Carta aberta a Damares Alves, excelentíssima Ministra Da Mulher, Família e Direitos Humanos

Foto: Pixabay

Por Marcia Friggi, professora.

        Senhora Ministra, eu também fiz brincadeiras diante dos seu polêmico vídeo em relação as cores adequadas para meninos e meninas. Brincadeiras e deboches também são formas de resistência. Sua postura e suas falas, entretanto, exigem uma análise séria e demandam respostas.

        Há tempo observo seus vídeos que circulam na Internet e, como professora, sinto-me profundamente ofendida e humilhada. Venho percebendo seu empenho em colocar a sociedade contra a educação brasileira e seu magistério. Para ilustrar o que afirmo, além dos links de dois vídeos que seguem abaixo deste texto, vou citar algumas das suas afirmações que me têm deixado triste e profundamente revoltada. Sobre o famoso “Kit Gay”, Senhora Ministra, que jamais existiu e a senhora sabe disso, tratava-se na verdade, do “Projeto escola sem homofobia”, que seria voltado para os professores, não para os alunos. Nesse projeto, sequer havia o livro “Aparelho sexual e Cia”. Projeto esse que foi vetado pelo governo federal em 2011, devido ao fato de ter sido alvo de críticas dos setores conservadores, os quais, a senhora faz parte. Aproveito para alertar que muitas das escolas brasileiras, sequer possui biblioteca, a minha é uma delas. O que temos, no momento, é uma Kombi doada pela comunidade escolar e transformada em biblioteca através de um projeto meu.

        Frequentemente a senhora usa suas falas, nos púlpitos das suas igrejas, para difamar o trabalho dos professores, para nos colocar como responsáveis por todos os problemas de uma geração, inclusive nos ataca como agentes de “perversão” e “doutrinação”.

        Em um dos seus vídeos, a senhora menciona um material que supostamente faria apologia ao sexo com animais. Senhora Ministra, talvez a senhora não conheça muito bem a regulamentação do exercício do magistério. Nós, professores, somos fiscalizados pelos nossos superiores: coordenação, direção e secretarias de educação. Os materiais que utilizamos, os livros escolhidos e até mesmo as nossas provas, são analisadas e aprovadas pelas instâncias superiores antes que cheguem aos os alunos. Nós mesmos, em grupo, nos poucos momentos que temos durante o ano letivo para reuniões pedagógicas, discutimos, avaliamos e escolhemos, não apenas os melhores materiais, como nossas práticas pedagógicas. Nós não estamos para brincadeiras na nossa função, Senhora Ministra, possuímos formação e trabalhamos com seriedade porque reconhecemos a importância social do nosso trabalho.

        Nesses vídeos a senhora também se refere a um “suposto projeto” de 2004, com tom irônico, a senhora fala: “Não posso falar o nome da prefeita, não posso falar que ela é do PT e também não posso falar que foi esposa do Suplicy, mas juntamente com o grupo GTPOS, ela gastou mais de dois milhões de reais num programa”, programa esse, o qual a senhora criminosamente atribui a função de promover nas creches o incentivo a ereção e masturbação de bebês de sete meses. Com essa sua fala, a senhora coloca os pedagogos e pedagogas que trabalham com a educação infantil na condição de criminosos, mais do que isso, na condição de doentes pervertidos. Meus colegas pedagogos, senhora ministra, que tão atenciosamente cuidam das nossas crianças e neste momento abro um parêntese para lembrar a heroica professora Helley Abreu Batista que morreu, com 90% do corpo queimado, após retirar seus alunos de um salão em chamas e de lutar contra o vigilante que ateou fogo à creche, em Janaúba, norte de Minas Gerais, em 2017. Meus colegas pedagogos, senhora ministra, não cometeriam esse crime nem sob tortura.

        Aproveito para esclarecer o trabalho da GTPOS: “Surge do intercâmbio entre estes profissionais, com diferentes experiências de trabalho na área, uma proposta metodológica para a implantação de projetos de Orientação Sexual em escolas, baseada na convicção que a escola tem a responsabilidade social de contribuir para com a saúde e o bem estar sexual de crianças e adolescentes. O efetivo desenvolvimento destes projetos em redes públicas de educação e escolas particulares trouxe desdobramentos temáticos, sendo o principal deles a prevenção da Aids, diretamente direcionado à sexualidade e de importância fundamental na questão da saúde sexual. Especialmente no Brasil, os índices de infecção pelo HIV são alarmantes, e a epidemia direciona-se às camadas menos favorecidas da população.”

          A senhora, nos seus ataques, sempre focou a educação e o magistério brasileiro, esse ato não foi inocente, foi estratégico. Desmoralizar, humilhar, deslegitimar e demonizar os professores, colocar a sociedade contra nós e contra a educação, só nos enfraquece ainda mais. Como se já não bastassem nossos baixos salários, a falta de condições estruturais, a ausência e a falta de incentivo a bons cursos de formação continuada. Como se já não bastasse o desrespeito e a violência com que somos tratados em nossos atos de protesto, paralisação e greve, enquanto políticos protegidos e aquartelados, debocham das humilhações das quais somos vítimas. Ao nos enfraquecer, a senhora enfraquece a educação e isso lhe é extremamente útil e providencial. Um povo sem acesso à educação de qualidade é muito mais fácil de “doutrinar”, de transformar em “ovelhas”, em “inocentes úteis” e nós sabemos muito bem onde, verdadeiramente vem ocorrendo a “doutrinação” no Brasil e sob que circunstâncias e métodos.

        Vou falar brevemente, Senhora Ministra, sobre o que fazem os professores para muito além das suas atribuições. Somos nós que, na maioria das vezes, descobrimos que um aluno possui deficiência visual, porque na sala de aula temos parâmetros de comparação. O aluno está sentado na mesma distância do quadro que estão seus colegas, mas franze a testa, comprime os olhos. Somos nós que chamamos os pais e alertamos.

         Muitas vezes, Senhora Ministra, somos nós que percebemos um problema mais grave. Nossos olhos treinados e experientes conseguem detectar o aluno ou aluna que se isola, nega-se a realizar trabalho em grupo, não participa do recreio, tende a ficar no mesmo lugar e realizar movimentos repetitivos com o corpo. Somos nós que alertamos os pais e depois da avaliação médica, enquanto a família vive o luto de um diagnóstico de autismo, por exemplo, nós professores seguimos trabalhando métodos e estratégias para incluir esse aluno da melhor forma possível.

         Somos nós, Senhora Ministra, que muitas vezes percebemos a automutilação em alguns alunos e elas não se devem ao nosso trabalho de “doutrinação” como a senhora tenta afirmar ao dizer que confundimos as crianças com a “ideologia de gênero”. Os adolescentes que chegaram até mim com automutilação viviam um cotidiano familiar desestruturado. Desestruturado no seio da “família tradicional” que a senhora tanto defende. O que a senhora tanto propaga e demoniza como “ideologia de gênero” na realidade do chão da sala de aula, Senhora Ministra, é a exigência do respeito, é o cuidado com todos os alunos, é a luta contra o bullyng que pode destruir emocionalmente um aluno e até levá-lo ao suicídio. Nós enfrentamos salas de aulas superlotadas, lidamos com as particularidades de cada aluno e incentivamos o respeito para com todos, sem o qual, não seria possível ministrar uma aula.

        Somos nós, Senhora Ministra, que percebemos pela postura corporal, pelo silêncio, pelo olhar triste de quem suplica por socorro, quando uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual, violência essa, normalmente sofrida no seio da “família tradicional” que a senhora tanto defende. Somos nós, Senhora Ministra, que conversamos com essa criança, que ouvimos o relato do seu sofrimento, que tomamos as providências, que chamamos o conselho tutelar e somos nós que acompanharemos essa criança ou adolescente com atenção e cuidado redobrados.

        Finalmente, Senhora Ministra, são inúmeras nossas atribuições, as quais nos entregamos com amor e seriedade. Somos nós que estamos olhando, cuidando, educando, instruindo e ensinando as crianças e jovens deste país. Somos nós que protegemos essas crianças e jovens quando a família falha e quando o Estado falha.

        Esta minha carta aberta tem dois objetivos: pedir-lhe mais respeito para com a classe do magistério. Venho também, oferecer-lhe um conselho, desça dos seus delírios fakes, senhora ministra, pise no chão e encare a realidade. Porte-se com a seriedade que a importância do seu cargo exige. Deixe assuntos inúteis como cor de roupa adequada para seus colóquios no púlpito da igreja, No exercício da sua atual função como ministra, olhe para o magistério brasileiro com olhos da verdade. Olhe pelos quase seis milhões de crianças sem o nome do pai nos seu registro. Encare a quinta maior taxa de feminicídio no mundo e que vem aumentando assustadoramente, alimentada pela cultura do machismo e da violência. Olhe para os milhões de mulheres que, longe da família tradicional, criam seus filhos sozinhas e com dignidade. Olhe para as crianças e jovens que estão nas ruas, Senhora Ministra. Lembre-se que essas crianças não se perdem na rua, foram perdidas dentro de casa, no seio das famílias tradicionais ou não, negligenciadas pelo Estado, as ruas apenas as adotam. Olhe para os LGBTs e às violências que têm sido vítimas. O Brasil é o país quem mais mata LGBTs no mundo e temos visto esse número aumentar, incentivados pela cultura da intolerância.

        A senhora deve estar se perguntando: “Quem é essa professorinha petulante que me escreve essa carta aberta?” Vou facilitar para a senhora, vou me apresentar. Sou Marcia Friggi, professora de Língua Portuguesa e Literatura do Estado de Santa Catarina. Exerço meu cargo após ter sido aprovada em concurso público e submetida a rigorosos exames médicos periciais, além de ter passado pelos três anos de estágio probatório. Sou aquela professora que foi violentamente agredida por um aluno em 2017, caso que teve repercussão nacional e internacional. Sou a professora que, após violência física, sofreu linchamento virtual por parte dos eleitores que comungam das suas ideias. A senhora diz ter visto Jesus na goiabeira, Senhora Ministra, pois eu lhe digo que, naquele período, eu visitei o inferno e sobrevivi. Sobrevivi à depressão, à fobia social, a crises de ansiedade e insônia e à vontade de morrer. A tudo isso, talvez se deva a minha ausência de medo, apesar de todas as ameaças que seu governo vem fazendo ao magistério. Eu não tenho medo porque sou uma sobrevivente, porque na minha casa não há uma agulha sequer que não tenha sido comprada com o suor do trabalho honesto. Não tenho medo porque não ocupo e nunca ocupei cargo comissionado. Não tenho medo porque nunca dependi de favores políticos. Não tenho medo porque pelas minhas mãos jamais passou dinheiro público. Finalmente, Senhora Ministra, não tenho medo porque se ao seu lado está o governo atual e suas “ovelhas”, do meu está o mundo. Do meu lado está um mundo inteiro que não aceita mais retrocesso. Um mundo que deseja respeito para com todas as pessoas. Um mundo que não aceita mais discriminação, intolerância, preconceito, machismo, homofobia, xenofobia. Um mundo que deseja que uma mulher possa terminar uma relacionamento sem ser agredida ou morta. Um mundo que respeita a vida humana e a natureza. Um mundo que se pretende mais humano, justo e igualitário. Não tenho medo, Senhora Ministra, porque minha militância pelas causas que considero justas sempre foram exercidas nas ruas e no espaço virtual, nunca na sala de aula. Não tenho medo, Senhora Ministra, porque sou adepta da paz e minha única arma é a palavra e é dela que venho me utilizando como um instrumento de amor à vida, à liberdade, à arte e à resistência. Já participei de algumas coletâneas como escritora, minha última participação foi no “Mulherio das Letras”, o que muito me honra. Neste ano de 2019, lançarei meu primeiro livro de poesia, no qual estão muitos dos meus poemas de cunho social e de resistência. Está também, entre meus projetos mais importantes, o livro sobre “denúncia dos flagelos que sofre o magistério brasileiro”, o que considero de suma importância, considerando os constantes ataques e humilhações que sofremos.

Nos veremos, Senhora Ministra, nas batalhas pacíficas da vida, das quais eu jamais fugi.

 

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

1 COMENTÁRIO

  1. AS MINHAS MAIS GRATAS FELICITAÇÕES À SRA PROFESSORA MARCIA FRIGGI, UMA AUTÊNTICA RESISTENTE. ESTOU DO VOSSO LADO

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