Carta aos eleitores judeus de Bolsonaro

Foto: Reprodução da internet

Por Hannah Farbiasz.

Na escola judaica onde estudei a vida toda, uma das maiores preocupações era manter a memória do Holocausto viva. A máxima sempre foi “lembrar para não se repetir”.

A primeira lembrança que tenho sobre isso foi na 7a série, quando lemos um livro chamado Hayeladim me rehov Mapu, ou As crianças da rua Mapu, que mostrava o ponto de vista de crianças judias da Lituânia durante a 2a Guerra Mundial.

No 1o ano, nos preparamos para a Marcha da Vida, viagem que visita os campos de concentração poloneses, vendo filmes sobre o assunto – A Lista de Schindler, O Aprendiz, Heroi por Acaso, Fievel, Matemática do Diabo, Fuga de Sobibor (eu já gostava de cinema e me lembro bem de cada um deles).

Lembro, também, uma palestra que tivemos com um sobrevivente do Holocausto, em que ele contou que, um dia, se escondendo da polícia nazista, ele, sua família e outra família judia se enfiaram em um armário na casa de alguém. A mulher da outra família tinha um bebê no colo e, pra abafar seu choro e evitar que as autoridades os encontrassem, colocou um pano por cima da criança e segurou com força. Quando os policiais deixaram o local e eles por fim saíram do armário, viram que a mãe tinha matado o bebê asfixiado sem querer.

Em Auschwitz, vi pilhas e mais pilhas de cabelos raspados pelos nazistas. Em Majdanek, uma imensa pilha de cinzas de judeus carbonizados em fornos do campo. Nós fizemos um círculo em volta das cinzas e algum professor falou sobre, novamente, lembrar pra não repetir.

Cresci acreditando que nada parecido aconteceria novamente na história. Imaginava que, se surgisse a mera ameaça de algo do tipo, as pessoas não deixariam que fosse pra frente. Imaginava que tínhamos aprendido com os erros do passado.

Ontem (7 de outubro) vocês me mostraram que eu estava errada. Não estou dizendo aqui que seu candidato, assim que eleito, vai abrir campos de concentração pra exterminar a comunidade LGBT. Não estou dizendo que ele vai pessoalmente perseguir e assassinar o povo negro. E nem seria preciso. A violência simbólica que ele representa já é o suficiente. As coisas que ele disse que apoia já são suficientes pra colocar minhoca na cabeça de pessoas odiosas, e elas, sim, vão se sentir (já estão se sentindo) no direito de ameaçar e agredir minorias políticas.

Basta observar como, em poucas semanas, surgiram gritos de “ô bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar viado”. Agora, imagina se o grito, dentro de um metrô cheio, em horário normal, fosse “ô judaria, sua hora deu, o Bolsonaro vai matar judeu”? As coisas mudariam, certo? Abririam uma investigação pra tentar descobrir e punir os envolvidos, falariam em evitar pegar o metrô, fariam correntes no whatsapp contra o candidato.

Por que, então, sendo com o próximo, vocês escolheram fechar os olhos?

Por que as pessoas queimadas no campo de concentração durante o Holocausto te comovem, mas as mulheres torturadas com ratos na vagina durante a ditadura não?

Por que os prisioneiros mortos de fome pesando 30 quilos te comovem, mas o jovem homossexual morto com uma mangueira enfiada no cu não?

Por que o medo da tua família, que fugiu da Europa nazista, é maior que o medo de uma mãe preta que se despede todo dia do filho sem saber se ele vai voltar pra casa?

Por que chamar um judeu de mão-de-vaca narigudo te deixa indignado, mas chamar um indígena de fedorento não-educado, não?

Quando foi que começaram a relativizar o ódio e a perseguição? Ou vocês sempre relativizaram, e eu que não via?

Não me interessa se o seu candidato, o “mito”, tá na corrida contra PT, PSDB, PSOL. Você está relativizando ódio e perseguição. Ódio e perseguição que, em outro local e época, foram voltados contra a gente.

Pra mim, só isso já seria motivo suficiente pro cara nem concorrer à presidência, quem dirá pra receber uma parcela tão esmagadora de votos.

Não se trata da economia, da política, da corrupção. Nada disso me importa ou me abala, na boa. Se trata da vida de pessoas. Pessoas que existem, que estão andando aí, na rua, hoje, com o coração estraçalhado que nem o meu.

Vocês estão fechando os olhos pro que pode acontecer com elas. Com os meus amigos, com a minha família, comigo. E, se acontecer algo com algum de nós, vocês terão as mãos duplamente sujas de sangue.

A culpa vai ser, também, de vocês.

Cresci acreditando que estávamos caminhando pra um mundo em que a gente nunca mais precisaria se esconder dentre de um armário (literalmente). Não imaginava que pessoas da nossa própria comunidade poderiam se mostrar tão hipócritas, egoístas, mesquinhas. O “lembrar pra não repetir” vai só até a segunda página, pelo visto.

Vocês não se importam com um novo Holocausto, vocês só não querem que sejamos o alvo.

Sinto muito por termos falhado tanto. Sinto muito por ver vocês colocando a vida de pessoas numa balança. Não me interessa o que está do outro lado. A nossa vida pesa mais.

PS
Aos que não se posicionam e/ou vão anular ou votar em branco: se você se mantém neutro em situações de opressão, você escolheu o lado do opressor. Tem sangue nas suas mãos também.

1 COMENTÁRIO

  1. A ‘carta aos eleitores judeus” é um texto muito bem escrito, muito emotivo sem prejuízo de sua lucidez. Parabéns Hannah.

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