Genocídio no Brasil, um Estado que mata e deixa morrer

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Por Jorge Américo e José Francisco Neto. Cassiano* percebeu que havia algo de estranho quando seus amigos começaram a desaparecer. A vida seguia normal no afastado bairro Cidade Kemel, em Poá (SP), mas de repente as conversas na rua ficaram escassas e o campinho de várzea esvaziou. Aos 17 anos, o estudante inventa formas de fugir das estatísticas. Negro e morador de um bairro marcado por altos índices de violência, ele sabe que já é um sobrevivente.

“Quando eu tinha de oito para 14 anos, foram morrendo de monte as pessoas que estavam perto de mim. Eram meus amigos de infância, o pessoal que jogava bola comigo. Eles foram morrendo e desaparecendo em número absurdo e eu não sabia o que era”, recorda.

Os governantes de plantão nunca responderam à pergunta de Cassiano, mas ele foi estudar e descobriu que aquilo tinha nome: genocídio. Conheceu pessoas de um cursinho comunitário, onde soube que todos os anos dezenas de milhares de jovens muito parecidos com seus amigos têm o mesmo final trágico.

Encarceramento em massa

Assim como o manicômio de Lima Barreto, a prisão no Brasil é o “cemitério dos vivos”. A cada ano o sistema penal, altamente seletivo, vai amontoando uma multidão de homens e mulheres, na maioria jovens e negros, em celas úmidas, mal ventiladas e mal iluminadas. Já são mais de 715 mil. É uma maneira de encurtar a vida, outra face do genocídio permanentemente denunciado pelo movimento negro.

Cassiano desabafa, mas não desaba. “A gente vê um rico que comete crimes hediondos e não responde por isso. O meu irmão foi acusado de roubo majorado, que é o Artigo 157, sem estar portando nenhuma arma. Está preso há um ano e é réu primário, tinha acabado de fazer 18 anos. Ainda não teve nenhuma audiência. E o pior é que ninguém liga, ninguém percebe que o encarceramento está relacionado com o genocídio.”

O bairro onde vive a família de Cassiano está localizado em uma região de divisa na Grande São Paulo. Não é incomum moradores de uma mesma quadra pagarem Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) para quatro municípios diferentes. Difícil mesmo é requerer melhorias, como pavimentação e iluminação das vias, saneamento básico e coleta de lixo. As prefeituras de Poá, Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos e São Paulo sempre dão um jeito de dizer que a culpa é do vizinho.

Trabalhar mais, viver menos

Se as possibilidades de sobrevivência estão relacionadas à qualidade de vida, isso quer dizer que menores rendimentos e menor escolaridade significam menores condições de mobilidade social e, consequentemente, a redução da esperança de vida.

Uma pessoa que viveria 73 anos não passa dos 67 simplesmente por ter nascido negra. Anos atrás o economista Marcelo Paixão calculou que, dadas as atuais condições de vida, deveríamos esperar mais 160 anos para que todos pudéssemos ter a mesma longevidade.

Melhorar a qualidade de vida a partir de melhores rendimentos não é tarefa fácil para a população negra no Brasil. No ano passado, pessoas desse grupo ganhavam, em média, R$ 1.374 por um mês trabalhado, segundo informou a Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE.

Já os trabalhadores brancos recebiam R$ 2.396 por uma jornada semelhante. Diferença de 57%. Talvez isso explique o porquê de os pais de Cassiano terem de trabalhar tanto. “O contato é mínimo, quase não os vejo, trabalham o dia inteiro”, comenta.

Além de se preocupar com a falta de estrutura que fragiliza a família, Cassiano tenta preparar o espírito das crianças menores de casa para os dias que virão. Ele sabe que daqui a pouco elas “vão crescer e sofrer racismo na escola”. Ele passou por isso. Sabe como é, sabe como será. A avó, rocha firme, muro de arrimo, já começa a tremular. Não consegue tratar as sequelas de um derrame no Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma periferia reerguida

Cassiano gosta de política, quer “mexer com isso quando tiver mais idade”. Mas para não perder o lirismo, não se deixar abater, não embrutecer, ingressou em um grupo de teatro. O adolescente deseja uma periferia melhor e quer vê-la se reerguer.

“Eu estou sempre conversando com os moleques e falo que o que faz o sistema ‘chorar’ de verdade e que um rico não consegue admitir é ver um pobre e favelado que estudou 11 anos em uma escola pública entrar em uma universidade pública e tirar um diploma”.

Cassiano se prepara para estudar Artes Cênicas e tem preferência pela Universidade de São Paulo (USP). Ele tem consciência do tamanho do desafio. Entre os 25 estudantes que ingressaram nesse curso no último ano, apenas quatro são negros. Cassiano não tem pressa. Permanecer vivo é uma vitória cotidiana, é mais difícil que passar na USP todo dia.

Foto: Reprodução/Brasil de Fato

Fonte: Brasil de Fato

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