Chapecó/SC: O “FORA TEMER” que incomodou alguns durante a formatura

Por Rafael Fernando Lewer. 

O texto foi lido durante a formatura/colação de grau no último sábado, dia 29, em Chapecó/SC. Nas palavras de Rafael Fernando Lewer: “Quando li meu discurso durante a cerimônia não tinha clareza do impacto que causaria. Ainda não tenho certeza do que causou e se causou. Muito além do apoio dos convidados presentes, de professores e dos formandos, e também resistência de outros que argumentavam não ser o espaço para aquele discurso, do que obviamente discordo, algo me deixou muito reflexivo. O fato de muitos me parabenizarem, dizerem-se orgulhosos e representados pelas minhas palavras refletem a necessidade de quebrarmos protocolos e fazermos o enfrentamento em espaços burocratizados e elitistas como a universidade. Percebi que a forma como tudo aconteceu no dia da formatura, os gritos, os aplausos, as vaias, o espanto e o desconforto de alguns demonstram como nossa sociedade precisa avançar muito, pois temos uma massa alienada que ainda não aceita e/ou não consegue olhar para a realidade como ela é. Mas eu os entendo, a realidade é dolorida, é pobre, é negra, é indígena, é camponesa, é deficiente, é imigrante, é feminina, é gay, é trans, é excluído/a, e não pertence a beleza real da sociedade branca, machista, hétero, cristã, classe média alta. Meu desejo é que eu não tenha sido o último, mas que muitos outros formandos e formandas ousem e comemorem sua conclusão de graduação reconhecendo suas raízes e lutando por aqueles que ainda não entraram na universidade”.

O texto, na íntegra: 

Boa noite a todas e a todos
Primeiramente é preciso dizer: FORA TEMER!

Por que dizer Fora Temer neste dia é tão importante? E por que, possivelmente, algumas pessoas se sentem incomodadas mesmo conhecendo o contexto histórico dos que hoje se formam?

Para entendermos a importância de gritarmos FORA TEMER hoje e sempre que tivermos a oportunidade, é preciso conhecermos a história de nosso país e de nossa América Latina em seu âmbito social, econômico, cultural e político abrangendo os contextos local, nacional e internacional de forma dinâmica, pois tudo isso resultou no dia de hoje.

Como todos e todas sabemos, já se passou meio milênio desde que nossos antepassados invadiram este território, saquearam e assassinaram populações inteiras, e o pior disso tudo é que essa ainda é a nossa realidade, porém maquiada. Mudaram-se apenas os métodos e os disfarces legais.

Povos esses considerados sem alma pelos soberanos cristãos. Considerados selvagens pelos ditos civilizados europeus, povos indígenas espalhados por toda a América, que de seus milhões restaram apenas alguns milhares sob proteção do Estado, vivem hoje em condição de miserabilidade e em contínua resistência e luta para poder viver e manter seus costumes.

Hoje eles não são mais vistos como selvagens. O cidadão de bem, trabalhador, branco, os reconhecem apenas como vagabundos sustentados pelo Estado. E não para por aí, vai mais além. O cidadão de bem, trabalhador, branco, do sul, que xenofobicamente diz sustentar o Brasil, ainda com a sua ignorância forjada pelas matérias da mídia burguesa golpista, diz que lugar de índio é no mato, preferencialmente na Amazônia, pelados, caçando, pescando.

Entretanto, se não bastasse assassinar os povos nativos, roubar suas terras, e, autoritariamente catequiza-los como única forma de permitir que vivessem reconhecidos como gentes, os invasores deste território tiveram a audácia de escravizar outros povos de outro continente em prol do enriquecimento de certos reis e imperadores.

Em prol do enriquecimento desses que se consideraram raças superiores, indígenas e negros tiveram suas vidas e suas liberdades roubadas, seus corpos corrompidos pelo trabalho escravo e por genitálias invasoras que geraram filhos bastardos, fruto de estupro, que a Globo sempre romantiza em suas novelas mostrando o branco apadrinhando.

O sistema escravocrata brasileiro ainda faz parte de nossa história recente. As feridas permanecem abertas e doem, muitas vezes sangram, especialmente nas favelas e periferias onde toda essa “pretaiada”, como pejorativamente são chamados aqui no sul, já sem serventia após abolição da escravatura, foram jogados para dar lugar a novos povos a serem explorados pelo sistema capitalista que se introduzia no Brasil.

E com isso temos um novo marco de exploração no país, através das populações famintas e sem terras de alguns países da Europa, como italianos, alemães, poloneses, e tantos outros povos miseráveis que chutados por suas nações migraram para cá em busca de melhores condições de vida, o que não nos permite compreender como seus descendentes, com exceções, é claro, conseguem tratar tão mal, e com tanto preconceito e racismo nossos irmãos haitianos e senegaleses que também encontraram aqui uma alternativa de vida melhor, mesmo que as condições de trabalho sejam muito precárias.

Ao final do século XIX e início do XX, quando as terras do RS não foram mais suficientes, famílias inteiras migraram para esta região onde a UFFS Chapecó se encontra. O governo concedeu estas terras a colonizadoras que a venderam como terras vazias, contratando outros bandidos para limpar essa região dos indígenas restantes. O governo nunca reconheceu as populações que aqui viviam. Taparam os olhos e financiaram o massacre de milhares de caboclos e indígenas para que esta região pudesse ser colonizada por “gente de bem” e “trabalhadora”.

Palco de uma das batalhas mais sangrentas de nossa história, a Guerra do Contestado condicionou famílias caboclas à miséria, ao mesmo tempo em que o governo trazia famílias pobres descentes de europeus para desenvolver a agricultura local, escravizando-as através dos processos de integração com as grandes agroindústrias que aqui se instalaram. Aos caboclos, remanescentes do massacre, refugiados e sem alternativa, restaram os piores trabalhos erguendo essas cidades, sem poderem usufruí-las.

A partir do processo de industrialização no Brasil as cidades cresceram e incharam a partir do alto êxodo rural, e hoje podemos medir o nível de desenvolvimento através do tamanho de suas favelas. O capitalismo brasileiro se fortaleceu e se consolidou. Direitos foram criados e monopolizados por elites, e as instituições militares sempre sendo utilizadas para defender a propriedade privada dos ricos.

Desde o Regime Militar, ditadura sangrenta que perseguiu e assassinou milhares de pessoas pelo Brasil e por toda a América Latina em favor dos interesses do capital, nosso país passou a ser vendido para multinacionais. Depois de séculos saqueando nossas riquezas, o que sobrou começou a ser vendido durante esse período. Os militares matavam o povo, e davam de comer à burguesia, o que não é diferente de hoje quando fazem limpeza étnica nos centros urbanos e favelas.

Com toda essa história nosso Brasil ficou conhecido como um país rico, pois todo nosso minério foi desenterrado e saqueado, nossas florestas, após derrubadas e queimadas, se tornaram férteis para grandes lavouras de monoculturas e criação de gado até se transformarem em grandes desertos. Formamos um povo brasileiro que nos orgulhamos em dizer que somos miscigenados, mas esquecemos a que preço isso foi possível. Nos esquecemos que a mistura não se deu simplesmente pelo amor como retratado nos cinemas, mas pelo senhor da Casa Grande estuprando suas escravas e mulheres indígenas.

Além disso, nossa história também escondeu por muito tempo outros grupos que foram marginalizados e massacrados e que continuam sendo ignoradas pela mídia burguesa golpista. Sabemos e vemos cotidianamente crianças sendo ensinadas pelos seus pais a serem homens ou mulheres de forma estereotipadas. A violência que isso gera é enorme e é sistêmica. Nossa cultura nos ensina e nos educa dentro de um modelo social que é machista, que é hétero, que é branco, cristão, urbano, que é intolerante com a diversidade, que é necessário para a manutenção do poder da elite golpista que governa nosso país.

Formamos um país que estabeleceu uma hierarquia racial, de gênero, social, regional.

O resultado disso é a violência doméstica praticada contra mulheres, a desigualdade salarial e de jornada de trabalho estendida para o lar que as mulheres são submetidas. O alto índice de assassinatos de homossexuais, travestis e transexuais no Brasil motivados por discursos de ódio disseminados pela mídia burguesa golpista. O trabalho infantil motivado pela desigualdade social alarmante de nosso país como uma necessidade sobrevivência das famílias. Pessoas deficientes que não conseguem acessar espaços públicos e postos de trabalho por serem sempre esquecidas e terem sua cidadania negligenciada.

Mesmo com a redemocratização do país, com a criação da constituição federal de 1988 reconhecida como a mais progressista do mundo, não foi suficiente para garantir que o povo fosse prioridade do Estado, quando o povo começou a ser parte da agenda política, ter comida na mesa, emprego e acessar as universidades, presenciamos no ano de 2016 um golpe parlamentar orquestrado por elites corruptas que derrubaram uma presidenta eleita democraticamente, mostrando que para eles o lugar do negro é na senzala, do indígena é a sete palmos abaixo da terra, do camponês é perca de suas terras, dos LGBTS é a insegurança nas ruas e em seus lares, dos trabalhadores em geral é salário mínimo, mínimo, sem aposentadoria, enfim, que o lugar do povo é na base da pirâmide, sem direitos, vivendo e morrendo produzindo riqueza para a elite burguesa de nosso país.

No entanto, a mídia burguesa golpista insiste em nos mostrar que somos brasileiros e que não devemos nunca desistir, mostrando exceções como se fossem regras, insinuando que só não trabalha quem não quer, só quem não estuda é quem não quer, só não vence na vida quem não quer. Se esse for o caso, então mais de 90% dos brasileiros não fazem parte da elite burguesa por não se esforçarem o bastante, por não serem boas o bastante.

É muito comum em um discurso de formatura o orador relembrar com louvor todas as dificuldades individuais que o grupo de formandos compartilhou durante sua graduação. É comum transformar este dia em um momento de reconhecimento de todo o sofrimento individual que os formandos passaram para concluir sua graduação, fortalecendo a ideia de que tudo é possível desde que se tenha força de vontade. Isso é meritocracia. E sinto dizer, mas ela não é real.

A meritocracia não passa de uma ferramenta de manutenção da pobreza através da falsa ilusão de que todos temos direitos iguais, e, portanto, que o fracasso e o sucesso são da responsabilidade de cada um, isentando o Estado de garantir as condições necessárias para seu povo ter emprego, ter acesso à saúde, ao lazer, a educação. A meritocracia tanto não é real que durante todos esses mais de 500 anos tivemos diferentes frentes populares lutando contra o sistema para garantir dignidade à vida de seus povos.

Portanto, para compreendermos a dimensão do que este ato solene representa, precisamos primeiro ter claro que todos e todas nós, que hoje concluímos nossa graduação, não fomos de forma alguma privilegiados, pois o acesso ao ensino superior sempre foi um privilégio exclusivo das elites e da burguesia de nosso país. Para que nós pudéssemos entrar em uma universidade foi necessária muita luta.

Todos precisamos compreender que para nós “o hoje” é resultado de um longo processo histórico de luta de diversos movimentos e organizações sociais populares que reivindicaram esta universidade, e que essa fosse pública, popular e de qualidade. E que atendesse prioritariamente as populações que tiveram esse direito negado.

Assim, através de enfrentamento e lutas de diferentes frentes populares, a partir dos mais variados grupos identitários, sendo trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, negros e negras, indígenas, mulheres, LGBTQs, podemos finalmente desfrutar de uma pequena parte das vagas em universidades públicas deste país.

A UFFS foi conquistada e construída com muito suor dessas pessoas. Ela nasceu a partir das políticas do REUNI que visavam a interiorização das universidades no Brasil para regiões desassistidas por esse serviço. Porém, nossa UFFS foi a primeira universidade do país a ser conquistada pela mobilização popular.

Portanto, nós agradecemos. Agradecemos por terem dado a oportunidade de sermos, em nossa maioria, a primeira pessoa de nossas famílias a chegar ao ensino superior e concluí-lo, rompendo um ciclo histórico de baixa escolaridade e de pobreza.

Vocês, lutadores e lutadoras, nos deram a oportunidade de mostrar à sociedade que o filho e filha do agricultor e da agricultora, da faxineira, do pedreiro, da vendedora e do vendedor, que os filhos e filhas de qualquer família de trabalhadores que sustentam este país também podem fazer pesquisa, também podem fazer extensão, que também podem aprender e ensinar.

A nós, formandos e formandas, cabe o mérito acadêmico, de dedicação e fazer justiça aos objetivos sob os quais essa universidade foi criada. Pois entendemos que nosso mérito acadêmico jamais seria possível sem oportunidade e sem condições materiais para que pudéssemos estudar.

Nosso mérito acadêmico não seria possível sem as políticas de permanência.
Nosso mérito acadêmico não seria possível sem bolsas de iniciação científica que nos qualificaram através dos desafios e superação.

Nosso mérito acadêmico não seria possível sem as bolsas de extensão que nos permitiram levar os conhecimentos produzidos pela UFFS onde ela deveria estar, no meio do povo, para junto somar e compreender as demandas reais da sociedade.

Por fim, nosso mérito acadêmico não seria possível sem a política de acesso por meio do Enem com fator escola pública, marco histórico para o ensino superior público brasileiro que garantiu a possibilidade de ingresso da classe trabalhadora e empobrecida para dentro da UFFS.

Parabéns a nós, formandos e formandas, que somos uma das primeiras gerações da classe trabalhadora a ingressar no ensino superior. Com certeza não foi fácil, já que a universidade nunca foi feita para nós, tivemos que lutar por ela nos tornando parte de um movimento que vai na contramão da história.

Mas para garantirmos que não seremos os primeiros e os últimos, e que mais gente do nosso povo acesse o ensino superior e conclua, precisamos gritar continuamente Fora Temer! Precisamos gritar Fora Temer para que se tenha mais negros e negras, mais indígenas, mais camponeses e camponesas, para que as Transexuais tenham a universidade como um espaço de possibilidade e respeito. Precisamos gritar Fora Temer para que a universidade do povo seja possível!

Parabéns para nós, formandos e formandas da classe trabalhadora, hoje graduados e graduadas!

Foto de Capa: Claudia Weinman/ O Fora Temer mostrado na foto deu-se durante as ocupações na Universidade.

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