Cecap: dois museus para histórias contadas a partir da solidariedade coletiva

Mas dois museus? Que história é essa? Em Fraiburgo? No bairro São Miguel! Pois é. O povo está dizendo que é verdade. E a gente conta como esse processo está sendo construído já faz um tempo. Na verdade, há 18 anos.

Projeto Esporte Bem Legal deu origem a Apafec. Foi nesse projeto que a primeira vez se falou em uma sede no bairro São Miguel, tendo partido das próprias crianças e adolescentes a pergunta. Foto: Arquivo.

Por Claudia Weinman e Jilson Carlos Souza, com colaboração do professor Rodrigo Cabral e Cássio Giovani Turra, para Desacato.info.

Um projeto socialmente grandioso vem se construindo na região de Fraiburgo, nas Terras Contestadas, em Santa Catarina. O Centro de Educação, Cultura e Arte Popular – Cecap, que tem seu espaço físico situado no bairro São Miguel, transformou-se ao longo dos últimos anos em um lugar de acolhida para reuniões de comunidades que foram empobrecidas pelo Estado brasileiro, o mesmo que ignora o maior genocídio de Caboclos e Caboclas do Brasil, denominando-a apenas como: Guerra do Contestado. O Cecap que até agora serviu para que encontros fossem realizados e sonhos não permanecessem no vazio, hoje se alimenta de uma realidade: e vai ter museu, aliás, será guarita para a construção de dois museus e continuará recebendo pessoas para reuniões, visitas e encontros.

Mas essa história precisa ser contada e por isso, entrevistamos algumas pessoas que fazem parte desse processo de luta.  João Carlos Rodrigues é um dos integrantes da Associação Paulo Freire de Educação e Cultura Popular – Apafec e ele informa que o Cecap teve início com a aquisição do primeiro imóvel da Apafec em agosto de 2010.  Este imóvel fica localizado na av. Pedro Gianello, 1422 em frente ao portão principal do Caic, no bairro São Miguel.  A assembleia extraordinária que autorizou a coordenação da Apafec a adquirir o primeiro imóvel é datada de 26 de junho de 2010. Este imóvel foi adquirido por R$ 70 mil sendo que desse valor, R$ 62 mil foram captados junto a Cresol Tangará em forma de empréstimo.

Primeiro imóvel adquirido pela Apafec/ agosto de 2010. Foto: Arquivo.
Segundo Imóvel adquirido pela Apafec. Foto: Arquivo.

O espaço segundo João, não carregava esse nome. O objetivo da aquisição desse primeiro imóvel era apenas para que a Apafec tivesse uma sede administrativa e social, pois, conforme ele, os materiais esportivos como bolas, tabuleiros de xadrez, cones, coletes, livros, revistas, canetões, monitores, gabinetes, peças em geral de computadores, banners, cartolinas e demais materiais pedagógicos utilizados no Projeto “Esporte Bemlegal” e no Projeto de “Inclusão Digital Florestan Fernandes”, acabavam sendo armazenados na casa de coordenadores/as da Apafec.

O nome Cecap só foi apresentado, conforme João, e aprovado, em assembleia extraordinária no dia 09 de novembro de 2013. “Na oportunidade, tendo em vista que o empréstimo para aquisição do primeiro imóvel estava próximo de ser quitado, a assembleia autorizou a compra do segundo imóvel, ao lado contínuo do primeiro imóvel, no valor de R$ 135 mil, sendo que desse valor R$ 105 mil, foram captados também junto a Cresol, através de empréstimo”, disse ele, acrescentando que  os imóveis foram adquiridos no bairro São Miguel em Fraiburgo/SC, devido ao fato das ações, projetos e atividades da Apafec serem realizadas no bairro São Miguel desde 22 de outubro de 2002, quando foi realizada a primeira reunião que deu origem à entidade.

 A solidariedade coletiva

Atividades coletivas, ao longo dos 18 anos da Apafec.

O Cecap vem sendo construído desde agosto de 2010. Sendo fruto da decisão coletiva da Apafec. A edificação desse sonho é concretizada em mutirão e com a solidariedade de pessoas e entidades da comunidade fraiburguense, regional e estadual, que compreenderam a importância e a dimensão do Cecap para o bairro São Miguel e para Fraiburgo e região. Para conseguir fazer o pagamento do primeiro empréstimo, e para seguir pagando o segundo financiamento, além dos aluguéis das duas salas comerciais existentes no primeiro imóvel, ao longo dos últimos 10 anos, a Apafec realizou muitas promoções para mobilizar recursos financeiros, entre as quais: Ação Solidária Entre Amigos (popularmente conhecida como rifa com sorteio de prêmios); Aluguel de Outdoors – através do Projeto Outdoor Cooperador; Bailes; Bingões e pasteladas da solidariedade; Brechós presenciais e virtuais; Campanhas de doações; Comercialização de camisetas, blusões, maçã do amor, entrevero e de xixo no pão; Jantares por adesão; Transmissões ao vivo solidárias; Troco Solidário do Big Bom; e Pedágios com contribuições espontâneas. A instituição também contou com doações de pessoas jurídicas (empresas, lojas, supermercados entre outros) e de pessoas físicas (amigos e amigas da instituição), além de muito trabalho voluntário e compromisso de seus integrantes.

Atividades coletivas, ao longo dos 18 anos da Apafec. Foto: Arquivo.
Atividades coletivas, ao longo dos 18 anos da Apafec. Foto: Arquivo.

Papel Social: a ideia dos museus e investimentos

João Carlos Rodrigues, da coordenação da Apafec. Foto: Arquivo Pessoal.

João Carlos Rodrigues lembrou que o Cecap é e será sempre um espaço comunitário, pois já está e estará aberto para a comunidade local e regional, algumas organizações populares que não têm sede, como Associação de Moradores, Quilombolas Campo dos Polis entre outros, já utilizaram a sala de reuniões do Cecap para fazer encontros. Ele enfatizou ainda que com a ampliação o Cecap terá: Alojamentos feminino/masculino; Auditório multiuso; Banheiros com chuveiros; Cozinha; Dois museus; Espaço para práticas esportivas; Refeitório; Sala de dança/música; Sala de encontros; Sala de inclusão digital; Sala para produção de artesanatos e Salas de administração. No total serão construídos mais de 800m2.

Assim, a ideia de construção dos dois museus: Museu das Caboclas e Caboclos do Contestado e Museu Historiográfico Padre Biaggio Simonetti e bairro São Miguel surgiu segundo João Carlos, a partir do diálogo com amigos/as, aliados/as e parceiros/as da Apafec, entre outros, integrantes da Associação Hayashi-há Vital Fraiburgo de Karatê-dô; Conselho Pastoral da Comunidade São Miguel, Conselho de Entidades dos Bairros São Miguel e Nossa Senhora Aparecida e Fórum Regional em Defesa da Civilização e da Cultura Cabocla.

Sentimos a necessidade de salvaguardar a história das mulheres e homens do Contestado, a história do Padre Biaggio Simonetti, uma das principais lideranças religiosas e comunitárias que chegou a ser prefeito do município. E por fim e não menos importante, preservar a história e a memória de construção do bairro São Miguel, a maior vila operária de Fraiburgo e região”, acrescentou.

Para a 1ª Etapa de ampliação do Cecap, a Apafec conta com a emenda parlamentar do Deputado Estadual Padre Baldissera no valor de R$ 350 mil, a qual está tramitando junto aos órgãos responsáveis do estado de Santa Catarina.  Com esse valor que será investido na primeira etapa da construção do Cecap, serão construídos 214 m2 para abrigar os dois museus. O Cecap e toda a estrutura a ser construída vem sendo edificado no bairro São Miguel, localizado há aproximadamente sete quilômetros do centro de Fraiburgo. Somando as localidades circunvizinhas: Assentamento São João Maria; Bairro Nossa Senhora Aparecida; Bairro São Cristóvão e Ocupação Vila União – à população totaliza mais de 12 mil habitantes.  A pretensão da coordenação da Apafec é que indireta ou diretamente, toda a população dessas localidades seja beneficiada com as atividades artísticas, culturais, educacionais e esportivas que serão desenvolvidas no Cecap.

Todo esforço coletivo envolveu ao longo dos anos, milhares de pessoas e várias organizações sociais que contribuíram para que a Apafec pudesse adquirir os dois imóveis do Cecap, que totalizam 800m2 de terreno em frente a maior Escola Municipal de Fraiburgo, a Escola Antônio Porto Burda, o Caic. “A edificação do Cecap vem sendo concretizada em mutirão e a partir da solidariedade de pessoas e entidades da comunidade fraiburguense, regional e estadual, que compreenderam a importância e a dimensão do Cecap, para a Região Vale do Contestado”, reforçou João.

Em 10 anos, foram pagos R$ 116mil (sem os juros) em empréstimo para aquisição do primeiro e segundo (desse ainda estão sendo pagos) imóveis, além de R$ 35 mil da entrada no segundo imóvel e nesse mesmo período, foi investido em reforma, melhorias e legalizações dos dois imóveis o valor de mais de R$ 70mil.

“O Cecap é fruto da experiência comunitária, do não contentamento com os agentes públicos”

Reuniões e atividades que marcam a construção do Cecap. Foto: Arquivo.

O Cecap está sendo construído com muito amor e teimosia de pessoas que no seu dia a dia trabalham coletivamente. Quem destaca isso é o professor Luiz Antônio Laudelino Coelho, da Associação Hayashi-há Vital Fraiburgo de Karatê-dô/Projeto Karatê-dô Cidadão do Futuro. Para ele: “O não contentamento com as situações impostas pelos agentes públicos em todas as esferas, as experiências vividas comunitariamente, na Universidade Fronteira Sul, nas Pastorais, viagens internacionais, motivam este coletivo a lutar pela construção de outro mundo, onde caibamos todos e todas em situação de igualdade”.

Professor Luiz Antônio Laudelino Coelho. Foto: Claudia Weinman.

O professor explica que a comunidade se soma nesse projeto de diferentes formas, participando ativamente dos projetos, ações e atividades desenvolvidos desde 2002, dentro das oficinas e recebendo formação cidadã (inclusão digital, coordenação de diversas atividades em várias áreas), com comportamentos coletivos na sociedade que mostram a importância de espaços como este, como opção de formação integral.

Luiz Antônio, o sensei “Coelho” como é popularmente chamado, enfatizou que os primeiros 18 anos de atividades ininterruptas são de suma importância para a formação de uma consciência de classe e a isso se deve a construção do Cecap. “Nós estudantes, trabalhadores/as, moradores das periferias, precisamos estar juntos para as lutas coletivas. Individualmente seremos facilmente cooptados e tragados pelo sistema capitalista, através das compras de votos nos períodos eleitorais, e, ou comprados por pequenas benfeitoras realizadas próximo de nossas residências e/ou no bairro onde moramos. A construção coletiva nos mostra o senso de pertencimento e importância desta obra para a comunidade local e para os visitantes, que participarão da manutenção futura”, mencionou.

Ele ainda destaca que conhecer a história do povo por meio dos museus servirá de combustível para outras lutas maiores, para o bairro, e toda a América Latina. “Nós do Projeto Karatê-dô Cidadão do Futuro estaremos utilizando o Cecap para formações com mais qualidade, com os técnicos da Seleção Brasileira de Karatê-dô, podendo receber estudantes de diversos países, para intercâmbios formativos, culturais e esportivos, impulsionando a modalidade, dentro e fora dos tatames”, adiantou.

Mas dois museus?

Talvez alguém se pergunte: Mas porque a necessidade de dois museus? O Contestado não tem museu? Bem, vamos lá. Quem fala sobre isso é o Geógrafo/professor doutor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Nilson Cesar Fraga. Segundo ele, museus populares carregam o papel político e o simbolismo de demonstrar e salvaguardar a história e a resistência popular frente ao poder das elites regionais causadoras do massacre do Contestado. “São mais do que necessários. Caso contrário, apenas reproduzirão a história oficial dos vencedores, que no caso do Contestado são as forças militares, os coronéis e os poderes públicos representados em Florianópolis e na capital federal. Mas a região precisa de mais e mais museus, pois sua história mais que secular, está na gênese da formação da civilização cabocla da Serra Acima”.

Professor/pesquisador, Nilson Cesar Fraga. Foto: Arquivo Pessoal.

Ao ser perguntado sobre qual história precisa ser contada e que ainda fica invisível nos meios de comunicação da região, Nilson é enfático em mencionar: “A história da resistência cabocla, invisibilizada por mais de um século pela história oficial e pela mídia escrita e falada regional, estadual e nacional. É preciso mostrar ao Brasil e ao mundo a importância que tem a Cultura Cabocla sobre a formal sertaneja do país. A história a ser contada é a dita história dos vencidos e não a dos vencedores que são verificadas noutros museus estaduais e regionais”.

Ele também fala sobre o papel fundamental desses espaços para a formação de consciência de crianças e adolescentes. “O papel é transformador, quando as crianças e os adolescentes se virem representados em tais espaços de memória, passarão a valorizar sua própria cultura que sempre foi menosprezada pelos espaços de memórias das elites e da burguesia regional e estadual”, adiciona ele, mencionando ainda que a postura do Estado de Santa Catarina frente a um projeto tão importante como esse deveria ser de valorização e de investimentos. “É obrigação do estado investir em todas as culturas formadoras catarinenses, mas é sabido que os investimentos sempre foram para a cultura burguesa e europeizada, com desprezo para as culturas originárias e tradicionais do solo barriga verde. O Estado não olha para o Contestado, o Estado é míope, assim como o Estado Nacional segue tal miopia. Há uma dívida histórica secular do estado e do Estado para com a Região Cabocla do Contestado, mais de um século de dívidas fazem da região uma das mais subdesenvolvidas da República, mesmo estando ela sobre o manto da arrogância e opulência sulista”.

O Geógrafo detalha ainda que a organização popular se faz importante para que projetos como esses saiam do papel. “Como há falta de ação do Estado (esfera estadual) e do Estado Nacional, apenas as ações populares fazem frente ao silenciamento e a inviabilidade regional cabocla imposta secularmente. Ou o povo trabalhador se une e se organização, ou tais ações jamais ocorreriam, pois não ocorreram nos últimos 105 desde o fim da Guerra do Contestado. Não é um esquecimento do Estado/Estado, é uma ação premeditada pelo Estado/Estado, essa é a lógica, aniquilar e eliminar a cultura e a resistência cabocla regional”, argumentou.

“Os Museus são instituições de memória, educação e entretenimento

Debate sobre a memória e cultura do Contestado em 10 de dezembro de 2019, na Assembleia Legislativa, com a presença do professor/pesquisador Paulo Pinheiro Machado (esq) e do educador popular Jilson Carlos Souza (dir). Foto: Claudia Weinman.

O professor de história, Paulo Pinheiro Machado, também reforçou a importância dos museus para a garantia da memória, da educação e entretenimento no estado de Santa Catarina. “Através de suas exposições e reservas técnicas, seus acervos são o resultado de esforço de pesquisadores, funcionários e das comunidades. Normalmente os Museus possuem recortes temáticos. Há Museus de Arte, Museus Históricos, Museus de Botânica, Zoologia, etc. Como locais de visitação do público em geral e ao público escolar, os Museus podem ser um importante suporte a atividades formais escolares, proporcionando experiências de aprendizagem peculiares, fora da sala de aula. No entanto, mais importante que os acervos físicos, são as narrativas e trabalhos de organização dos (as) museólogos (as). Um objeto em si, uma foto, uma arma, uma bandeira, uma ferramenta, não dizem nada. Só ganham significados depois de contextualizados, legendados e narrados em uma exposição”, disse.

Paulo Pinheiro faz uma reflexão sobre a reprodução que o Estado e as classes dominantes fazem, sendo importante a construção desses museus populares para a garantia de uma narrativa a partir das experiências e lutas. “Particularmente sobre o movimento social do Contestado, os Museus são importantes por poderem representar e inscrever, na memória social e pública, as experiências e lutas de gerações anteriores que enfrentaram a opressão da oligarquia latifundiária, do capital estrangeiro e dos militares. Há muitas instituições que apenas reproduzem o discurso do Estado e das classes dominantes, apresentado os sertanejos como “fanáticos” ou “bandidos”, o que é um verdadeiro desserviço à memória, à História e à Democracia. É necessário que os Museus, em conjunto com as redes escolares e a memória pública (como o jornalismo) percebam o significado da recuperação de narrativas populares, das histórias das populações indígenas, quilombolas, caboclas e campesinas em geral”.

A influência dos museus para a formação de consciência do povo, segundo Paulo Pinheiro, é de que os Museus têm um papel importante para os jovens escolares e para toda uma comunidade que os mantém, além dos visitantes externos. “São instituições que consolidam determinadas narrativas de memória, que são mais eficazes com uma mudança cultural mais ampla, que envolva uma memória pública, sedimentada na educação e da ideologia dominante. Então, os museus, por si sós, não são capazes de transformar, mas em conjunto a esforços das redes escolares, dos intelectuais públicos (jornalistas, políticos, músicos, poetas, etc.) são sim capazes de promover mudanças de mentalidade”, defendeu.

O povo caboclo, o massacre e o papel político dos museus

Ana Maria Camillo é responsável técnica pelo Museu da Cidade Santa do Taquaruçu e Casa da Cultura Lydia Frey. Foto: Arquivo Pessoal.

Conversamos também com pessoas que trabalham em espaços de museus e que falam sobre a relevância deles para a Região Vale do Contestado. Ana Maria Camillo que é responsável técnica pelo Museu da Cidade Santa do Taquaruçu e Casa da Cultura Lydia Frey  diz que o Cecap nesse sentido possui como papel: “Contribuir no resgate da história do Contestado contada através de um acervo que valorize o povo caboclo que viveu e sentiu na pele todo o massacre ocorrido na época e que tem hoje nos descendentes que ocupam todo o território do município e região o sentimento de não sentirem-se representados e valorizados quanto sua importância e ao seu rico legado cultural”.

Ana Maria ressalta que o Museu do Padre Biaggio vai poder dar reconhecimento devido a todos os feitos e obras que o religioso realizou em todos os setores do município. “Uma das obras de infraestrutura de fundamental importância que foi a criação do bairro São Miguel, tendo ciência que seu legado é muito maior que a criação do mesmo, pois está além desta. Entendo que para toda a população desde que foi pároco e as ações que realizou diante da paróquia e em consonância à educação, na formação de grandes profissionais com os cursos que trouxe para o município, e depois como prefeito onde pudemos ter uma administração admirável e que depois, em seus anos avançados de idade, não recebeu as honras que o mesmo mereceu mesmo sabendo que nunca fez nada em prol de reconhecimento pessoal e sim, pelo bem de toda a comunidade fraiburguense”, defendeu.

Ela também destaca as histórias que devem ser contadas a partir da edificação dos dois museus. “São muitas histórias, mas cito uma que muito nos pertence enquanto temos em nosso território a localidade de Taquaruçu. O fato de que na época da Guerra do Contestado, não tivemos ferrovia que passasse em nosso território e nem o próprio Taquaruçu não nos pertencendo, a População Cabocla de nossa cidade sofreu com os impactos da guerra e tem em suas entranhas, muito das marcas históricas que foram esquecidas, escondidas, e que finalmente estão sendo trazidas à tona devido a muitas pessoas que lutam por esta causa tão nobre de reconhecimento a este povo que sofreu e não se vê representada em sua dignidade histórica e cultural. Acredito que é um campo muito vasto de invisibilidades que acontecem diante da riqueza histórica e cultural a que esta parte da história pertence”.

Turismo e o Vale do Contestado

Em 2019, aconteceu na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, um debate sobre a memória e Cultura do Contestado com a presença do professor/pesquisador Paulo Pinheiro Machado e do educador popular Jilson Carlos Souza. Quem fez abertura da noite foi o trovador Pedro Pinheiro, com o lançamento do disco: “Um Outro Olhar do Sul”. Isso porque, durante o ano as organizações e associações da Região Vale do Contestado estiveram reunidas repudiando a tentativa de mudança do nome da Região do Contestado, que tenta retirar a nomenclatura do Vale do Contestado para inserir um nome genérico para a região, que abrange parte do Vale do Rio do Peixe e do Planalto Norte.

 A modificação do nome, segundo os pesquisadores da área que divulgaram textos sobre o tema, aconteceu a portas fechadas, em 4 de julho daquele ano. Entre os relatos publicados, encontra-se esse, que explica um pouco da situação. “55 imbecis nessa data planejada, que obrigavam durante toda história os/as caboclos e caboclas festejar a independência dos EUA, que se reuniram em Catanduvas e resolveram que o ‘Vale do Contestado’ passaria a se chamar ‘Vale dos Imigrantes’. A partir disso, as organizações do território passaram a se organizar e resistir a essa repugnante decisão feita a portas fechadas. Querem esconder que a nossa região é de negros, índios. Temos a presença indígena datada de 30 mil anos com as primeiras civilizações. Os primeiros negros chegaram na região em 1542 com o espanhol Cabeza de Vaca. Toda história de resistência do povo caboclo esses imbecis estão querendo apagar”. (Leia mais sobre isso: http://desacato.info/a-luta-pelo-vale-do-contestado-e-resistencia-contra-o-coronelismo-e-ferrovias-do-capital-estrangeiro/)

Pensando nisso, Ana Maria também falou sobre a importância desses museus para o fortalecimento do turismo, voltado à garantia de uma história contada pelo viés popular. “Já temos em nosso município dois museus, inclusive um deles voltado a história do Contestado que se encontra no local onde aconteceu um dos mais violentos massacres da Guerra, situado em zona rural, o que faz com que alguns visitantes não se sintam motivados ir até lá. Com a visitação turística deste novo museu, este num local mais centralizado na zona urbana, pode instigar a curiosidade e interesse para visitar o outro, tanto àqueles que forem até o Taquaruçu podem ter interesse em complementar sua visita vindo até o bairro São Miguel conhecê-lo e no mesmo espaço ampliar o conhecimento sobre um nobre personagem importantíssimo da história local que é o Padre Biaggio e sua trajetória na construção de Fraiburgo e ser motivado conhecer o outro museu que retrata este momento de desenvolvimento histórico, cultural e social de nossa cidade. Conhecendo a história do Contestado vista em dois museus pode querer visitar a gruta do monge levado pela mística histórica, assim podendo caminhar ao redor do lago se inteirando pela história do município, como também todas as nuances históricas trazidas pela construção do Santuário Diocesano que foi uma iniciativa do Padre Biaggio e que hoje é local de grande visitação e se encontra em constante crescimento na questão do turismo religioso. Nos museus, os turistas ao realizar este roteiro histórico cultural além da história local, podem conhecer melhor o município e seu interior favorecendo a criação de roteiros rurais que estão em alta no turismo em nossa região e então ampliar realizando a visita ao Santuário Diocesano que já está em expansão dentro do turismo religioso, junto com o turismo de experiência e o de aventura possam permanecer no município por mais tempo movimentando a economia local gerando renda e desenvolvimento ao mesmo”, disse.

Wilson Cesar Malinoski, jornalista.

Wilson Cesar Malinoski, Jornalista integrante do Conselho Municipal de Turismo de Fraiburgo também menciona a importância para o turismo a edificação de museus que representem, de fato, a história do genocídio do Contestado. “Considero todos os museus importantes instrumentos de preservação da memória cultural de um povo. São os grandes responsáveis pelo patrimônio material e imaterial da nossa sociedade. A implantação aqui, de dois novos museus é fundamental para evolução cultural de toda a nossa região. Os museus prestam relevantes serviços, quando documentam, preservam e guardam viva a memória e a cultura do Contestado! Embora muitos queiram negar a Cultura do Povo do Contestado, ela está presente no DNA dos moradores de Fraiburgo e região e devem ser preservadas”.

Segundo ele, os museus são espaços de pesquisa e o turismo só se desenvolve se existe investimento em pesquisa. “Os museus são espaços culturais, mas, para além dessa sua qualidade visível a todos, o que muitas pessoas talvez não se deem conta é que os museus também são importantes espaços de pesquisa. São cápsulas do tempo que contam a origem e a história dos que viveram antes e fornecem argumento para fomentar o turismo local. Precisamos saber de onde nós viemos, pois, o homem só se reintegra na sociedade ao retornar à sua origem. Penso que o estado tem que assumir a responsabilidade que lhe cabe, sistematizando políticas públicas voltadas para os museus. Precisa estabelecer o debate necessário sobre a questão com os diversos segmentos culturais que tratam do assunto. Deve buscar o bom diálogo com todas as entidades vinculadas a museologia, meio universitário, profissionais da área, secretarias estaduais e municipais de cultura”.

Wilson acresce ainda que a preservação das identidades culturais deve ser a base para quem pensa o turismo na região de Fraiburgo. “Os museus são ótimas portas de entrada para o turismo. São espaços privilegiados para conhecermos a cultura de um local. Preservam e contam nossa história. Quem viaja quer conhecer. E é a cultura que diz o que cada lugar é.   Por isso, em um diálogo que vise impulsionar o turismo, devemos pensar nos museus como elemento indispensável em roteiros turísticos. A relação entre turismo e cultura deve ser vista sempre como uma via de mão dupla: A cultura impulsiona o turismo e este deve ser um elemento importante na preservação das identidades culturais”, finalizou.

Educação: “os museus estimulam o debate e oportunizam a reflexão”

E.E.B 30 de outubro, do Assentamento Rio dos Patos. Foto: Claudia Weinman.

Também procuramos entender, a partir desse conteúdo elaborado sobre os museus, qual à importância deles para o contexto da educação e por isso, conversamos com a Gestora da E.E.B 30 de outubro, do Assentamento Rio dos Patos, Michele Carlin Padilha Silveira.

Gestora da E.E.B 30 de outubro, do Assentamento Rio dos Patos, Michele Carlin Padilha Silveira.

Michele traz elementos sobre o enfrentamento ao preconceito e a desigualdade social a partir do trabalho com a história, nesse caso, de museus que reforcem a conexão entre a sociedade e sua construção. Contribui significativamente para reduzir o preconceito e a desigualdade social, pois é um espaço democrático traduzido na exposição da cultura humana e nas relações desenvolvidas. Estimula o debate e oportuniza a reflexão sobre as transformações sociais e nosso papel nessas relações, intensificando os saberes e permitindo vislumbrar ações futuras que poderão promover práticas de fortalecimento e fomento do território do Contestado e dos espaços étnicos da nossa região”.

Ela também entende que o processo da construção social do território do Contestado atravessa o século na tentativa de ser apagado da história como identidade cabocla. “Por esta razão as ações de fortalecimento da identidade e da cultura precisam ser preservadas, protegidas e repassadas aos seus descendentes. Existe um trauma social (afetivo, emocional, físico e psíquico) atravessando gerações, através de uma estória transmitida pela classe dominante que precisa ser superada. A Cultura Cabocla é de uma riqueza cultural tão grande, de uma capacidade de um viver pleno em contato com o outro e com a natureza que deve ser estudada e exibida às futuras gerações, são nossas raízes e elas nos identificam como grupo cultural de um mesmo território”, disse.

Assim também, a formação de consciência na escola acontece por meio desses espaços, segundo Michele. “Uma das formas de desenvolvermos a formação de consciência é a partir de quando nos identificamos com outros indivíduos em um mesma situação ou situações semelhantes, é a consciência histórica que tem como repertório a memória que permite conhecer e experienciar a realidade do passado e do presente, é a materialização da cultura de outros tempos que percebemos tão presente em nosso dia a dia. Como a sociedade está em constante transformação é importante resgatar a história e os costumes de nossos antepassados como forma de sustentação dos saberes e dos valores atuais”.

Além disso, Michele acredita que as contribuições dos museus estão por toda parte. Penso que fortalece a educação, fortalece o desenvolvimento da consciência e estimula laços de identidade e cooperação baseados nos interesses comuns da sociedade é um passo importante para o fortalecimento de redes de trabalhos solidários que visem o empreendedorismo local, desta maneira o museu contribui significativamente para este senso de pertencimento entre as caboclas e caboclos do território propiciando a produção coletiva desses pares, tendo como base a valorização da imagem e da identidade dos caboclos, bem como das potencialidades locais”, disse.

O Estado de Santa Catarina e sua responsabilidade com o Contestado

Deputado Estadual, Pe. Pedro Baldissera. Foto: Arquivo Pessoal.

O olhar de desprezo da maior parte dos líderes do governo do Estado para com a Região do Contestado é histórico. Por isso também, a construção dos dois museus significa tanto, isso porque, existe um processo de luta popular que conduz e edifica, literalmente, essas duas obras. O Deputado Estadual Pe. Pedro Baldissera (PT) comenta que não existe uma atitude política do Estado que permita investimentos para se reduzir pelo menos, por exemplo, a desigualdade social na região. “Se tivesse uma preocupação objetiva tomaria como primeira atitude uma política de investimentos públicos maciça que permitisse a reparação efetiva da desigualdade na região. Uma desigualdade que também foi causada pelo Estado. Falando em termos de saúde apenas, nós não temos um só hospital público na região. Para além disso nas questões de educação de moradia o estado olha para o Contestado buscando a riqueza natural econômica e o trabalho da sua população. Se aproveita disso e não dá o retorno necessário”.

Para o deputado, um projeto como o museu e o Cecap e diversos outros deveriam ter do Estado não só investimentos, mas atenção objetiva para estruturação. “Por que isso significa autonomia, significa um espaço em que a região pode a partir do seu trabalho construir uma alternativa não só de alavanca econômica, mas principalmente de construção do seu imaginário e da sua consciência histórica. Eu sempre tive a opinião de que a organização e a luta da população é o que vão fazer a diferença. O episódio em que a Bíblia conta sobre a multiplicação dos pães e do peixe fala muito sobre isso sobre a organização. O que Jesus quis dizer naquele momento foi que organizem se dividam solidarize-se. E é isso que a organização popular vai garantir ao nosso povo. A luta das nossas populações e a organização dos movimentos e entidades é o que traz o avanço porque ela também apresenta as pautas e também as necessidades objetivas”, enfatizou.

Ainda, sobre o desprezo do Estado, o professor Paulo Pinheiro Machado acrescenta: “O Estado não existe em abstrato, ele representa diferentes configurações de domínio político das oligarquias catarinenses. Por muito tempo o Contestado foi um assunto silenciado, ignorado pelas redes escolares, por intelectuais e por políticos. As oligarquias dominantes na política catarinense ao longo do século XX – os Konder\Bornhausen e os Ramos – não se interessaram por esta memória”.

Paulo Pinheiro também seguiu dizendo que o grupo Konder-Bornhausen, representante da classe dominante do Vale do Itajaí e com fortes raízes na região colonial alemã, sempre buscou uma identidade catarinense branca, ligada unicamente à imigração. “O grupo dos Ramos, pelo fato da Guerra do Contestado iniciar durante o governo de Vidal Ramos, a oligarquia dominante no período, que transacionava com a Brazil Railway e com a Lumber and Colonization, em detrimento dos Caboclos e Caboclas, também não se interessou por esta memória. O Contestado foi recuperado como parte do processo de redemocratização da sociedade brasileira, na virada dos anos 1970 e 1980, com a retomada das lutas camponesas, como Encruzilhada Natalino (1978), a ocupação da Fazenda Burro Branco (1981), o movimento dos atingidos pelas barragens e o Movimento dos Sem terras. Nos anos 1980 o Estado tentou se apropriar desta memória, através de iniciativas do Governo Amim de criar uma “identidade catarinense”, que seria centrada no “Homem do Contestado”. Tratava-se de um discurso ambíguo, pois ao mesmo tempo que recuperava a memória da Guerra, fazia um apelo aos “pequenos”, transformando o “Homem do Contestado” em “ancestral” dos pequenos agricultores de origem imigrante. Nas últimas décadas, a memória do Contestado tem sido reapropriada por setores das classes populares, virando uma memória dividida, disputada com setores dominantes desconfortáveis com estas lembranças, que buscam retomar o processo de branqueamento, tal como está claro nos últimos episódios sobre a mudança de denominação turística da região”.

Ana Maria, que é responsável técnica pelo Museu da Cidade Santa do Taquaruçu e Casa da Cultura Lydia Frey, reforçou também que a Região do Meio Oeste foi de suma importância para o “desenvolvimento” econômico através da grande exploração de madeira e de terra. “Contudo não há reconhecimento por parte do poder público porque no instante em que cessou a abundância de matéria prima na região ficou no esquecimento e no empobrecimento. De modo que as pessoas que foram as produtoras de riqueza não fizeram parte da divisão dessa riqueza, produziram e não receberam. Passado e presente se confundem hoje em uma dívida apresentada em números de índices de desenvolvimento social e econômico baixos e sem políticas de atendimento e desenvolvimento para a região”.

Pe. Pedro Baldissera pontua ainda que em razão desse olhar de desprezo proposital do Estado, é fundamental o trabalho que as organizações sociais estão fazendo, na luta e garantia de espaços de história, pesquisa, conhecimento e construção de consciência crítica. “É fundamental porque significa um resgate da história e da luta de todo povo da região do Contestado. Este é o ponto fundamental e a primeira razão: nós precisamos olhar para as raízes do nosso povo e valorizar toda diversidade e luta que foi construída aqui. Num segundo ponto, há uma importância econômica e cultural nisso. É atrativo turístico, movimenta a economia da região e cria também uma identidade local que, se bem trabalhada, pode significar renda e emprego para muitas pessoas. A criação de um circuito, de uma rota, de um roteiro, envolvendo a história do Contestado, hoje, no Brasil, é sinônimo de atração para a visitação de milhares de pessoas”.

Ele encerra dizendo: “É como se eles pudessem, a partir desse espaço, reviver suas raízes e constituição de cada bairro e cada cidade. Nossos jovens, infelizmente, não contam com isso hoje. A materialização da história, que é o papel do museu, é educação, é cultura e, também, libertação a partir da consciência histórica”.

Professor Rodrigo Cabral, do IFC de Fraiburgo. Foto: Arquivo Pessoal.

Para o professor Rodrigo Cabral, do Instituto Federal câmpus Fraiburgo, a abertura dos museus no bairro operário do São Miguel é um marco em termos de ensino, pesquisa e extensão. Rodrigo conta que alunos do IF estão construindo um app educacional sobre o Contestado. “A ideia é que o aplicativo possa integrar o acervo do museu, proporcionando aos estudantes e visitantes uma experiência interativa”. Para o professor, a criação do museu possibilita uma ponte entre o Instituto Federal e a APAFEC, da qual, espera-se, possam surgir novos projetos, oficinas e eventos.

 

 

 

 

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