Cartas à Madeira

madeiraPor Raul Longo. 

Um amigo e companheiro de antigas lutas que teve de buscar outros campos para escapar da batalha que, então, perdíamos; escreve-me muito preocupado com a difícil situação em seu refúgio.

Ele não é o único. Há outros alarmados com as dificuldades que enfrentam por todo o Hemisfério Norte, onde há anos construíram grande parte de suas vidas, aprimorando-se em novas atividades, adquirindo novos costumes, assumindo novos afetos e relações diversas.

Nenhum desses perdeu memória do Brasil e é com sentimento e orgulho que constantemente lamentam a distância e a saudade de nosso sol, como se esquecidos do que aqui foram submetidos nos tempos de guerra. Na verdade não esqueceram nada, mas calam as recordações do horror para lembrar apenas as carícias da cordialidade de nossa natureza e da nossa gente.

Por elas muitas vezes lhes transpassa uma vontade aguda do regresso. No entanto, apesar da vontade como “largar tudo e ir embora”, conforme o desabafo do amigo em sua última carta relatando a vileza da usurpação de que os europeus têm sido vítimas.

Por conhecer seu inquebrantável humor e disposição de infundir estímulo a todos, doe-me fundo o tão pouco que me é possível fazer para retribuir a esperança que a mim infundiu nas vezes em que era eu o abatido pela realidade.

Senti-me na responsabilidade de dizer-lhe algo mais do que apenas um “tenha paciência”. Afinal, sempre me apontou alternativas, sugeriu opções de promissoras tentativas. Mas como acenar-lhe esperanças se as notícias que recebo, os comentários que ouço e todas as informações apontam para o agravamento.

Em vão tentei analisar a situação à procura de algum alento ao amigo. Lembrando chavões conformadores: “Não há mal que sempre dure”, ou “Depois da tempestade vem a bonança”, busquei na história, da mais recente a mais remota, algum exemplo para embasar esses dísticos vazios por si só. E acabei compondo uma análise enorme.

Não sei se tenho acuidade suficiente para confiável assertiva em tudo que deduzi, mas procurei lhe ser o mais detalhado possível para que possa formular suas próprias conclusões.

Sejam quais forem, sei que lhe serão muito difíceis. Já teve de abandonar uma vida e nessa altura abandonar outra pode resultar num exaustivo recomeço, ainda que também se deva considerar a possibilidade de ser gratificante pelas novas e maiores oportunidades que agora aqui existem, além da satisfação de suas tamanhas saudades.

Já regressei a lugares em que vivi e muito amei, mas em momentos que me foi muito sofrida a dor de encontrar esses lugares degradados no físico e na alma de sua gente. Não quero isso para meu amigo, mas temo ainda mais que dentro de algum tempo sofra o arrependimento de não ter retornado quando ainda possível.

A intenção era retribuir-lhe o mesmo entusiástico estímulo que por cordialidade sempre procurou me infundir, mas a realidade em que baseei minhas observações não permitiu esse entusiasmo. Por outro lado, por mim mesmo considero o quanto me seria duro mais uma vez me lançar ao inesperado que antes me fascinava, mesmo quando obrigado a partir ao seu encontro. Chegava a brincar imaginando a intolerância pelo que pensava e escrevia como um compulsório bilhete de viagem turística. No entanto, por condições inerentes à vida, o outrora fascínio hoje se constituiria em grande receio e acredito que o mesmo aconteça ao meu amigo. Por isso não posso ser irresponsável e devo ter cuidado para não emitir um conselho desastrado e para evita-lo me restrinjo ao detalhamento de observações pessoais na expectativa de que lhe sirvam de elementos para sua própria ponderação.

O resultado deu-se em uma carta muito longa que preferi dividir em partes, como capítulos, e a torno uma carta aberta porque muitos são os amigos na mesma situação em outros lugares do mundo. Também posso imaginar que dos que leem meus textos, não poucos mantenham relações, pela internet ou de qualquer outra forma, com latino-americanos em situação idêntica à desse amigo na Ilha da Madeira.

Talvez possa ser útil:

CARTAS À MADEIRA – Origens da Usurpação

Não quero te infundir pessimismo, mas tenho de ser realista sugerindo que consideres a possibilidade de necessária programação sobre o futuro de vocês. Sei o quanto nos seria desgastante, na idade a que chegamos, refazermos caminhos ou inventarmos outros, mas refleti sobre muitos fatos e indícios para retribuir tuas tão cordiais sugestões nos momentos em que, por motivos muito menores, me abatia o desânimo.

Fosse tão irresponsável quanto esses analistas da mídia brasileira a prever hecatombes onde ocorre bem aventuranças ou sucessos onde se dá em desgraças como as com que te oprimem aí, eu estaria na TV, numa coluna de jornal ou revista; mas não seria teu amigo e o trataria como a um idiota, como aqueles tratam seus leitores e espectadores.

Sei muito bem que não és idiota e não vou te mentir esperanças vãs. Preferiria não fazê-lo, mas tenho de admitir que as preocupações da Gabriela sejam mesmo muito procedentes.

Terei de me estender aqui e peço tua paciência para acompanhar minhas análises baseadas em notícias, comentários de amigos e conhecidos, fatos atuais e passados. Percebo tua aflição e a única forma em que posso ajudá-lo é sendo minucioso no que observo, para que tire tuas próprias conclusões.

Erros e acertos no que se pode deduzir do que exporei aqui, tu é que terá de avaliar, mas antes quero começar por considerações a respeito de nossa individualidade, lembrando as diferenças entre individualidade e individualismo, duas palavras parecidas, mas de sentido bastante diferente.

Início por estas considerações porque momentos como esses – já vividos no mundo – acirra o sentido de uma dessas palavras e reduz o da outra. Não há como fugir do exemplo mais próximo e trágico da história do mundo, quando o acirramento do individualismo levou à execução do maior crime da história da humanidade: a desnecessária explosão atômica em Nagasaki e Hiroshima. E a redução da individualidade transformou milhares de jovens de uma das mais notáveis e brilhantes civilizações, em horda de bárbaros sanguinários.

Hoje, provavelmente mais do que nunca, a individualidade de cada um de nós está associada ao que ocorre em todo o mundo e ao sistema que determina os comportamentos das mais isoladas sociedades e comunidades humanas.

Como muitos, tentamos lutar contra o sistema implantado em nosso país numa época que sempre nos será impossível esquecer. Também nos decepcionamos ao perceber que a própria luta que assumimos então, construía outro sistema de rebaixamento da individualidade humana. E foi quando muitos de nós procuraram salvaguardar a individualidade optando pelo afastamento do sistema. Não por individualismos, pois sabemos que individualismo e sistema alimentam-se um ao outro e um do outro. Buscamos maior independência à nossa individualidade e vida mais saudável ao nosso físico, mente e caráter.

Chegamos a nos felicitar acreditando termos escapado do sistema, ainda que lamentássemos ser apenas uma conquista individual, mas o que agora te ocorre demonstra que não escapamos coisa alguma. Nem tu, nem eu nem ninguém, onde quer que esteja, pois a realidade desse momento revela que a única forma de escapar do sistema, é destruindo-o.

Uma realidade bastante perceptível, mas uma pretensão que parece impossível. Sem dúvida o é pelo individualismo que só alimenta o sistema, sempre o será enquanto não preservarmos nossa individualidade, mas nos resta considerar se o próprio sistema não será autodestrutível como previu Karl Marx.

Houve anteriores. Como se derrubaram aqueles sistemas? Ou não se os derrubou, apenas derrubaram-se pelos próprios erros e excessos, ou por seus próprios processos como os que Marx indicou no capitalismo?

E como cai um sistema? No dia em que chega uma horda de bárbaros? Na derrubada de uma Bastilha?

Apenas o que posso tentar é demonstrar alguns aspectos sobre as origens e a evolução do que até aqui se chegou. Sei que isso não te ajudará em nada, mas talvez apontando alguns nós da malha da grande rede do sistema, coopere participando desse “que fazer?” em que te encontras agora.

Não posso te sugerir nenhum “fazer”, mas num desses nós que pude enxergar no mergulho ao fundo das águas da história para descobrir os pontos das malhas da rede do sistema, talvez descubras o que não deve ser feito.

Romanticamente brincas anunciando-te como ermitão. Além de poético, assim expressas tua admirável resistência pela individualidade que todos deveriam preservar a qualquer custo. Mas há uma realidade da condição humana, muitas vezes não considerada, que tenho de abordar aqui para entendermos onde a inexorabilidade do sistema nos atinge, destruindo-nos pelo individualismo.

Observando a história de nossa espécie podemos deduzir que talvez tenhamos iniciado nossa associação uns ao outros, a partir do momento em que descobrimos que as condições para nossa sobrevivência são mais interdependentes entre os indivíduos de nossa espécie, do que a independência de nossa individualidade gostaria. Como animal necessitamos de mais alimento do que o que temos condições de produzir ou obter por qualquer outra providência própria. Graças a essa condição inerente à nossa espécie tivemos de descobrir mecanismos de relações comunitárias que preservasse nossa individualidade vivendo em conjunto, integrados a uma sociedade. Mas a fome do sistema não se faz com um ou alguns peixes e transformou nossa sociedade em um cardume.

 Não a única, mas esse cardume é uma das grandes fontes de recursos para a manutenção do sistema. A sociedade de consumo, erigida a partir da Revolução Industrial ainda é uma das bases do sistema. Enquanto o for sempre será incomoda ao sistema, mas evidencia-se que a evolução tecnológica em algum tempo tornará o cardume inútil e desnecessário. Claro que não de um dia para outro, mas paulatinamente como paulatinamente irá sendo eliminada.

Parece ficção científica, mas inúmeras observações que denunciam e outras comprovam esse processo já em curso há algum tempo. Paulatinamente…

Ainda, por enquanto, a indústria continua produzindo e os meios de comunicação cevam as águas do mercado, chamando o cardume para as malhas da rede do sistema.

Na década de 1970 muitos de nós acreditamos poder escapar da rede do sistema consumindo apenas o realmente necessário para a manutenção física, confiando em nossas naturais potencialidades mentais e espirituais individuais. A ideia era entusiasmante, pois dessa forma recuperaríamos a individualidade perdida pelo cardume, sobrevivendo daquilo que produzíssemos individualmente.

Uma bonita e alegre tentativa, mas tão improficiente quanto se a percebeu lá nos primórdios da humanidade ao se descobrir que aumentando a família não se encontraria a solução, pois cada um a compor o contingente não significava apenas aumento de produção, mas também aumento de necessidade do produzido.

Talvez por tal evidência se constituíssem os primeiros clãs, promovendo uma união de forças que possibilitasse o suprimento das necessidades de todos. Entre algumas tribos indígenas mais afastadas das sociedades ditas civilizadas pude observar que essa ideia deu certo, mas ali também colhi relatos de períodos em que os bons resultados foram ameaçados por outras ideias surgidas exatamente em função do aumento das forças do clã.

Ao se constatar a força de alguns clãs como ocorreu entre todos os povos ditos primitivos do mundo, surge essa nova ideia muito simples que posso reproduzir na mesma pergunta que provavelmente algum integrante de um desses primeiros clãs fez a si mesmo: “Se a força da união do clã é tão produtiva, por que apenas produzir e não usar dessa força para tomar o que o que clã mais fraco ou menos unido produziu para si”.

Deu-se, então, o primeiro nó. Mas daí a tecer as demais malhas da rede do sistema capitalista ainda tem muita história e conto depois. Por enquanto só peço que não se desespere. Sabes que quanto mais te debateres, mais te enleias. Como disse, sei não ser fácil decidir em ir-se, até porque não há muito aonde ir. Mas ainda tens a perspectiva do voltar.

Não tenho condições de te oferecer indicação segura para nenhuma das possibilidades, até porque sequer imagino quais sejam tuas disponibilidades. Mas é quanto à terceira opção, a de ficares onde estás, que pretendo te dispor minhas observações. Talvez, certas ou errôneas, te ajudem como parâmetros para alguma conclusão sobre o que não fazer.

 Mapa: www.portimar.pt

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