cubana, com sobriedade e respeito. Não obstante suas posições editoriais, divergentes em relação àquilo que Fidel representou em vida, esses veículos de informação buscaram uma síntese que informasse seus leitores, sem mais. Já a Folha de S. Paulo nadou contra a corrente e reafirmou sua trajetória de vanguarda do atraso.

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Vejamos as manchetes de alguns dos principais portais jornalísticos do mundo:

BBC: “Ex-presidente cubano morre.”

NYT: “Líder cubano morre.”

The Telegraph: “Ícone revolucionário cubano morre.”

The Independent: “Líder revolucionário cubano morre.”

Reuters: “Líder da Revolução Cubana morre.”

The Guardian: “Líder revolucionário cubano morre.”

Die Zeit: “Líder revolucionário cubano morre.”

Le Figaro: “Pai da Revolução cubana morre.”

Time Magazine: “Ex-presidente cubano morre.”

Deutsche Welle: “Herói cubano morre.”

O Estado de S. Paulo: “Fidel Castro morre aos 90 anos”

(…)

Folha de São Paulo: “Ditador cubano morre.”

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No blog “Tijolaço”, o jornalista Fernando Brito fez a comparação mais esclarecedora entre as manchetes da Folha e do The New York Times: Folha (edição impressa São Paulo): “Ditador cubano Fidel Castro morre aos 90”; NY Times: “Fidel Castro, líder cubano que desafiou os EUA, morre aos 90” (veja a imagem das capas e tire suas conclusões, caríssimo/a leitor/a). Brito resume sarcástico: “Quem nasceu para Folha nunca chega a NY Times” (Fonte: http://migre.me/vBKPO). E indaga aos editores da Folha: “Será que acham que os jornalistas do NYT são um bando de castristas infiltrados na redação?”. A meu juízo, fizeram jornalismo, no contexto histórico devido. Apenas isso.

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O seu principal concorrente impresso, O Estado de S. Paulo, fez, a meu modesto juízo, uma edição histórica no dia 27 de novembro de 2016. Uma imagem de Castro, em preto e branco, sorvendo um charuto, ocupa 75% da Capa sob a manchete “O último líder da Guerra Fria”. O texto deixa claro seu posicionamento editorial (“o líder revolucionário que depois se tornou ditador”), mas busca se amparar nas reações de Obama, Lula, FHC, Papa Francisco e Putin entre outros.

O Estadão brindou seus leitores e assinantes com um Caderno Especial com seis páginas sob a cartola “Fidel Castro – 1926-2016), cuja Capa é talvez a maior homenagem que tive conhecimento (e acesso) feita por um veículo da mídia monopolista brasileira: “Aos 90 anos, morre o comandante” – sobre uma imagem de perfil, do tipo sépia, que ocupa 90% da mancha gráfica.

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Caderno especial do Estadão impresso

O conteúdo trata o ex-presidente cubano com respeito e civilidade, considerando sua estatura na história política (“ícone do século XX”). Um texto de Frei Betto, escrito brasileiro que publicou “Fidel e a religião”, obra que vendeu 1,3 milhão de exemplares só em Cuba e acabou traduzido em 23 idiomas (32 países), revela um pouco da personagem e sua relação com a religiosidade. O correspondente internacional Lourival Sant’Anna, um dos maiores nomes do jornalismo brasileiro na área, reflete sobre “Cuba após o líder”. O caderno traz ainda um pertinente artigo de John Kavulich (“As relações da ilha com Trump durante período pós-Castro”), que vem a ser o presidente do Conselho Econômico e Comercial EUA-Cuba. Enfim, considero que o Estadão tratou do assunto com a envergadura que esperamos sempre do jornalismo, com equilíbrio, qualidade, ética e pluralidade.

Surpreendentemente, no entanto, se o distinto/a leitor/a procurar o acervo digital d’O Estadão não mais encontrará o Caderno – Especial Fidel, tal como o descrevi acima. A Capa foi substituída por outra e o conteúdo alterado e editorializado, expandido para 8 páginas (com um infográfico na página X3 sob o título “O nascimento de um ditador”). Entre um e outro momento, certamente se impôs o poder de mando da direção do jornal, enviesando lamentavelmente a cobertura.

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Personagem do século XX

O jornalista Rodrigo Vianna escreveu um pungente texto sobre a partida de Fidel Castro (“Um sorriso para o líder da independência da América Latina”), no qual destaca em perfeita síntese: “Ninguém pense que a lanterna de Fidel iluminava um caminho que apontava para o socialismo apenas. O legado de Fidel, a meu ver, é outro. É o legado de que podemos ser independentes, de que não nascemos para ser colônias agrícolas dos Estados Unidos” (Fonte: http://migre.me/vBLr9). E acrescenta: “Passados quase 60 anos da Revolução que significou a verdadeira independência cubana, é impossível ser de esquerda na América Latina sem ser nacionalista”.

A reflexão proposta por Vianna vai na raiz da História, com equilíbrio político e senso crítico apurado: “Não estou entre os que fazem a defesa unilateral do governo cubano. Mas é preciso compreender a história de Cuba, plantada a menos de cem milhas do Império, para entender a façanha da Revolução de 1959. Fidel não foi santo. Não deve ser tratado como um semi-deus. Foi apenas um (grandioso) líder que soube ler a realidade e lutar para modificá-la. Sem concessões. Esse é o legado do gigante morto aos 90 anos” (Fonte: idem).

O saudoso jornalista e escritor Eduardo Galeano nos legou, em sua obra “Espelhos, uma história quase universal”, uma brilhante crônica sobre a figura ímpar de Fidel Alejandro Castro Ruz. Escreveu Galeano: “E seus inimigos não dizem que apesar de todos os pesares, das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida, mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta” (Fonte: http://migre.me/vBLDM).

E arremata: “E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha”.

É impossível falar da história política da segunda metade do século XX sem mencionar a importância de Fidel Castro e da Revolução Cubana, qualquer que seja a abordagem teórica ou política. Ou como diria Rodrigo Vianna: “Fidel Castro não precisou sair da vida pra entrar na História. Ele já a havia escrito: com os fuzis e a caneta. Com balas e palavras”.

A tristeza do povo cubano, partícipe e protagonista desta longa história de lutas, que está apenas começando, ecoa por aqui, ao Sul do Equador, nas terras cálidas e generosas de Santa Catarina…

*Professor do Departamento de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC; pesquisador do objETHOS e do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC).

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