Carlos Alberto Brilhante Ustra e a criação do sistema de repressão e torturas da ditadura

 

Coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra durante depoimento na Comissão Nacional da Verdade. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Por Joana Monteleone e Haroldo Ceravolo Sereza.*  

Intelectual “orgânico” do terrorismo de Estado e grande articulador dos crimes de ditadura militar, Carlos Alberto Brilhante Ustra morreu em 15 de outubro de 2015, aos 83 anos sem ser punido, mas seu espírito continuará perambulando entre nós, assim como perambula o do regime do qual se tornou um dos maiores símbolos.

Ustra foi o comandante do DOI (Destacamento de Operações e Investigações) paulista de 1970 a 1974. Ele não foi apenas um comandante: foi também o organizador de um aparato de informações e operações que tinha no terror de Estado e na tortura, até a morte, o principal método de investigação.

Sob o comando direto do coronel, agentes de rua, torturadores treinados a partir de métodos desenvolvidos por franceses e norte-americanos no Vietnã e na Argélia durante a Guerra Fria, e oficiais do setor de análise foram responsáveis diretos pelo massacre de militantes como o estudante Antonio Benetazzo, assassinado a pedradas, chutes, socos e pontapés num “cirquinho” – como os agentes chamavam as encenações de tiroteio nas ruas.

“Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi, um dos maiores centros de tortura da ditadura civil-militar, viveu 60 anos a mais do que meu tio, Luiz Eduardo da Rocha Merlino, a quem ele impediu de seguir sua vida ao comandar as intermináveis sessões de tortura que o levaram à morte, em 19 de julho de 1971. Ustra morreu de ‘morte morrida’ e não de ‘morte matada’, como suas vítimas”, diz a jornalista Tatiana Merlino. “A impunidade venceu a justiça”, completa.

Torturas

O geólogo e deputado estadual Adriano Diogo, preso em março de 1973, foi um dos sofreram pesadas torturas nas mãos de Ustra, desmentindo assim um dos mitos sobre o coronel: o de que ele apenas comandava as torturas e não participava delas.

“Ele gritava como um louco com os comandados. Certa vez, no dia em que o cardeal d. Paulo Evaristo Arns celebrou a missa de sétimo dia da morte do estudante de geologia Alexandre Vanucchi, dia 30 de março, fui levado a um pátrio externo. Ali, com um carcereiro, trocaram o porrete por uma palmatória. Eles bateram em todos que estavam lá. Batiam e gritavam vivas à ditadura e ao Medici, xingavam o cardeal”, conta Adriano.

Quando cheguei no DOI, tinham acabado de matar o Alexandre Vanucchi Leme. O Ustra me disse então que também ia me mandar pra Vanguarda Popular Celestial”.

Outro caso que envolveu diretamente Ustra foi a tortura de Criméia Schmidt de Almeida, grávida de sete meses, presa junto com os sobrinhos Janaína e Edson Teles. Ustra a torturou grávida, pessoalmente. Os pais das crianças, Maria Amélia de Almeida Teles e César Teles, já haviam sido presos. Enquanto Criméia era torturada, as crianças vagavam pelos pátios e corredores do DOI. Posteriormente foram sequestradas e enviadas ilegalmente para a casa de um tio, delegado de policia, que trabalhava na delegacia de onde saíram vários membros que integraram o DOI de Belo Horizonte.

“Durante cerca de 10 dias, minhas crianças me viram sendo torturada na cadeira de dragão, me viram cheia de hematomas, com o rosto desfigurado, dentro da cela. Nessa semana em que meus filhos estavam por ali, eles falavam que os dois estavam sendo torturados. Disseram: ‘Nessas alturas, sua Janaína já está dentro de um caixãozinho’. Disseram também que eu ia ser morta. Isso foi o tempo todo. O tempo todo, o terror. Ali era um inferno”, descreve Amelinha Teles.

Esse e outros casos de tortura podem ser lidos no livro “Infância roubada”, coordenado por Amelinha Teles e Adriano Diogo e editado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva em 2014. A família Teles entrou com uma ação declaratória contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, com a finalidade de que a Justiça, mesmo não podendo condená-lo criminalmente devido à Lei da Anistia, o declarasse como torturador. Isso ocorreu em 2008, quando a ação foi julgada. Não cabem mais recursos contra a decisão.

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Integrantes de movimentos sociais protestaram com faixas, cartazes e pichações em frente à casa de Brilhante Ustra. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Na sede da rua Tutoia, onde funcionou primeiro a Oban (Operação Bandeirante) e depois o DOI-Codi, Ustra representou não apenas o comando do terror, mas também o seu “intelectual orgânico”: aquele que dividiu funções, imaginou métodos de ação e conduta, impôs um discurso, limites de atuação, hierarquias. Seu modelo foi adaptado por outros DOIs do país, além de influenciar diretamente a conduta de muitos policiais civis e militares de lá para cá.

Assim como o tenente-coronel da SS de Hitler, Adolf Eichmann (1906-1962), que concebeu e planejou os campos de extermínio do nazismo, as ideias de Ustra serviram de exemplo para a repressão no resto de país. Mas aqui, ao contrário do que aconteceu com Eichmann, julgado e condenado à morte, Ustra nunca foi punido. Pelo contrário. Suas ações sempre foram acobertadas pela ditadura e pelo restou dela.

Descoberta

A atriz Bete Mendes, eleita deputada pelo PT em 1982, partido que abandonaria para votar em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, estava no Uruguai em uma viagem oficial com o então presidente José Sarney em 1985 quando encontrou, na embaixada brasileira, o coronel Brilhante Ustra trabalhando como adido militar. Bete Mendes o denunciou como um de seus torturadores, o “doutor Tibiriçá”, quando, em 1970, foi presa por integrar o grupo de esquerda VAR-Palmares. Ustra, claro, nega que tenha torturado Bete.

No encontro em Montevidéu, a atriz diz que o coronel a procurou para pedir desculpas, dizer que cumpria ordens.  Ele sempre foi protegido por seus superiores. Na época da denúncia de Bete, o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, soltou uma nota defendendo a atuação de Ustra durante os anos de chumbo, dizendo que “ele havia colocado em risco sua própria vida em combate à subversão e ao terrorismo”. Os militares também espalharam a versão de que Bete havia, voluntariamente, se confraternizado com seu torturador.  Ustra acabou por voltar logo ao Brasil, mas sua saída do posto no Uruguai foi oficial, não foi uma punição por conta da denúncia da deputada.

A Lei da Anistia, promulgada em 1979, durante o governo do general e ditador João Batista Figueiredo, com um texto propositalmente pouco claro, anistiava os crimes políticos. Mas ficou subentendido pelos donos do poder da época que os crimes conexos eram aqueles cometidos pelos torturadores.

“Isso em Direito é um erro crasso, pois todo advogado sabe que a conexão só pode ser estabelecida quando os autores fazem ações em conjunto com os mesmo objetivos e motivações. Por exemplo, só pode ser considerado crime conexo o roubo de carro quando usado para auxiliar a fuga de um assalto a banco”, analisa a historiadora Janaína Teles.

Os militares conseguiram assim abafar essa análise do direito e evitar processos judiciais contra os torturadores. “Houve muita colaboração da Justiça para acobertar os crimes dos militares”. Mesmo na época, as pessoas que foram envolvidas em “crimes de sangue” não foram anistiadas. Muitas não foram anistiadas porque sequer foram condenadas. Ustra foi um dos maiores beneficiados pela lei. Seus atos terríveis foram perdoados pelo Estado ainda durante a ditadura. A Lei da Anistia ainda hoje é uma das maiores responsáveis pela impunidade aos agentes do Estado que torturaram, mataram e desapareceram com os corpos dos militantes políticos.

Nilson Bastian/Câmara dos Deputados

“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, disse o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) ao dar seu voto favorável ao impeachment da presidente

De 1985 para cá, quando Ustra estava em Montevideu e foi desmascarado como coronel Tibiriçá, se passaram trinta anos. Trinta anos nos quais as feridas da ditadura permaneceram intocáveis. A “obra intelectual” de Ustra foi completada com a edição do livro “A verdade sufocada”, que chegou à décima edição em 2014.

Ao mesmo tempo em que tenta esconder, permanentemente e sem qualquer evidência, as violências que, sabe-se, faziam parte da rotina de Ustra e de seus comandados, a obra também pode ser lida como o fracasso do regime militar em sua tentativa de ocultar as violações cotidianas dos direitos individuais. A suposta verdade sufocada, ao fim e ao cabo, não passa de uma coleção de mentiras, que nenhum historiador sério leva em consideração.

Comunidade de informações

Ustra também liderou, por muito tempo depois de deixar o DOI, uma legião de ex-agentes que buscavam esconder e silenciar quem, dentro do grupo, ousasse revelar segredos e fatos que aconteceram nos centros de repressão.

Segundo a revista Veja, Ustra era muito ligado ao general de ultradireita Sylvio Frota, ministro do Exército que tentou dar um golpe em outubro de 1977 no então general-presidente Geisel, e também à comunidade de informações do regime. Ele tornou-se um dos militares que tentou barrar a abertura política, com atos terroristas de direita, como as bombas plantadas em bancas de jornais no final dos 1970 e começo dos 1980, e o atentado ao Riocentro.

As ameaças de hoje

Essa comunidade de informações, com ex-agentes, membros do esquadrão da morte, militares de ultradireita, torturadores e policias, continuou agindo na democracia, tentando esconder o que ocorreu durante na ditadura. Um de seus integrantes, em entrevista ao jornalista Marcelo Godoy, autor do livro “A casa da vovó” (Alameda, 2014), deixou sua voz gravada, dizendo com todas as letras que era melhor o repórter do jornal O Estado de S. Paulo interromper suas investigações sobre o que ocorreu na rua Tutoia.

Leia o diálogo:

“— Então quando você quer escrever ou falar uma coisa, acabam suicidando você. É aquela história: o que você acha disso ou acha daquilo? Eu não acho nada porque um amigo meu achou um dia e não acharam nunca mais o cara. Você entende?

— Entendi.

— Às vezes as pessoas deixam de escrever certas coisas ou de comentar outras coisas não por omissão, mas por instinto de preservação.

— Mas isso é uma época que já passou, né?

— Não, não passou, o duro é que não passou. O duro é que é o seguinte: pode ter passado para você, mas eu sei que não passou. Tanto não passou que você andou ligando para as pessoas e todo mundo ligou pra mim. Se tivesse passado, eu não estaria falando com você, eu ainda estaria no anonimato e você jamais saberia de mim…”

Ustra não foi ao lançamento do livro de Godoy, que aconteceu na Assembleia Legislativa de São Paulo, durante sessão da Comissão Estadual da Verdade comandada pelo deputado estadual Adriano Diogo, mas enviou um representante, o policial civil e ex-integrante do Dops Carlos Alberto Augusto, conhecido também como “Carlinhos Metralha”. Metralha pediu um livro autografado, para Ustra, para quem Marcelo mandou um recado: “Para que o senhor saiba o que ocorria sob o seu comando”.

Na linguagem que os militares entendem, Marcelo Godoy quis dizer que era impossível Ustra negar o que estava escrito no livro, que tinha como fontes, muitas ainda anônimas, tantos comandados pelo coronel. De fato, nem Ustra nem nenhum de seus comandados respondeu publicamente sobre crimes relatados no livro. Quem sabe agora, depois de sua morte, esses homens e mulheres que participaram da face mais cruel da repressão aceitem vir à tona e contar como essa engrenagem do regime funcionou – e onde estão os corpos de tanta gente desaparecida.

“A promoção com que Ustra sempre sonhou, a general, nunca saiu. Contudo, pelo menos não estamos vendo suas fotos com uniforme militar e polidas medalhas. Já é um avanço. Pequeno demais para os que sofreram nas mãos e sob as ordens desse carniceiro.”, disse Marcelo Oliveira, ex-assessor de comunicação da Comissão Nacional da Verdade, em seu perfil no Facebook.

Quando voltou do Uruguai, Ustra era um dos 12 militares que poderiam ganhar a estrela de general. Não foi escolhido e passou à reserva. Aposentou-se com uma bela mansão no Lago Norte de Brasília, guardada por enormes barras de ferro. Quando resolveu comandar o Doi-Codi, Ustra apostou na ditadura militar. Se estivesse no mesmo regime em que atuava quando era do Doi, podia ter se tornado ministro ou chefe do serviço secreto. Apostou também na absoluta impunidade para seus crimes. No que ganhou.

Fonte: Opera Mundi

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