Carta ao Feminismo Negro

mulheresAs mulheres negras da Plataforma Gueto receberam uma carta que não podem deixar de partilhar. (Português de Portugal)

Carta ao Feminismo Negro (OUVIR PODCAST AQUI)

“Olá mulheres negras,

Desde sempre que o meu sonho foi contribuir de alguma forma para África. Estudar, adquirir um curso superior e regressar a África para ajudar o continente e o povo africano seria a melhor forma. Mas nada disso foi possível por circunstâncias da vida. Então pensei: não é por isso que vou deixar morrer o meu sonho.

Vim morar para um bairro ainda em barracas numa zona que agora é de habitação de luxo. Um dia fui convidada por um jovem para assistir à Universidade Amílcar Cabral da Plataforma Gueto. Foi lá que conheci um grupo de mulheres interessadas em agrupar-se a outras mulheres para formar o movimento feminista negro. E pensei: eis aí a minha oportunidade de pelo menos tentar fazer algo pelas mulheres negras do meu bairro, e como preciso de companheiras não vou perder a chance de conhecê-las e saber quais os seus objetivos.

Houve três palavras que me despertaram a atenção: mulheres, sexismo e racismo. O pequeno resumo feito do livro de bell hooks serviu para entender onde se encaixavam estas três palavras numa luta que poderá ser também a nossa. Se não posso realizar nada daquilo que queria em África vou tentar realizá-lo aqui, com os meus conterrâneos. E comecei a observar a vida do imigrante em Portugal.

Eu, os meus pais e os meus irmãos já havíamos passado por muitas coisas más devido ao racismo. O facto de todos os dias correrem connosco da escola à pedrada por sermos negros; de eu ser gozada na escola por estar sempre entre as melhores alunas, quando não era mesmo a melhor; o facto de termos de residir num barracão sem condições dispensado pela própria câmara municipal, isto porque tinham receio de nos pôr num prédio para não causarmos distúrbios, pois éramos seis irmãos na altura e sendo uma zona de pescadores havia receio de despertar uma reação racista. E assim foi. Pois na zona onde moramos foi feito um abaixo-assinado para nos retirarem de lá simplesmente por sermos negros. Só isso bastou para que a nossa presença incomodasse. As pessoas que fizeram isso só lá passavam o Verão, nem lá moravam.

Entretanto pensei que com o tempo as coisas melhorassem, mas não melhoraram.

No meu local de trabalho passei pelas piores situações, uma instituição ligada à igreja católica que faz trabalho social. O meu primeiro impacto negativo no trabalho foi quando descobri da pior forma possível que perguntavam aos utentes se preferiam ser tratados por um trabalhador negro ou branco. Procurei saber o porquê dessa pergunta, ao que me responderam que essa decisão tinha sido tomada pelos técnicos desta instituição e outras. Fiquei perplexa.

A realização deste tipo de trabalho social tem sido possível em Portugal graças às negras que vivem no país. Este facto foi admitido por uma formadora num curso de formação interna que tive, que nos disse que as mulheres brancas tinham nojo de tratar dos seus próprios familiares quando ficavam velhos, quanto mais de outros velhos que não eram seus familiares. Só mais tarde quando se deu algum, mesmo que pouco, valor à profissão de apoio domiciliário é que as mulheres brancas começaram a aderir a esta profissão. A sua situação nesta profissão tem sido bastante precária e temo que assim continue, pois apesar de tudo quem continua a dominar nesta profissão são as mulheres negras. Este trabalho continua a ser mal pago com um ordenado demasiado baixo para aquilo que fazemos.

Já me sindicalizei para ver como poderia concretizar os meus interesses, mas de nada me adiantou. Serei eu demasiado exigente? Pensei ainda se não seria possível criar um sindicato apenas nosso, das mulheres nesta profissão, mas por mais que tente fazer uma luta com as minhas colegas, não consigo porque é mais fácil tramarem-me do que ajudarem-me, apesar dos ganhos serem em proveito de todas.

Para além disso, vejo a situação de mulheres que trabalham em empresas de limpeza que por muito boas funcionárias que sejam, nunca conseguem progredir na profissão. Por falta de oportunidade, pela cor da pele, ou até mesmo por falta de confiança nelas próprias e por não se sentirem à vontade de ocupar um lugar de chefia. Pergunto como será possível prepará-las para a liderança? Mantê-las unidas por um sindicato comum de mulheres de limpeza, onde inclusive podem estar a par de todos os seus direitos como trabalhadoras. Promover em si mesmas a auto-confiança. Bastava que acreditassem.

Agora sobre a condição das mulheres negras, trabalhadoras, mães e esposas. A condição dos seus filhos na escola e em casa; os direitos e obrigações que as mães têm de participar na educação deles e os pais também. O patrão dispensa esse tempo? Com que condição? E o tempo disponível em casa para a educação dos seus filhos? Como é utilizado esse tempo? Como poderemos nos ajudar mutuamente? Os seus filhos como alunos têm direitos e também obrigações. Como cumprir tudo isto? Como apoiar as mães que precisam de ajuda na educação dos seus filhos, reconhecendo as capacidades dos seus filhos, orientando-os e valorizando as suas próprias opiniões. Como fazer com que as mulheres negras jovens se valorizem não apenas pelo seu aspeto físico e não se vejam apenas como um objeto sexual, mas como mulheres de valor?

Comecei recentemente a aperceber-me dos problemas de discriminação que poderemos vir a ter no bairro onde residimos com a proximidade à zona residencial de luxo, nas oportunidades de emprego e no impedimento ao acesso a escolas que se encontram nesse espaço e que pertencem também aos nossos filhos. Justificam esse impedimento por ser dada prioridade aos trabalhadores dessa zona que, por acaso, também não somos nós. Os pobres que ali moram ao lado. Estas escolas são públicas, têm condições que outras não têm dada a zona de luxo onde se situam e por isso, são desejadas por esse tipo de pessoas, aquelas que não nos querem por perto. Mesmo que moremos ali ao lado”

Todas as preocupações desta mulher negra podem também ser as vossas. Temos esperança que o movimento feminista negro por lutar contra o racismo, o sexismo e a exploração nos ajudar a deixar de sermos os que moram ali ao lado, longe dos olhos de quem rejeita a nossa cor negra.

Fonte: http://plataformagueto.wordpress.com/2014/04/09/carta-ao-feminismo-negro-podcast-e-escrito/

Foto: http://www.wiriko.org/

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