Bullying Racial

para Edison Braga – O Anjo Provocador

Por Raul Longo.

Por mais nati-leso, ninguém vêm ao mundo idiota o bastante para já nascer racista. Aliás, preconceito algum é genético.

No berçário nenhum bebê taca a mamadeira na cabeça de outro porque os cromossomos daquele não correspondem ao gênero em que seu corpo se definiu.

No conto “As Academias de Sião” no século retrasado Machado de Assis já discutia o assunto, demonstrando com refinada e poética narrativa a estupidez dos preconceitos sexuais que ainda hoje persistem num Jair Bolsonaro, por exemplo.

Se há tanto tempo atrás pessoas como o Machadão resolveram em suas consciências essas questões, por que se fazem cada vez menos raros os boçais que definem inteligência e caráter pelas origens étnicas, classes sociais, graduações escolares ou por comportamentos referentes às naturais diferenças de condições genéticas?

Por que o bullying nas escolas se tornou muito mais contunde e ferino do que escondem os que comparam a violência da intolerância de hoje, com as piadas que antes se fazia com os “pouca telha”, os “quatro-olho” ou os “desvia pingo”? Os “varapaus” e os “meio quilo” de ontem, independente de suas características físicas e apelidos, de toda forma integravam a mesma turma de moleques que os “zoavam”.

Em algo esse “zoar” dos garotos e garotas que já não se querem mais moleques, se difere dos velhos tempos quando as brigas de crianças quando muito resultavam em ralados e escoriações a serem cicatrizadas a mercúrio cromo ou água oxigenada. Mais tarde com “bandeite”, depois com o mertiolate, atualmente resultam em pontos e sequelas vitalícias, físicas ou psicológicas. Quando não em massacres e suicídios.

Quem promove? Os pais que tentam fechar os olhos à realidade com a cabeça enfiada no capuz das mentiras da telinha? Evidente que têm sua responsabilidade, pois pode ser lenda isso de avestruz enfiar a cabeça dentro da terra para não enxergar o perigo, mas os que enfiam suas cabeças dentro das novelas e reality shows para não encarar a realidade da própria família, além de se idiotizarem também pagarão alto preço pela covardia e alienação.

Alguma vez nos questionamos sobre a programação que as emissoras de TV destinam às nossas crianças? Ou preferimos confiar que nossos filhos sejam menos afetados pela mediocridade das programações cotidianas que, já pela omissão e negação de nossas realidades, promovem a intolerância, os preconceitos e o racismo.

São mulheres-produto, degustáveis ou boas de apanhar. São homossexuais escandalosos e ridículos. Negros sub-humanos e toda uma ampla gama de aberrações.

Sóbrios, naturais, normais e simpáticos apenas os de inconfundível procedência caucasiana. E, preferencialmente machos. Se mulheres, que se recolham aos comedimentos exigíveis ao bom comportamento do gênero.

Ou seja: uma Martinália, por exemplo, está totalmente fora dos padrões das telinhas, pois se ainda fosse ruiva como a Rita Lee, vá lá!

Desde o governo John Kennedy, nos Estados Unidos se tomou medidas sócio-educativas hoje imitadas em diversos outros países, inclusive na Europa e também na Austrália onde, na abertura das Olimpíadas de Sidney, o tema central foi o mea culpa pelo massacre dos aborígenes.

No Brasil não temos culpa de nada, pois como podemos ser culpados por algo que inexiste?

A forma dos Estados Unidos superar o irreparável crime cometido durante os séculos de escravidão foi combater o racismo evidenciando, por todos seus meios de comunicação, a participação dos afro-descentes no desenvolvimento da sociedade e do país. Isso promoveu crescente quantidade de atores negros no cinema e na TV de lá. Atores, produtores, roteiristas, diretores, apresentadores.

A forma adotada no Brasil é a de negar o racismo, a escravidão e a existência da parcela negra da população.

Entre mais de 303 milhões de habitantes, 40 milhões de cidadãos estadunidenses se declaram como afrodescendentes, perfazendo 12,3% do total da população daquele país.

Os mais de 184 milhões de brasileiros negros compreendem 50,3% do total da nossa população. Mas na TV, no cinema, nas revistas e jornais; somos um país com mais brancos do que os Estados Unidos.

Diariamente 50,3% da população brasileira sofre bullying praticado por nossos meios de comunicação.

E pelos de produção cultural também.

Apesar do primeiro nome francês, minha amiga Monique tem sobrenome alemão por ser natural da Suíça germânica de onde me contou que em qualquer livraria se encontra inúmeras publicações sobre a África. O que se imaginar: fotos, cultura, natureza, religião, costumes, arte, etc. Do continente em geral ou por país.

Ainda nos anos 70, amigos indicaram o livro “Filhos de Olorum – Contos e Cantos de Candomblé” para a Editora Ática de São Paulo.Logo depois fui informado pelo diretor daquela editora de que se decidiu pela não publicação do livro por considerarem o tema sem interesse para público brasileiro.

Cerca de 2 anos após essa conversa o livro foi lançado por uma pequena editora de Curitiba: Cooeditora. A distribuição se limitou a algumas livrarias daquela cidade e da capital de São Paulo.

Seis meses depois, Werner Zotz, o diretor da Cooeditora, me escreve comunicando o prematuro encerramento de atividades e da existência da editora e me oferece, a preço de custo, os 1.100 exemplares que sobraram da edição de 2.000 exemplares.

Emigrando pelas capitais do nordeste e centro-oeste há cerca de uma década, então colaborava com publicações alternativas e de breve circulação devido a censura política vigente. Ainda não existia a internet e meu nome era tão ou mais desconhecido do que o da editora que não teve condição de dedicar qualquer esforço de promoção à publicação.

A venda de 900 exemplares em 6 meses entre 1979 e 1980, ocorreu exclusivamente pelo tema expresso no subtítulo: “Contos & Cantos de Candomblé”.

Remanescentes exemplares daquela edição bastante sofrível, com recorrentes erros de composição e diminuto corpo de letra para economia de papel na quantidade de páginas; podem ser adquiridos pelos sebos da internet ao custo de R$ 60,00.

Eu mesmo não tenho nenhum. O último, alguém não devolveu.

No final da década de 90 reli este último que me restara e não gostei. Reescrevi-o melhorando as narrativas e complementando informações nas notas sobre dados antropológicos, históricos e regionais.

Em 2005, pelo boletim eletrônico da Câmara Brasileira do Livro, sou informado de que a cultura afro-brasileira fora o tema mais procurado pelo público portenho entre as editoras do Brasil que expuseram suas publicações na Bienal do Livro de Buenos Aires.

Entusiasmado pela informação anotei os endereços de cada uma daquelas editoras brasileiras e escrevi a todas. Contei da significativa vendagem da primeira edição e considerei as futuras possibilidades naquele maior mercado de consumo livreiro do continente. Apesar de toda a Argentina conter uma população correspondente a 1/5 da brasileira, apenas em Buenos Aires instala-se o mesmo número de livrarias existentes em todo o Brasil.

Talvez não chegassem a 20 as editoras para as quais escrevi propondo a segunda edição do “Filhos de Olorum”, mas eram mais de 10 e uma única respondeu. A pessoa que assinava a mensagem eletrônica indicava o nome de outra para a qual eu deveria enviar os originais do livro. Postei-os numa 5ª Feira, muito esperançoso por se tratar de editora bastante conhecida: a Nova Fronteira.

Na 3ª Feira seguinte o mesmo volume encadernado em espiral estava na caixa de correio pendurada em meu portão. Ou seja: a encomenda foi entregue na sexta ou na segunda, mas apenas trocaram o envelope e já despacharam de volta. Terá sido automaticamente, sem sequer ler o título do livro, ou se assustaram pelo tema?

De certa forma tinha razão o editor da Ática: alguém nesse país não se interessa pelo assunto. Aliás, é só prestar atenção na mídia e no que em geral aqui se publica e produz, para se identificar quem, no Brasil, não se interessa pelo país e pelo povo deste país.

Parafraseando Tom Jobim: o Brasil faz bullying ao Brasil.

Em razão do meu interesse pelo assunto tenho procurado publicações de outros autores que desenvolvam obras de ficção baseadas no mesmo tema. Há ensaios, estudos, relatos, pesquisas, mas além das referências nas histórias de Jorge Amado, nada em ficção. Uma ou outra história dispersa, mas ainda não encontrei nada que, em ficção, componha um livro específico.

Não me parece possível que eu tenha sido o único escritor brasileiro a me interessar pelo rico universo temático do candomblé. Por minhas experiências recomendo aos que por ventura tenham composto algum livro baseado nesse tema, que busquem caminhos para enviá-los aos Estados Unidos, pois lá a professora Teresinka Pereira publicou a versão em inglês de um dos contos numa revista universitária e o Filhos de Olorum acabou recebendo artigo de elogiosa críticade Skye Morrison,  publicado num número posterior da mesma revista.

Manuel Rui, significativo escritor angolano e autor do Hino Nacional de seu país, também publicou elogios ao livro em revista de circulação no continente africano. Aqui no Brasil, dois ou três comentários em publicações dirigidas e de circulação limitada.

No momento há uma editora carioca que desde o ano passado vem manifestando intenção de publicar a segunda edição. Aguardo.

Continuo aguardando, mas sempre lembro o comentário daquele primeiro editor ao qual o livro foi apresentado e cada vez mais me convenço de que realmente o tema do “Filhos de Olorum” não interessa àqueles que deveriam promover e divulgar a cultura brasileira.

Poderia tentar publicar outros livros que escrevi, mas todos tratam das vítimas dos preconceitos alimentados pelos produtores e divulgadores de cultura. Quando não escrevo sobre negros, meu tema é o índio, ou as mulheres, ou os pobres, os nordestinos, trabalhadores… Os segmentos das maiorias de brasileiros.

Num país onde a maioria da gente brasileira não interessa a uma minoria que detêm os meios de produção e promoção cultural, a cultura é mesmo essa que temos. O preconceito, aqui, é cultura. Apesar de grafado em inglês, fizeram do bullying uma manifestação cultural tipicamente brasileira.

O principal motivo de encerramento das atividades da Cooeditora foi o cerceamento de distribuição exercido pelo monopólio das grandes editoras e distribuidoras. É ou não é bullying o que se submete a todo produtor cultural fora do eixo Rio – São Paulo?

É comum se ouvir reclamar que o brasileiro não lê. Verdade. Mas o incrível é se constatar que o brasileiro não lê porque as editoras não deixam que leia. Como diz o Milton Nascimento: “não deixam a moça ouvir bonita canção!” Há muitos anos submetem a moça da música do Milton ao bullying que a ensina e obriga a descer mais, até a boquinha da garrafa.

Decididamente não há em lugar algum do mundo maior preconceito ao Brasil e à cultura brasileira do que entre os produtores culturais e os meios de divulgação brasileiros. E também em nenhum lugar do mundo, os que se dizem promotores de cultura tanto promovem degradação cultural e preconceito racial.

De toda forma, continuo aguardando.

Quem sabe na próxima encarnação, se tiver a sorte de voltar como argentino.

Não sei se sendo argentino haverei de escrever sobre o Brasil, mas de toda forma os editores e a imprensa de lá não têm preconceitos contra a Argentina e a cultura do povo do próprio  país. Isso se pode perceber pelo cinema argentino que se tornou um dos mais admiráveis e comentados do mundo.

Com o nosso ocorreu o inverso.

Talvez por ser da época do sucesso internacional do cinema brasileiro, o mestre Edison Braga sonhou como seriado de TV o que só será conhecido por aqueles que receberem os episódios de “Orixás”, como este segundo aí anexado.

Quem sabe na próxima encarnação do Édison, que era espírita, nossos produtores de TV já tenham atingido a percepção do Machado de Assis. Ou, talvez, pode ser que até lá os mais de 50% de cidadãos afro-brasileiros já tenham exigido o fim do boolying racial cotidiano, praticado e promovido pelos meios de produção e divulgação cultural.

Aguardemos!

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