Casaldàliga. O poeta não morre. O seu canto está na natureza e no seu povo.

Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.

Demagogo, comunista, fariseu, delirante, indocumentado, homem de má-fé, provocador” (Jornal O Estado de São Paulo, sobre Pedro Casaldàliga, em 1976).

Oi Flávio. Esse Padre Pedro, coitado, que faleceu hoje é da Catalunha essa onde tu vive, né?”. (de uma amiga brasileira, minutos atrás).

“Escuché el nombre de Pere Casaldàliga, por primera vez, en Pernambuco, hace más de 20 años. Dom Hélder Câmara, explicaba de forma divertida una historia dónde él, Dom Hélder, insistia en llamar Don Pedro Casaldàliga como PÊRA, como la fruta: es un hombre dulce como la fruta; una de las que más me encantan, decía Dom Hélder, obispo y poeta como Pedro. La pronuncia del nombre PERE, escrito en catalán, suena como PÊRA, la fruta” (O Catalão mais importante do Brasil. Um texto escrito por mim, em 2014).


Eu até pensei que Pedro, depois de tantos anos fora da Catalunha, já não seria tão conhecido pelas novas gerações de jovens como esses, que protestam nas ruas”.

Migrar à Catalunha me possibilitou conhecer algumas pessoas que eu sempre penso que não teria a menor chance de conhecer se não tivesse feito a travessia do Atlântico ao Mediterrâneo – há exatos quinze anos. Escutei, em Barcelona, essa frase aí de cima, da boca de Leonardo Boff, apresentado por uma amiga colombiana, Sandra Campos (num ato organizado por sua ONG, Imago).

Pensei muito no que Leonardo nos disse, pois sei que migrar seria algo como convidar-se ao esquecimento de quem fica. Pedro, como poucos, conseguiu ser muito bem lembrado, fracassando no seu humilde desejo: “Não é necessário querer mais nada de Pere Casaldàliga. Queiram o Evangelho. Um santo dizia que quando morresse pedissem a Deus: esqueçam minhas boas obras. Eu digo que se esqueçam da minha herança. Não se esqueçam das minhas causas, mas do modo como eu vivi, sim: esqueçam”. Assim declarou no El País, a Francesc Relea.

Todo migrante, até mesmo o mais modesto, não quer ser esquecido na sua terra. Eu queria mais. Eu queria ser Pedro.

Um Consulado é, definitivamente, um lugar de burocracia. Paco Escribano, jornalista de prestígio na Catalunha e biógrafo de Casaldáliga (“Descalço sobre a terra vermelha”), dirige uma produtora audiovisual chamada Minoria Absoluta. Apresentou-me Gloria, sobrinha de Pedro. Numa segunda-feira, recebi um pedido de ajuda. O Governo Dilma havia aprovado a entrada de produções estrangeiras na Lei de captação de recursos para o audiovisual e um potente projeto, envolvendo a Rede Brasil, estava travado na burocracia. Com a ajuda de um Embaixador, admirador da poética vida de Pedro, foi mais fácil destravar aquela dificílima viagem de dezenas de artistas catalães a São Félix do Araguaia do que convencer Dom Pedro a manter o Prêmio de Direitos Humanos que criamos no seu nome. É famosa a forte personalidade do bispo, exageradamente modesto e humilde na hora de negar homenagens que não sejam para “o seu povo” e que estejam centradas no peso do seu fortíssimo nome. Por mais exitosa que houvesse sido, naquele ano 2012, a cerimônia de entrega dos Prêmios Pere Casaldáliga na Livraria Claret (sua congregação, em Barcelona), tive que ajudar meus chefes a redigir o Telegrama explicando ao Itamaraty que o Prêmio não mais se repetiria “porque o Bispo, SIMPLESMENTE, não queria”.

Eu havia publicado uma entrevista “recheada de Pedro” com o amigo Luiz Canuto, fundador – ao seu lado – da Comissão Pastoral da Terra, CPT. Canuto me deu o telefone do Padre Paulinho, que sentava com Pedro duas horas por dia na frente do computador, segundo Canuto, a responder e-mails e cartas. Fazia anos que eu recebia, a cada Natal, um cartão e um poema assinados por Pedro – sentindo-me, evidentemente, uma pessoa querida e importante (igual que as centenas ou milhares de pessoas que também recebiam). Ao telefone, lá do Araguaia (eu, em Barcelona), O Padre Paulinho dizia que Pedro nos sorria dizendo que “depois que ele morresse, um dia, poderíamos voltar a fazer”.

Hoje sinto e ao mesmo tempo tento compreender essa tristeza que me invadiu o coração com a notícia da (esperada, diga-se de passagem) morte de Dom Pedro.

Lembro-me de um índio Xucuru que me disse, quando o latifúndio assassinou o seu cacique, Xicão, que havia ficado triste e feliz ao mesmo tempo: a morte de um sábio nos ensina a amar a vida.

Acabei de ver a mensagem e a foto de Lula com Pedro, sentados no chão da terra vermelha que todos amamos. A terra sempre ameaçada dos povos indígenas do nosso Brasil.

Inúmeras vezes contei a história do sorriso de Lula, em Barcelona, quando veio receber o Prêmio Internacional Catalunha. O mesmo Prêmio que Pedro havia recebido. Assim mencionava Lula em todas as entrevistas concedidas no Hotel Majestic, ao lado de Felipe González e no Palácio do Governo da Catalunha, ao lado dos presidentes espanhóis das centrais sindicais UGT e Comisiones Obreras. Sabíamos que naqueles mesmos dias, no Brasil, o latifúndio novamente ameaçava Pedro de morte – em meio a outro velho conflito de terras indígenas. A mesma morte de quando Pedro carregou o corpo ensanguentado e já sem vida do Padre Bosco, no ano 1976. Sorrimos, mesmo preocupados, quando o Adido da Polícia Federal em Madri explicou-nos a relutância de Pedro em não subir no helicóptero da PF que tentava proteger sua sempre ameaçada vida. “Daqui não saio; daqui ninguém me tira”. Quando o fotógrafo de Lula, Ricardo Stuckert, mostrou-nos a matéria grande do jornal catalão ARA, trazendo a frase em que Pedro repetia o que Lula já imaginava (“Lula adotou uma política neoliberal”), o ex-Presidente sorriu de novo. Disse em seguida que, sinceramente, agradecia a coragem de Pedro em repetir o que ele não gostava de ouvir. E, por fim, admitindo que fosse justamente isso o que todo político necessitava, assinou a carta que preparamos especialmente no Coletivo Brasil Catalunya, de Lula para Pedro.

– Mas Pedro, você fala de pecado social. E o pecado pessoal? Perguntou-lhe o Papa, quando chamou Pedro ao Vaticano.

– Na Romaria dos Mártires, em Ribeirão Bonito, Santo Padre, queimamos na fogueira penitencial tanto os pecados pessoais como os sociais, enumerados explicitamente, uns e outros… O mesmo Papa disse várias vezes, na América Latina, que os ricos são cada vez mais ricos, ao custo de que os pobres sejam cada vez mais pobres. Esse “ao custo de”, é uma questão estrutural. E, se me permite uma palavra escandalosa, “dialético” – além de estrutural.

Assim está datilografado o relato por Pedro, nos documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia, em junho de 1988. Para nossa imensa sorte, a Bibliotecária dos arquivos da Prelazia, passou a morar na Catalunha.

Explicou-nos no jornal El País, no verão de 1992, o brasileiro Carlos Galilea, depois de escutar Milton Nascimento cantar a Missa dos Quilombos em Santiago de Compostela: “Mais de uma pessoa na hierarquia do Vaticano teria se espantando escutando a Missa dos Quilombos composta por Casaldàliga, Milton e Pedro Tierra” – estreada em Recife, no Dia da Morte do líder da resistência negra Zumbi dos Palmares, no ano 1981.

Pedro cumpriu até o final da vida a promessa de nunca haver retornado à sua terra, a Catalunha. Hoje sim, o sentimos aqui.

Das últimas visitas recebidas pelo catalão, uma comitiva do MST doou produtos da Reforma Agrária para a comunidade religiosa que estava cuidando do seu gravíssimo estado de saúde. Pedro não cansava de repetir que quando chegou a São Féix do Araguaia, em 1968, ano que a ditadura militar brasileira aplicou o Ato Institucional mais repressor, o AI-5, o primeiro fazendeiro que lhe ameaçou era dono de um território (a fazenda Suyá Misú; nome indígena, terra indígena) igual à superfície de toda Astúrias, na Espanha. Tempos depois, o representante do Vaticano, Carmine Rocco, “recomenda” que Pedro (padre poeta e escritor) pare de conceder entrevistas. Pedro lembrou que o Papa foi o primeiro Chefe de Estado (“um insulto às outras religiões”) que visitou o ditador espanhol Francisco Franco – único entre os três nazifascistas europeus, Hitler e Mussolini, que morreu na cama, Franco, com honras de Chefe de Estado, sem ser condenado depois de tantos crimes de guerra.

Acabei um texto em castelhano, sobre Pedro, no ano 2014, narrando um fato engraçado com sua sobrinha Gloria, minha querida amiga, que tão bem me acolheu no Comitê de Apoio ao MST em Barcelona e na Associação Araguaia. Devolveu-nos uma homenagem que havia recebido no Consulado do Brasil em Barcelona, no Dia Internacional da Mulher. Outra Casaldáliga que não aceitaria homenagens?! “Flávio, obrigado, mas esse Diploma não é para mim”… Gloria trocou o seu envelope com o de outra homenageada, sem querer. Houve um involuntário intercâmbio do seu Diploma com o de Mar Rubiralta. Com ela, organizamos, juntos, a entrega do Prêmio Pere Casaldàliga. Aquele Prêmio, que voltaremos a conceder…

Y, por fin, me llamó también tu muerte

Desde la seca luz de Vallegrande…

Somos amigos

Y hablo contigo ahora

A través de la muerte que nos une;

Alargándote un ramo de esperanza,

¡todo un bosque florido

De iberoamericanos jacarandás perennes,

Querido Che Guevara!

(Trechos do Poema Che Guevara, de Pedro Casaldáliga).

E continuo…

E, por fim, me chamou também tua morte

Daqui de perto da luz seca de Balsareny, terra onde nascestes.

Somos amigos

E falo contigo agora

Através da vida que nos une;

Com todos os ramos de esperança que nos deixastes,

Todo un bosque florido

De ibero-americanos jacarandás perenes.

E, se me permites, Pedro,

Em um dia quente de verão catalão:

Refrescado pelas águas do nosso Araguaia

E pela poesia do catalão mais importante do Brasil.

Querido Casaldàliga!

Flávio Carvalho, Puigdàlber, 8 de agosto de 2020.

Flávio Carvalho é sociólogo, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya.

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