Censura abre discussão sobre dualidade entre privacidade e interesse público

Por Amanda Souza de Miranda.*

Na semana em que se comemorou o dia do repórter, um caso de censura a dois dos jornais mais tradicionais do país reverberou entre jornalistas, entidades representativas e leitores. No último dia 13, a Folha de S. Paulo anunciou que a Justiça havia censurado a divulgação de uma notícia sobre um caso de extorsão à primeira-dama Marcela Temer. O impedimento de publicar informações sobre o fato partiu de uma liminar do juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília, e atingiu também o jornal O Globo. O caso já foi revertido, mas mobiliza importantes discussões sobre privacidade, interesse público e liberdade de imprensa.

Desde que assumiu o poder após um impeachment apontado por determinados setores da sociedade como inconstitucional, o presidente Michel Temer tem enfrentado sucessivas crises, mas, de certo modo, parece blindado pela imprensa tradicional. Ao apontar contra os interesses da Folha de S. Paulo e do O Globo, entretanto, pode ter colocado em risco esse apoio.

16790440_1795391690721231_329655171_nA petição que resultou na censura foi assinada por um advogado do Palácio do Planalto em nome da primeira-dama, chantageada por um hacker. A ação queria impedir a divulgação das suas conversas ao público. Na sentença, o juiz alega que “a inviolabilidade da intimidade tem resguardo legal claro” e aponta uma multa de R$ 50 mil diante do descumprimento.

O conteúdo das conversas – que mesmo censuradas circularam de diversas formas desde que o assunto se tornou público – sugeria que o hacker, já preso, tinha acesso a informações que jogariam o nome de Michel Temer “na lama”. Entre essas informações estaria uma em que Marcela fala sobre um marqueteiro do presidente que faria “a parte baixo nível”. A Folha questionou o direito à intimidade alegado pela defesa da primeira-dama e garantiu que estava diante de um assunto de interesse público.

Imediatamente, entidades representativas dos jornais e dos jornalistas se posicionaram denunciando um típico caso de censura. A Ordem dos Advogados do Brasil falou em “desrespeito à liberdade de imprensa”. Em coletiva, conforme divulgou o The Intercept, o presidente negou a pecha de censor, mas não justificou a decisão.

A intimidade de duas primeiras-damas e o interesse público

O advogado do Planalto utilizou o direito à privacidade e intimidade como argumento para solicitar a censura. É inevitável comparar o caso e sua repercussão com os recentes episódios de invasão da privacidade à uma primeira-dama no leito de morte. Marisa Letícia, esposa recém-falecida do ex-presidente Lula, teve seus exames e seu prontuário médico divulgados em grupos de WhatsApp até chegarem à imprensa. Acompanhados de comentários maldosos por parte de médicos, esses dados estavam longe de corresponder ao que se entende como interesse público.

Considerado um conceito bastante aberto e ambíguo entre estudiosos da comunicação – e muitas vezes utilizado como “muleta” pelas empresas de jornalismo – o interesse público é definido por Gomes (2009, p.79) como a oportunidade de “oferecer à esfera civil a possibilidade de se ver representada e satisfeita nos procedimentos regulares da esfera política”. Seria, ainda, “colocar à disposição do público os repertórios informativos necessários para que ele possa influenciar a decisão política e gestão do Estado”.

Esta é uma conceituação que deriva do que se entende como esfera pública, conceito cunhado por Jürgen Habermas, e atravessa os estudos mais modernos sobre política, sociedade e democracia. A esfera pública nada mais é do que um espaço de debates e discussões que interessam à sociedade, e os jornais teriam uma participação relevante neste espectro por trabalharem exatamente com a mesma noção, em que pese seu caráter predominantemente comercial.

O diálogo entre Marcela Temer e o hacker que lhe chantageou desperta o interesse público porque induz o leitor a pensar que o presidente atua para além dos limites da ética, com o apoio de terceiros. Mesmo não trazendo informações mais relevantes sobre o caso, existe uma notícia que pode afetar o sistema político de algum modo e, por consequência, seus cidadãos. É válido destacar que os jornais têm a função de irem além – e, de fato, as conversas poderiam ter mobilizado uma investigação em torno das práticas do presidente e de seu marqueteiro para não se confundirem com “invasão de privacidade” ou com uma simples fofoca.

A censura aos jornais também permite que se confronte a noção de interesse público com a de direito à privacidade. Afinal, qual deles é soberano? Recentemente, o vazamento de diálogos entre a ex-primeira dama Marisa Letícia e seu filho mostrou onde está esse limite, essa tênue linha que separa o que diz respeito aos jornais e ao leitor de um trabalho que busca apenas “inflamar” a opinião pública. Os diálogos, grampeados pela Polícia Federal, não tinham conteúdo relevante – ao contrário, mostravam a ex-primeira-dama irritada com as críticas, em um momento de intimidade com o filho. O vazamento foi amplamente repercutido pela imprensa.

Nesses casos, como no vazamento do prontuário médico, o direito à privacidade e à intimidade deveria ser soberano. Mas essa discussão não é apenas normativa: é, também, reveladora do posicionamento das empresas de comunicação, que embora frequentemente usem o discurso de servirem ao interesse público, atuam no limite da ética e se transformam em protagonistas da ação política, participando de jogos de interesse e agindo de forma deliberada em favor de determinados grupos.

Em 2010, a ex-primeira-dama da França, Carla Bruni, teve esse limite totalmente ultrapassado por alguns veículos, que afirmavam que ela tinha um amante, o que configura uma evidente confusão entre intimidade e interesse público. Apesar de o conteúdo ter se espalhado rapidamente, muitos jornais não repercutiram o assunto. Goepfert (2015) aponta que isso pode registrar um posicionamento ético dos jornalistas, mas também pode ser indicador de posições políticas das publicações, preocupadas com a preservação da intimidade de homens públicos que partilham o mesmo espectro ideológico.

1968 é logo ali

16830343_1795391684054565_425152960_nOutro ponto a ser considerado com relação ao episódio de censura tem a ver com a história do país. O fato remete a uma prática recorrente no tempo da ditadura militar, guardadas as proporções e eventuais anacronismos. A censura foi institucionalizada em 1968, ano de promulgação do Ato Institucional número 5, e consistia numa atividade diária nas redações, com a presença de um agente público que fiscalizava as notícias e liberava somente aquelas que não representassem perigo aos “interesses da nação”.

Jornalistas foram perseguidos, presos e mortos por se oporem ao regime e à política de censura – o que culmina em um dos episódios recentes mais emblemáticos e traumáticos para a história do jornalismo no país.

Ainda que possam parecer conspiratórias, comparações da censura das notícias sobre Marcela Temer com a censura do regime militar indicam, no mínimo, uma sensação de que as instituições não funcionam dentro da sua normalidade. E, como apontou Sylvia Moretzon, “nenhuma democracia aceitaria censura prévia”. Uma decisão aceitável do presidente e da sua esposa seria permitir a repercussão nos jornais e respondê-las por meio de um porta-voz ou em nota oficial. Mais recomendável ainda seria uma declaração pública de Marcela Temer sobre o caso. Mas nada disso foi feito.

Por outro lado, as empresas de comunicação não deveriam ter tirado o seu conteúdo do ar – ainda que precisassem arcar com os custos da multa. Mais do que isso, deveriam ter dado continuidade à produção de notícias e reportagens sobre a chantagem do hacker e investigado mais a fundo as relações do marqueteiro apontado por Marcela Temer. Para todo bom repórter, é inegável: onde há fumaça, há fogo. Onde há censura, há notícia.

O retorno da discussão sobre liberdade de imprensa

O recente caso de censura também alavanca a pertinente discussão sobre liberdade de imprensa no Brasil. Em culturas democráticas, avançar contra o trabalho de jornalistas é causar sérias ameaças ao sistema, considerando o papel da imprensa como mecanismo de vigilância aos três poderes.

Todo ano, a ONG Repórteres Sem Fronteiras elabora o ranking da liberdade de imprensa no mundo. No ano passado, o Brasil ficou na 104ª posição, apenas uma na frente do Congo, país com conflitos sociais e políticos históricos. A metodologia do ranking é composta por dados sobre violência contra jornalistas e por um questionário que pretende mensurar qualitativamente questões sobre pluralidade, independência dos meios de comunicação, autocensura, marco-regulatório, transparência e qualidade da infra-estrutura para a produção de notícias e informações.

Em 2013, essa mesma ONG publicou um relatório denunciando a concentração de mídia no Brasil como um risco à liberdade de imprensa. Isso significa que as ameaças à liberdade de imprensa não ocorrem somente quando há censura – talvez o recurso mais explícito de silenciamento dos jornais. Ocorre quando há monopólio, quando falta pluralidade, diversidade ou mesmo quando os repórteres recorrem à auto-censura para não se oporem aos interesses de seus empregadores.

The Intercept, ao escancarar a censura da Folha e de O Globo, fez também um manifesto contra o comportamento contraditório desses dois jornais, enfatizando que eles “atacam a liberdade de imprensa de outros veículos regularmente”. Segundo a publicação, a associação por eles controlada “entrou com um processo que busca negar a liberdade de imprensa a veículos como BBC Brasil, El País Brasil, BuzzFeed Brasil e The Intercept”. As empresas teriam pedido aos tribunais que impedissem os veículos estrangeiros de atuarem no país.

Isso indica que, mesmo sendo vítimas de uma ação judicial que põe em risco a atuação da imprensa no Brasil, não compete aos dois jornais construírem a imagem de mártires – principalmente se considerarmos que suas notícias promovem um enquadramento bastante favorável ao governo censor.

São muitas questões que nascem dessa aparente contradição. Estariam a Folha e O Globo lutando pela liberdade de imprensa ou defendendo a liberdade de empresa? A exaltação do interesse público faz parte do dia a dia da publicação ou surge apenas como estratégia discursiva de auto-legitimação? O episódio da censura vai manter os jornais vigilantes quanto a novas arbitrariedades do governo ou vai gerar práticas de auto-censura em suas redações? Veremos suítes do caso, com direito a informações e investigações sobre “a parte baixo nível” à qual Marcela se refere? O governo Temer é uma ameaça à liberdade de imprensa?

As perguntas carecem de respostas mais elaboradas e precisas do que temos no momento. Mas é a partir dessas respostas que poderemos perceber se nossas instituições estão mesmo em uma crise em precedentes. Se já fomos privados de um governo eleito democraticamente, como seria se estivéssemos privados também do poder fiscalizatório do jornalismo?

Referências

Goepfert, Eva-Marie. La Peopolisation Des Hommes Politiques Au Travers De Ses Silences. In: Anais do Mejor, 2015. Disponível em: http://mejor2015.sites.ufsc.br/wp-content/uploads/2015/05/merged-51.pdf. Acesso em: 17 de fev de 2017.

Gomes, Wilson. Jornalismo, fatos e interesses: ensaios de teoria do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2009.

*Doutoranda no POSJOR e pesquisadora do objETHOS.

Fonte: Objethos.

 

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