Camping III – A longa duração

braudelPor Urda Alice Klueger.

Tenho muita simpatia por um teórico da História chamado Fernand Braudel: foi ele quem criou uma nova teoria para a História, na primeira metade do século XX, que divide a mesma em três tempos diferentes: a curta duração, a média duração e a longa duração. Para tornar de mais fácil entendimento a teoria de Fernand Braudel, eu exemplificaria assim: a curta duração é uma História que abrange, mais ou menos, o tempo da vida de uma pessoa, os acontecimentos que ela pode acompanhar pessoalmente. A média duração já é uma coisa um pouco mais longa: é a História dos acontecimentos políticos, econômicos, sociais, etc. – enfim, acontecimentos que normalmente demoram mais acontecendo do que o tempo de vida de uma pessoa. Já a longa duração é uma coisa bem longa mesmo: seria, a princípio, quase que uma História geográfica, coisa para milhares de anos, uma História que constataria as mudanças dos continentes, dos mares, das montanhas – e costuma ser tão longa que a gente quase não se dá conta que o planeta está passando por ela.

Daí, lá no camping onde costumo ir estudar, é bem visível uma das manifestações da longa duração da História. É que lá passa um rio que não é tão grande assim, mas que também não é tão pequeno que a gente se atreva a atravessá-lo a pé.

Esse rio vem, encachoeirado e feliz, de distâncias que não conheço, correndo por entre morros ainda cobertos de mato, branco de espuma nas corredeiras e transparente como cristal nos remansos onde vivem compridos peixes escuros e onde borboletas azuis se auto-namoram na sua superfície, certas de que acharam, ali dentro do espelho que ele é, namoradas de asas azuis iguaizinhas a elas. Poderia falar durante horas sobre os encantos desse rio, mas aqui o assunto é a Longa Duração.

Um dia, não faço idéia quando, se há séculos ou há milênios, deve ter havido uma hecatombe por ali, e o rio mudou de curso. Mas deve ter sido hecatombe para ninguém botar defeito, pois o rio tinha um caminho reto e saiu dele, e foi formar um perfeito cotovelo, apertado e custoso de passar, uma coisa quase que inexplicável. Eu vou lá e fico olhando e lembrando de Fernand Braudel, e imaginando o que teria se passado: deve ter sido uma árvore gigantesca que caiu ali no dia da hecatombe, e vieram galhos, e depois folhas, e depois lama, e depois pedrinhas, e depois pedronas – o fato é que o rio teve que se espremer para outro lado, tomar outro rumo, escavar um cotovelo apertado junto ao morro vizinho, esquecer-se do seu velho leito. Até hoje ele corre pelo caminho novo, mas ficou bem visível o seu leito velho. Não sei quanto tempo faz, mas imagino como é que aquele leito velho foi sendo aterrado: nasceram capins, e caíram folhas, e veio a poeira dos ventos, e lamas novas nos transbordamentos que viriam depois, ao longo dos séculos seguintes, e a própria poeira das estrelas foi caindo ali – deve fazer um tempão, mas ali está a prova da Longa Duração na visibilidade ainda bem visível do antigo trecho mais coerente que aquele rio tinha. A maior parte do velho leito foi sendo paulatinamente aterrada e foi ficando coberta de capim e outros matos, mas há um pequeno trecho que ainda é um charco, delícia de charco de águas paradas no meio de capins, paraíso de dúzias de sapos que todas as noites realizam, ali, uma sinfonia para comemorar a vida!

Nas minhas noites naquele camping, costumo ficar estudando numa construçãozinha de nada, que só tem o telhado, quatro esteios que partem de um piso de cimento, uma churrasqueira, uma mesa e dois bancos, e uma maravilhosa lâmpada fluorescente que é quem me leva para lá. A lâmpada é baixinha, e então, na minha cadeirinha de praia, fico com excelente iluminação para os livros que estou a ler. Dali aonde fico até lá onde ficam os sapos tem bem uns cinco ou seis metros de diferença na altitude, e sua sinfonia faz parte das minhas noites de campista.

Então, na semana que passou, fui para lá estudar enquanto o sul do Brasil andava às voltas com um ciclone extra-tropical, e como chovia! Organizei-me de tarde, dormi um soninho, e então era tempo da minha lâmpada preferida e de livros de Bordieu. Ainda era dia, e eu observava como o rio deixava de ser transparente e ia se colorindo de amarelo, de laranja, ficando avermelhado, e como ele subia! Claro que ele não subiria todos aqueles cinco ou seis metros nem chegaria na minha barraca, mas antes que anoitecesse eu vi como ele subiu o suficiente para transbordar por sobre a barreira que um dia se formara lá onde ele mudara de curso, no tempo da sua Longa Duração, e como voltava a se assenhorar do seu antigo leito – até cheguei a ficar com pena de formigas e outros insetos que não devem ter conseguido escapar da correnteza do rio quando ele veio assim, todo sujo e impetuoso – mas demorei um pouco a me dar conta que quem mais estava perdendo, ali, eram os sapos. O seu charco foi engolido pela correnteza que não estava dando a mínima para eles. Aquele charco era a casa deles! Para onde iriam?

Eles não se apertaram. Com a correnteza no charco, subiram para o andar de cima, isto é, para o gramado do camping, que àquela altura também virara charco, tamanha era a chuva. Depois que anoiteceu passei a vê-los por ali, ao redor da minha casinha de lâmpada fluorescente, sapos castanhos, esverdeados, de diversos tons, com grandes olhos saltados e os mais variados tamanhos. Fiz umas contas: os maiores deveriam pesar para mais de um quilo; os menorzinhos pareciam enfeites para se botar em cabelo de menina, tão graciosos nos seus pulinhos atrás de uns poucos insetos!

Pois é, a chuva e o frio sumira com quase todos os insetos, mas lá pelas nove da noite, quando eu já estava em outro livro, penso que alguma coisa especial, talvez a grande trovoada que não parava, fez com que todos os cupins da redondezas saíssem em revoada. Como única lâmpada das adjacências, aquela que me iluminava atraiu cada cupim de asas marrons transparentes, e ficou até um bocado complicado estudar. E então os sapos vieram jantar! Sem o menor medo de mim, aquela familhada toda foi entrando na minha casinha, e se locupletando de tanto cupim que havia. Fiquei a observá-los: será que todos eram sapos? Será que não haveria, entre eles, um príncipe disfarçado? E se eu os beijasse e surgisse algum príncipe?

Como só há um príncipe que me interessa, fui ficando assim na dúvida, e acabei não correndo o risco, não beijei nenhum. E cada vez eles ficavam mais ousados e comecei a me preocupar com o susto que poderiam me dar caso pulassem sobre mim. Tratei de fechar bem a minha bolsa para que lá não entrasse nenhum, e continuei estudando.

De repente, porém, vi que alguém me olhava. Espiei de lado: bem pertinho de mim, um sapão marrom que devia ser o maior de todos, trepado nos tijolos da churrasqueira, me observava atentamente com seus cândidos olhos saltados. Ficamos nos olhando, eu muito curiosa: seria você, meu príncipe, que viera para que eu o desencantasse? Pelas minhas contas você não deveria estar ali, mas o mundo é mágico, e a gente nunca sabe! Pensei: “Eu acho que é. Vou beijá-lo, sim! Ele há de sair da sua fantasia e curtir a chuva aqui junto comigo!”

Se era você, eu acabei não sabendo, pois o sapão, ao invés de se interessar pelo meu beijo, esticou sua comprida língua e “papou” um bocado de cupins que estavam ali pelas proximidades. Eu fique achando que não era você. Não me consta que você goste de cupins.

Bem, a Longa Duração de Fernand Braudel me permitira sonhar com você naquela noite como até então nunca sonhara! Fui dormir estreitamente abraçada à sua ausência, tão arrependida de não ter beijado aquele sapo! Quem sabe pudesse ter ido dormir abraçada ao meu príncipe!

Blumenau, 04 de Setembro de 2005.

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