Canis versus Ars et Scientia

Foto: Arthur Haddad Antunes

Por Luiz Felipe Guimarães Soares.

Já é bem compartilhado o sentido etimológico de “Ars”, no lema da UFSC – Ars et Scientia. “Ars” não se refere originalmente, no latim do lema, às atividades que hoje chamamos “artísticas”, com tudo o que nelas há de irredutível, mas a técnicas que se aprendia em oficinas, com mestres de ofício – e depois com manuais e normas estandardizadas. Assim, o lema parece manter sua adequação ao que acontece na UFSC, onde técnica e ciência andam lado a lado, sem hierarquia. Ou seja, reclamar da suposta inadequação do lema alegando que na UFSC a ciência prevalece sobre a arte é duplamente equivocado: primeiro porque não há prevalência da ciência sobre a “Ars” (sobre a técnica), segundo porque simplesmente não há, de fato, arte alguma na UFSC, e a ciência não poderia mesmo prevalecer sobre o que não existe.

Ou seja, nada há de errado com o lema da UFSC, errada (e louvável!) foi a criação dos cursos de artes num lugar onde simplesmente não há espaço para cursos de arte. Trata-se de uma invasão. Os cursos de Cinema e Artes Cênicas estão invadindo esse espaço da irmandade elegíaca entre ciência e técnica. Nada há de estranho, portanto, nos conflitos que vêm surgindo, quanto à falta de espaço, em todos os sentidos. Estranha é a amenidade, ou a cordialidade, que ainda persiste nesses conflitos: falta a nós, participantes desses cursos (professores, alunos, funcionários), assumir a violência dessa invasão. Não proponho aqui a prática de atos violentos, que no geral vêm provando ser, ao contrário, anódinos. Proponho, repito, assumirmos a violência sempre já existente na inserção ainda impossível de nossos cursos na Lei geral desta universidade. Não proponho vandalizar, apenas assumirmos nossa condição de bárbaros.

Sob essa orientação (da assunção da condição bárbara) poderemos fazer distinções fundamentais para nossas reivindicações. E estamos realmente precisando dessas distinções. A confusão de conceitos, a falta de clareza quanto a nossa instância de enunciação, está provocando idas e vindas meramente desgastantes, murros em pontas de faca. Não é possível, por exemplo, esperar das instâncias administrativas que nos aceitem incondicionalmente. Para começar, de acordo com a mesma Lei geral (e mesmo com as resoluções e os regimentos mais próximos), essas pessoas estão cumprindo seus deveres e reafirmando – às vezes sem sabê-lo, e até com desconforto afetivo – essa inabalável Lei geral: aqui não há espaço para as artes.

É preciso então fazer distinções: quem ocupa uma determinada posição de poder numa universidade brasileira tem geralmente como conflito primordial, para lembrar Sérgio Buarque, aquele entre Antígona e Creonte. Quando nos negam a condição para uma determinada atividade, muitas vezes estão tentando ser frios e cumprir as normas, gostando ou não, simpatizando ou não conosco. Em outras palavras, os administradores às vezes negam espaço não por antipatia à arte, mas pela obediência, como a de Creonte, à Lei geral do Estado. Assim, é bobagem reivindicarmos espaço agindo como Antígona, ou como o homem cordial, isso só produzirá depressão e revolta. Temos que distinguir (como fazem os bons cientistas) os componentes do problema. E o nosso problema está na Lei geral, não exatamente na operação de seu cumprimento, que lhe é intrínseco.

Não podemos mais nos espantar com a frieza de um administrador ou com a hesitação de outro. É preciso localizar, com clareza, nessas atitudes, para além de conflitos internos, afetivos, simplesmente a falta de compreensão das necessidades da arte (da desontologia própria à arte). A inexistência de espaço para a arte na UFSC corresponde a (e é mantida por) essa incompreensão por parte dos administradores. A maioria nunca pensou, de fato, em arte, não sabe do que se trata. Imagina esperarmos deles a coragem política para, no uso de suas atribuições, ajudar a mudar radicalmente a UFSC, a Lei e o mundo!

Não há espaço para a arte, de modo geral, nem mesmo nas cabeças da UFSC. Exemplos não faltam. Durante a Mostra Prometeu, mês passado, comecei a colar na parede de um corredor do CCE os trabalhos em papel de alunos da Pós-Graduação em Literatura. Os administradores, com educação, respeito e mesmo com interesse, vieram me lembrar que o durex poderia estragar a pintura das paredes, ou seja, vieram me lembrar que colar cartazes na parede, não pode. O interesse ficou visível quando começamos a falar de possíveis soluções futuras: alguma estrutura que permitisse transformar o corredor em espaço de exposição. Pelas sugestões, os administradores mostraram não prever, por exemplo, necessidades básicas como sustentação de molduras pesadas, segurança, desumidificação, iluminação adequada etc. Ficou claro o óbvio, ou seja, a total inviabilidade da transformação daquele corredor numa galeria. Algo similar aconteceu com o auditório usado para a Mostra: de cara o administrador veio nos alertar que professores em salas vizinhas já reclamavam do barulho. O prédio simplesmente não comporta cursos de arte. A Lei geral ali, e os alunos estão cada vez mais acostumados a isso, pode ser ouvida no enunciado de sempre: não pode.

Mais um exemplo. A Secretaria de Cultura (que antes se chamava Secretaria de Arte) está planejando um evento para setembro, com convidados de várias áreas, incluindo músicos, dançarinos, conferencistas, performers. A programação está pronta, mas, segundo a Secretaria, o processo está agora na Procuradoria Federal junto à UFSC para verificação da adequação do projeto às normas que regem o trato com o dinheiro público. A Lei geral prevê que tudo tem que ser licitado, então a Secretaria teve que justificar a impossibilidade de se fazer licitação, por exemplo, para contratar um pianista/conferencista e uma soprano que vão apresentar canções de Wagner e falar sobre elas! O músico teve que trazer três notas fiscais mostrando que o valor a ser cobrado não diferirá muito daquilo que ele está acostumado a cobrar, ou seja, provando que não haverá superfaturamento! Esse exemplo mostra, de quebra, que a falta de espaço para a arte na UFSC ainda esbarra no ridículo geral da burocracia – ou, se quiserem, no compromisso absurdo da Lei geral com o histórico da roubalheira.

Em outras palavras, não podemos esperar dos administradores, desses que aí estão, que de uma hora pra outra se tornem nossos aliados (assim como não podemos esperar política de fato dos “políticos”, como sugere Agamben): não por eles serem do mal e nós do bem, mas simplesmente porque eles assumiram seus cargos dentro da Lei que não nos inclui, e estão aí para fazer cumprir essa Lei. Nosso alvo deve ser o poder legislativo, a Lei futura. Daí a violência: instalarmos uma lei onde ela não existe. Assumida a violência, reconhecido o esquema em que estamos, a melhor opção agora é simplesmente ignorar o lema da UFSC e, violentamente (ainda que não com vandalizações estúpidas), abrir o espaço que falta.

Mas primeiro é preciso, como dizem os gladiadores das reivindicações do espaço público, afinar discursos. Já que vai demorar, precisamos, internamente, aproveitar o tempo para engrossar o caldo. Mesmo dentro dos dois cursos, há muita hesitação. O problema não é a heterogeneidade de pensamento, que a meu ver deve ser preservada, mas a insegurança quanto à desontologia, quanto ao não-ser (quanto ao ataque ao Pai Parmênides), quanto à potência negativa da arte (potência do não, relativa a tudo o que pode, ou não, vir a ser, a tudo o que poderia ou não existir, a tudo o que poderia ou não ser radicalmente diferente do que é). Nossa heterogeneidade poderá um dia, quem sabe, trabalhar no reforço do vazio, do esvaziamento necessário. Vejo pelo menos três empecilhos internos, e tento apontá-los abaixo (sem esquecer das exceções, é claro).

(1) O empecilho que me parece mais visível – algo que ameaça também vários outros cursos superiores – é a tendência à mediocrização, à queda na lógica do mercado, no paradigma da utilidade: quanto mais nos esforçamos para convencer alguém da utilidade da arte, mas agravamos nosso problema, mais nos afundamos ingenuamente na reiteração da Lei geral que precisamos mudar. Enquanto tratarmos filmes e performances teatrais como produtos nada acontecerá de fato. No caso particular do Cinema, o empecilho é o conformismo à concepção acanhada de cinema, que infelizmente prevalece, aquela construída pela comunicação, pelas normas narrativas, industriais e comerciais, pelo mercado, por festivais que acima de tudo reiteram essa concepção – e aqui o principal exemplo, obviamente, é o Fam, que acontece dentro da UFSC. É preciso nunca esquecer que nosso Curso de Cinema, ao contrário da grande maioria dos cursos de cinema do país, não é ligado a qualquer estrutura de ensino relacionada à Comunicação, estando lotado num Departamento de Artes (que a rigor ainda pertence ao futuro, como aponto abaixo). Trata-se, portanto, de um curso de artes: já sugeri a alunos, em sala de aula, que procurem interlocutores, não em outros cursos de cinema, muito menos entre críticos de cinema, mas preferencialmente em cursos de artes (música, pintura, dança, teatro…) de vários países.

(2) O segundo empecilho é o conformismo no convívio com a Lei, ou a falta de ironia ou de cinismo no trato com a burocracia: supor que o espaço para a arte na UFSC estaria assegurado num Departamento de Artes formalmente constituído é o cúmulo da ingenuidade. No máximo essa estrutura pode ser vista como auxiliar da detonação, com pré-história. Ainda mais que tal departamento ainda não é realmente “de Artes” nem mesmo no papel: trata-se do Departamento de Artes e Libras, junção assumidamente pragmática de professores das duas áreas que não eram, em número, suficientes para a constituição dos dois respectivos departamentos – e a sigla “Dali” que surge da simbiose não pode, é claro, servir de consolo, nem mesmo para os fãs do surrealismo visível. Mesmo quando houver a separação, porém, o espaço de fato não estará garantido pela estrutura burocrática – pelas reuniões insuportáveis de avaliação de pareceres cotidianos, às vezes acaloradas por discussões morais na maioria anódinas. Se um dia houver, nos colegiados do Departamento, discussões sobre propostas loucas de detonações artísticas, talvez surja uma esperança.

(3) O terceiro empecilho, que me parece ser o principal, é a pobreza conceitual que ainda nos ronda, mesmo na sala de aula, a pobreza no trato com os conceitos, a negligência quanto ao trabalho de abstração, ou seja, o preconceito contra a filosofia – por parte, sim, de alguns professores e alguns alunos (aparente em falas do tipo “tenho dificuldade com textos filosóficos”, “se ficarmos só na filosofia não sairemos do lugar”, “detestamos teoria, prefirimos prática” e outras tais). Consequência direta disso é a falta de firmeza de atitude diante de entraves cotidianos como a reação de agentes de segurança da UFSC contra performances de alunos de artes cênicas (um foi preso por atuar nu, outra foi repreendida por fazer a “sombra” de um dos guardas do CCE).

Outra consequência importante desse terceiro empecilho (e dos outros dois), no âmbito do Curso de Cinema, é a falta de ousadia quanto a novas propostas de funcionamento do curso – raras vezes pensado, de fato, como um curso de artes. O que fazer, por exemplo, quanto à falta de espaço na unidade de ensino em que o Curso está lotado, ou seja, o Centro de Comunicação e Expressão (CCE)?

Um dos estudos apresentados por alunos para discussão na aula de Teoria do Cinema 2 foi feito no Sapiens Park, num laboratório pertencente ao Centro Tecnológico (CTC). O autor, aluno de Cinema, é estagiário do laboratório. O detalhe importante foi que o aluno se sentiu muito bem recebido em meio a seus colegas da Engenharia, que curtiram muito o trabalho. Isso fez ver que temos tanto a ver, conceitualmente, com o CCE, quanto com o CTC, a saber: nada. O que fazemos não é Comunicação e não é Expressão. E obviamente não somos da área tecnológica, não fazemos parte do lema Ars et Scientia. Não dependemos diretamente da tecnologia, apenas a recebemos bem quando temos firmeza nos conceitos.

Daí surgiu uma proposta aparentemente ousada, movida pelo cinismo que precisamos ter na atual situação. Enquanto não sai (se é que sairá um dia) o sonhado Centro de Artes, com prédio próprio e estrutura mínima para o desenvolvimento das artes na UFSC, e já que nada temos a ver com nenhum dos dois centros, poderíamos tentar migrar do CCE para o CTC, simplesmente porque no CTC poderíamos ter a receptividade e a tecnologia que nos faltam. É possível juridicamente? Será que o CTC toparia nos receber?

A proposta é cínica, não descabida. Cabe bem à posição de mendicância em que estamos, e que nos convida, com todas as forças, a seguir o exemplo de Diógenes, o cínico. (Para quem não sabe, o adjetivo cínico se refere a cão, a cachorro, usa o mesmo radical de cinofilia, por exemplo. Fica mais fácil enxergar isso imaginando o cachorro de rua, o viralatão, que se sente bem tanto na sarjeta, latindo ou abanando o rabo para a bicicleta que passa, quanto na vida luxuosa da mansão que o adota. Ele simplesmente não depende do luxo para viver, latir ou abanar o rabo, e curte o luxo eventual. E Diógenes foi aquele que ignorou completamente a autoridade de Alexandre o Grande, quando este foi procurá-lo a fim de ouvir palavras sábias: simplesmente manteve sua posição, deitado na rua, e reclamou que o imperador estava atrapalhando seu banho de sol. Uma boa fundamentação para essa adoção do cinismo grego está na Crítica da razão cínica, de Peter Sloterdijk.)

Na pobreza atual, os alunos vão se virando. Alunos de cursos mais ricos (mais ligados ao mercado, às vezes financiados legitimamente por acordos com empresas) se surpreendem com a idade dos computadores do único laboratório do Curso de Cinema, onde alunos fazem seus trabalhos de edição e pegam equipamentos de filmagem ultrapassados e inadequados. Um “Mac” nos foi prometido, mas foi retido e desviado por um detalhe burocrático, ficamos sem. Até que a Polícia Federal recentemente liberou um lote de produtos apreendidos, e finalmente ganhamos o tal do Mac – sem pé de apoio, mas tudo bem. Os laboratórios de fotografia e som do Curso são promessas antigas, motivos de várias idas e vindas frustrantes de projetos e sonhos à Reitoria. Até agora não saíram, mesmo com a pressão do MEC, que fez o alerta fatal ano passado. Boa parte dos professores do Curso (bem como dos de Artes Cênicas) nem mesmo têm salas de trabalho. Além de não ter (nem previsão de) um estúdio, com estrutura básica de produção de imagens, o Curso de Cinema não dispõe nem mesmo de uma sala de projeção!

Por outro lado, os alunos que conhecem o laboratório do Sapiens Park, pertencente à mansão do CTC, ficam impressionados, justamente com a exuberância dos… equipamentos de cinema! Encontram ali robôs voadores que carregam câmeras, uma supercâmera de alta definição que filma a centenas de frames por segundo, gruas, estúdio com fundo infinito e tratamento de som etc etc. É como o viralata confundido com o cachorro fujão da madame ao entrar no palácio e encontrar, para além do preconceito esperado, uma grande e carinhosa receptividade, além de banho, hidratação, almofada limpinha e filé mignon todo dia. Ali não existe não pode, apesar da Lei geral.

Seria perfeito. Talvez os vizinhos ricos nos permitam usar seus confortos para produzirmos nossa loucura – obviamente eles poderiam participar dela, que então não seria só nossa. De resto, estariam de acordo com a orientação recente da Reitoria, que, na última promessa de laboratórios para o Cinema, defendeu acima de tudo o uso compartilhado dos laboratórios. O que o CTC teria em troca? Bem, por que tanta gente ama cachorro, a ponto de torná-lo talvez o bicho mais humanizado de todos?

Por que não?

Se assumirmos esses empecilhos, e se tentarmos enfrentá-los, poderemos, sim, tomar atitudes improváveis como essa migração para o CTC. Com firmeza de conceitos poderemos reforçar nosso cinismo, a meu ver o único modo de enfrentarmos a situação. E então, assim como os cachorros da UFSC, poderíamos desfilar nossa elegante soberania cínica pelo campus, pelo Bar da Nina, pelo CTC, pelo Sapiens Park, ou por qualquer outra parte, rica ou pobre, que nos ofereça comida e carinho. Ou mesmo estender esse desfile para outras cidades, países ou planetas (Vênus talvez, embalados pela Primavera de Botticelli?). Muito melhor do que ficar humanamente reivindicando direitos à Unidade ou à Reitoria. Quanto à próxima gestão da Reitoria (inegavelmente uma esperança), talvez possamos lançar uma candidatura cínica, com quase nenhuma chance de vencer. Tudo muito improvável, claro – tanto quanto a existência, de fato, de cursos de Arte na UFSC, hoje ou amanhã –, mas de qualquer modo seria uma atitude diferente, com efeitos imediatos – ação de fatos futuros.

Enquanto isso, proponho elegermos, como nosso guia espiritual máximo, nosso querido Catatau, cuja lápide é a única parte do CCE capaz de nos dar esperança, e também, como líderes políticos presentes (talvez candidatos para gestões vindouras), o Fred e o Lobinho.

Foto: Arthur Haddad Antunes

1 COMENTÁRIO

  1. Na engenharia aprendemos que a arte a que nos referimos na UFSC é aquela que só é realizada após percorrer todo um caminho científico (e tecnológico), assim, estando no “estado da arte”, criando a nova ciência partindo do ponto o qual os que vieram antes de nós deixaram pronto.
    Além disso os cursos mais relacionados à arte como cinema (ou mesmo as oficinas de música, por exemplo, coral e etc) trazem esta segunda abordagem de arte, mais evidente.

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