Chile: o governo de Bachelet e as alternativas

libres del sur chile

Por Franck Gaudichaud.

O espectro das lutas

O novo gabinete da presidenta Bachelet está formado e confirma: este governo será de caráter social liberal ou bem mais “progressista neoliberal”, com algumas reformas modernizadoras, tentando canalizar e domesticar as ruas. Porém, fundamentalmente, será a continuidade do modelo imposto de sangue e de fogo há 40 anos pelo golpe de Estado. A menos que depois do segundo turno e de um reajuste no sistema institucional, um terceiro turno – social e popular – ponha novamente as rupturas na ordem do dia.

Entre tudo isso, quisemos conversar com alguns militantes da esquerda anticapitalista chilena: esta conversa não pretende ser exaustiva, e menos ainda objetiva. Este debate será seguido de outras entrevistas com outros coletivos e tendências. Trata-se somente de iniciar um diálogo plural para esboçar algumas perspectivas e possíveis cenários, provocando o debate político no âmbito político-social ainda fragmentado, mas repleto de potencialidades disruptivas da ordem hegemônica.

Balanço crítico da eleição de Bachelet e as perspectivas anticapitalistas

Entrevista com Marco Álvarez, militante do Libres del Sur (Livres do Sul).

Leia aqui entrevista com Roxana Miranda, ex-candidata à Presidência pelo Partido Igualdad.

Leia aqui entrevista com Sebastián Farfán Salinas, encarregado nacional da União Nacional Estudantil (UNE) chilena.

 
Pode apresentar em poucas palavras o Libres del Sur e a sua história?
 
O Movimento Libres del Sur é uma organização que surge publicamente na primeira semana de abril de 2012. É uma ferramenta anticapitalista em construção, que tem como horizonte a revolução socialista. Em seu curto trajeto, abraçou também a luta ecossocialista, feminista e internacionalista. Seu domicílio permanente é no interior das trincheiras do poder popular, impulsionando a “outra educação”, para ir forjando desde baixo uma nova sociedade. Em menos de dois anos, o Libres del Sur cresceu em nível nacional, estando presente em grande parte das regiões do país. Hoje caminha rumo a seu primeiro congresso nacional.

Como compreender a importância da abstenção eleitoral e como defender, do ponto de vista da esquerda, o que você chamou de “abstenção barulhenta”?
 
Os altos níveis de abstenção nas eleições de 2012 e 2013 são mais uma expressão da crise de legitimidade do atual modelo e sua democracia liberal. Mais de 56% das(os) chilenas(os) decidiram não participar das últimas eleições, fazendo parte de uma abstenção passiva e silenciosa, muito difícil de interpretar, para além do descontentamento claro que a sociedade tem em relação à nossa desacreditada classe política nacional.

Nesse cenário, eu cunhei a “abstenção barulhenta” em momentos muito específicos. As duas ocasiões em que falei da “abstenção barulhenta” foram na antessala das eleições primárias de 30 de junho de 2013 e no segundo turno presidencial, em 15 de dezembro de 2013. O denominador comum de ambas as eleições foi a participação exclusiva das duas caras do duopólio político chileno: a direita e a “nueva mayoría” (antigo Concertación).

Portanto, a abstenção em si é um mero reflexo da crise do Chile atual, e que ao final do dia se converte em mais um dado estatístico eleitoral. Enquanto isso, a convocação a uma “abstenção barulhenta” nas instâncias em que só participam as candidaturas que sustentam o modelo neoliberal é um ato político de proposta-protesto. Significa não esperar os resultados da “festa democrática neoliberal” em casa, mas ocupar essas instâncias para incrementar os níveis de ilegitimidade da nossa “democracia” por meio das ações diretas barulhentas e midiáticas.

Como analisar a integração do PC à Nueva Mayoría e seus efeitos políticos a curto e longo prazo?
 
A integração da organização política mais longeva do Chile à “nueva mayoría” pode ser analisada sob três aspectos. Um é a história. Em diferentes momentos da história, os comunistas chilenos fizeram parte de coalizões amplas, dividindo espaço com setores localizados fora das esquerdas. Isso responde a sua clássica política de “revolução democrática burguesa” e “etapista”. O segundo é a “solução pragmática” que eles deram ao seu ostracismo político-institucional durante 36 anos. Para os comunistas, é fundamental a ação parlamentar, então apostaram em negociar com a Concertación de 2009 e com a Nueva Mayoría de 2013 para ter lugar assegurado no parlamento – hoje eles têm seis deputados no congresso. O terceiro é a afinidade que eles têm com a “ofertona” progressista programática do novo governo de Bachelet, que se molda bastante a seu estilo conservador de esquerda.

O PC chileno, em sua política histórica de colaboracionismo, sempre saiu afastado dos processos. Seu pragmatismo político conferiu a ele um grande desprestígio no mundo social e sua recente decisão de participar do gabinete do governo neoliberal de Michelle Bachelet o impede de fazer parte das lutas populares e cidadãs que vêm pela frente, sendo destinado a ser o pelo do rabo da Nueva Mayoría. Pelo do rabo inserido em um aparato estatal bastante lucrativo.

A curto prazo, seus efeitos têm sido abandonar um espaço dentro da esquerda nas últimas eleições. Outro, como já mencionei, foi o desprestígio dentro do mundo social, tendo como principal exemplo o fato de as juventudes comunistas terem perdido a totalidade das federações estudantis que tinham em 2011. O efeito mais importante, a meu ver, é que a integração do PC ao novo governo lhe tirou o monopólio da esquerda e se tornaram visíveis com maior claridade as alternativas anticapitalistas.

Seus efeitos a longo prazo dependerão de suas ações no próximo governo de Bachelet. O que é certo é que sua virada à direita, quando era fundamental bifurcar à esquerda, trará consequências negativas dentro dos setores que se gabam representar.

Quais são as perspectivas para a reorganização de uma esquerda anticapitalista ampla no Chile, quando parece prevalecer a fragmentação e a marginalidade?

A reconstrução do movimento popular e a construção de alternativas anticapitalistas sérias são o grande desafio das esquerdas comprometidas com transformações radicais para o Chile. Esse desafio não é fácil, entendendo o nível de fragmentação e desconfianças existente no interior das esquerdas chilenas. No caso particular da esquerda anticapitalista, a isso se soma a transmissão de desavenças de geração a geração entre os matizes políticos culturais e no interior desses mesmos.

As perspectivas devem girar em torno de encontrar os pontos de convergência para articular as lutas multissetoriais. Quanto mais as organizações e a militância de esquerda anticapitalista se encontrar, existirão mais possibilidades de superar a fragmentação existente em nosso setor. Essa unidade deve ser forjada em tempos não eleitorais, a partir de lutas concretas. As confianças políticas encontrarão aí o espaço ideal para forjar maiores níveis de laços.

Outra grande tarefa fundamental no interior da esquerda anticapitalista é fomentar o debate teórico entre as organizações e seus militantes. Um debate fraterno em torno de questões estratégicas. Um debate de ideias, carente nas últimas duas décadas. Um debate que abra as possibilidades de deliberar coletivamente no futuro.

A fragmentação e a marginalidade política são herança das esquerdas do século XX. A grande tarefa é construir uma esquerda anticapitalista para o século XXI, com vocação de unidade na diversidade, com vocação de maiorias em sua convocatória e com vocação de poder real – não apenas discursivo, mas inteligente e sedento por derrotar o capitalismo e seus mantenedores.

Tradução de Daniella Cambaúva.

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 Leia mais: Chile: o movimento pela moradia e as convergências vindas de baixo

 Os desafios do movimento estudantil chileno

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Chile-o-governo-de-Bachelet-as-alternativas-e-o-espectro-das-lutas-futuras/6/30260

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