Brasil: O que é a terceira esquerda e quais seus desafios

Por Marcelo Fantaccini Brito.

Este texto define como Primeira Esquerda no Brasil os dois partidos de esquerda que apoiaram os governos Lula e Dilma, que são o PT e o PCdoB, assim como as organizações e os movimentos aliados destes partidos, e os intelectuais que apoiam estes partidos. Este texto define como Segunda Esquerda no Brasil os partidos de esquerda que fizeram oposição de esquerda aos governos Lula e Dilma, que são o PSOL, o PSTU e o PCB, assim como as organizações e os movimentos aliados destes partidos, os intelectuais que apoiam estes partidos e qualquer um que seja de esquerda mas não apoiou os governos Lula e Dilma por não considera-los de esquerda. Há subdivisões dentro destas duas esquerdas, que não vem ao caso para este texto.

Além destas duas esquerdas, vem crescendo uma Terceira Esquerda no Brasil. Trata-se daquela que considera que o Brasil precisa de forças de esquerda, mas que as já consolidadas não estão conseguindo cumprir seu papel. A primeira por ter muitos integrantes relacionados com graves escândalos de corrupção e por outros motivos também. A segunda por ter muitos integrantes que apresentam uma visão muito infantil de política e de economia. Não se trata de afirmar que todo comunista é infantil e que todo social-democrata é amadurecido. Não defendo esta ideia. Além disso, também tem social-democrata infantil na Segunda Esquerda. A infantilidade de grande parte da Segunda Esquerda consiste em falar como se orçamentos fossem ilimitados e todas as alianças fossem condenáveis.

Assim como as duas esquerdas já consolidadas, esta Terceira Esquerda considera que são necessárias forças de esquerda para evitar o maior retrocesso social e político que a Nova República já viu, retrocesso este praticado pelo atual governo não eleito, pelo Congresso mais reacionário que a Nova República já teve, por grandes grupos midiáticos e grandes associações empresariais. Porém, integrantes desta Terceira Esquerda consideram que os problemas mencionados no primeiro parágrafo deste texto fazem com que as duas esquerdas já consolidadas tenham dificuldade de cumprir seu papel. Isto pode ser visto nas eleições municipais de 2016, em que partidos das duas esquerdas perderam feio, enquanto que partidos da base do governo impopular de Temer tiveram grandes vitórias.

Por enquanto, a Terceira Esquerda não é um grupo unificado. É apenas um aglomerado de intelectuais, de ativistas de redes sociais e de movimentos que se posicionam à esquerda no espectro político, mas que têm postura crítica quanto às esquerdas já consolidadas. Podemos falar de Pablo Ortellado, Moysés Pinto Neto, Luiz Eduardo Soares, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Renato Janine Ribeiro, César Benjamin, Márcia Tiburci, Leandro Karnal, Leonardo Sakamoto, Maurício Santoro, Celso de Barros, André Forastieri e alguns movimentos de meio ambiente, direitos humanos e minorias não alinhados com o PT/PCdoB nem com o PSOL/PSTU/PCB. O Sensasionalista, que antes não tinha ideologia definida, está cada vez mais próximo da descrição de Terceira Esquerda. O humorista Gregório Duvivier tem boa relação com o PT e com o PSOL, mas ao não aderir integralmente ao discurso do PT, nem ser de extrema-esquerda, também pode ser considerado um integrante da Terceira Esquerda. A divisão entre as três esquerdas que este texto propõe não é rígida. Alguns dos pensadores citados são admirados também pela primeira e pela segunda esquerda. Se eu estivesse escrevendo este texto dois anos atrás eu ainda incluiria Idelber Avelar, Raphael Tsavkko e Giuseppe Cocco na lista, mas atualmente não é mais possível defini-los nem mesmo como esquerda. Elogiável a atitude de Idelber Avelar de admitir que não mais se identifica como esquerda.

A presença de um ambientalista como Moysés Pinto Neto e um nacionalista desenvolvimentista como César Benjamin mostra a heterogeneidade deste movimento. Em comum, estes pensadores compartilham apenas o fato de estarem à esquerda no espectro político, não se identificarem com o PT, mas também não se identificarem com a oposição de esquerda.

Por enquanto, não há partidos políticos que representam a Terceira Esquerda. As candidaturas presidenciais de Cristóvam Buarque (2006), Marina Silva (2010 e 2014) e Eduardo Jorge (2014) poderiam ter representado esta tendência. O problema é que ficou difícil encontrar o que existe de esquerda em Cristóvam Buarque, Marina Silva e Eduardo Jorge. Estes três políticos estão cada vez mais ideologicamente alinhados com os partidos de direita. Apesar da Marina Silva, a REDE poderia representar a Terceira Esquerda por causa do Alessandro Molon, do Luiz Eduardo Soares e do Randolfe Rodriguez. Mas houve um racha neste jovem partido, que teve reduzida sua ala esquerda. A candidatura de Ciro Gomes em 2018 poderia representar ideias da Terceira Esquerda. Porém, ele é um líder solitário. Alguns parlamentares do seu PDT votaram a favor do impeachment e da PEC do teto dos gastos. Embora adeptos da Terceira Esquerda sejam críticos tanto do PT, quanto do PSOL, eles geralmente gostam de alguns quadros destes dois partidos: Fernando Haddad, Eduardo Suplicy, Marcelo Freixo, Jean Wyllys, Chico Alencar e Luiza Erundina.

Os grupos políticos mais consolidados no Brasil mobilizam seguidores com suas narrativas sobre a história recente do Brasil. A narrativa feita pela direita é a seguinte:

“O período do PT no poder (2003-2016) foram 13 anos perdidos para o Brasil. O PT não tinha um projeto de país, e sim um projeto de poder. Houve corrupção como nunca antes havia ocorrido. Políticos corruptos sempre existiram, mas o PT inovou em fazer da corrupção um modo de governar. Houve um grande aparelhamento de órgãos públicos. A política externa consistiu em apoiar ditaduras. A gestão da economia foi desastrosa. Durante o governo Lula, ainda apareceram alguns bons resultados por causa do efeito das reformas realizadas por Fernando Henrique Cardoso, do boom da economia mundial e da presença de um pouco mais de responsabilidade no primeiro mandato, mas bastou tudo isso passar que o desastre ficou evidente. Lula e Dilma tiveram popularidade alta por um tempo por causa da propaganda enganosa feita por João Santana, dos ataques à imprensa e dos programas sociais que não passam de compra de voto de vagabundo. Mas depois a sociedade brasileira percebeu o engodo, aí os cidadãos de bem que trabalham foram às ruas aos domingos, porque só vagabundo protesta em dia de semana, e finalmente nos livramos do PT”

A narrativa feita pela Primeira Esquerda é a seguinte:

“O período do PT no poder (2003-2016) foi um período de grande inclusão social. Quarenta milhões de brasileiros saíram da pobreza. Muitos filhos de empregadas domésticas tiveram a oportunidade de fazer curso superior. O aumento do salário mínimo e os programas sociais fizeram reduzir a desigualdade na distribuição de renda. Foi possível conciliar crescimento do PIB com redução do peso da dívida pública no PIB. Ainda teve o apoio à agricultura familiar, teve uma política cultural inovadora, teve valorização dos servidores públicos, teve valorização das universidades federais, que no tempo do Paulo Renato não tinham nem papel higiênico. A política externa fez com que o Brasil deixasse de ser um quintal dos Estados Unidos e tivesse uma posição assertiva no cenário internacional. Teve práticas de caixa dois para financiamento de campanhas e compra de votos igual teve em qualquer governo, mas a mídia empresarial oligopolizada usou a indignação seletiva de corrupção para fazer campanha incessante contra o PT. E a classe média ficou inconformada com o fato dos serviços braçais terem ficado mais caros por causa da valorização do salário mínimo. Isto foi intensificado porque o governo valorizou a Polícia Federal, permitindo mais investigações, e os presidentes Lula e Dilma foram bonzinhos demais ao não terem colocado aliados políticos no STF e no MP. Aí a Lava Jato devastou a economia, e analfabetos políticos de classe média usando camisa da CBF contribuíram com o golpe”

A narrativa feita pela Segunda Esquerda é a seguinte:

“O PT no poder (2003-2016) traiu sua história, construída por operários, camponeses, estudantes, servidores públicos, mulheres, negros, LGBTs, e fez um governo voltado para o topo da pirâmide social. Fez a Reforma da Previdência, tirando direito dos servidores, para agradar banqueiros. Praticou política de juros altos, de superávit primário alto, apoiou o agronegócio e se esqueceu da Reforma Agrária, encheu as universidades privadas de dinheiro através do Prouni e se esqueceu das universidades públicas, fez o Minha Casa Minha Vida que beneficiou as empreiteiras e se esqueceu da Reforma Urbana, construiu grandes hidroelétricas na Amazônia, arruinando a floresta, e a vida dos índios e das populações ribeirinhas, foi negligente com o genocídio de índios praticado por ruralistas. Não fez reforma dos meios de comunicação e encheu de verba de publicidade a mídia empresarial. Distribuiu migalhas para os pobres através do Bolsa Família. Confundiu cidadania com consumo. Se aliou a organizações mafiosas como a CBF, o COB, a FIFA e o COI para realizar os grandes eventos esportivos, que só serviram para desperdiçar dinheiro público e remover pobres. Se aliou a lideranças históricas corruptas da direita, incluindo José Sarney, Renan Calheiros, Jader Barbalho, Michel Temer, Sérgio Cabral, Eduardo Paes, Marcelo Crivella, Gilberto Kassab e Eduardo Cunha. Ainda assim, o topo da pirâmide social brasileira achou pouco, e quis voltar a governar sem intermediários. Por isso, houve uma articulação entre a antiga oposição de direita e ex-aliados do Lula e da Dilma para dar o golpe”

Os formadores de opinião que este texto define como Terceira Esquerda consideram as três narrativas muito simplistas. Consideram que todos estão um pouco certos e um pouco errados. Embora consideram que a maior parte da narrativa da direita seja uma grande baboseira, reconhecem que depois do que foi descoberto em 2014/2015, a corrupção existente nos governos do PT foi grave o suficiente a ponto de não poder ser relativizada através de afirmações como “sempre foi assim, todo mundo fez, é que agora está sendo mais investigado”, “era necessário para formar uma maioria no Congresso” ou “o PT não tem apoio ideológico do meio empresarial, por isso tem mais dificuldade de obter financiamento legal de campanha”. O discurso oficial do partido em sempre se colocar como vítima parece indicar que o partido continua defendendo as relativizações. Também consideram que a guinada nacionalista intervencionista da política econômica do primeiro mandato da Dilma não resolveu os problemas que se propunham resolver e ainda criou outros problemas. E que o PT tem meios de comunicação e uma militância muito intolerante com críticos.

Os identificados como Terceira Esquerda concordam com a Primeira Esquerda em reconhecer alguns avanços sociais do governo Lula e a importância da política externa. Concordam com a Segunda Esquerda na crítica à negligência à Reforma Agrária, Reforma Urbana e Reforma Tributária Progressiva, na crítica à política de hidrelétricas na Amazônia, na crítica aos grandes eventos esportivos e nas alianças, na crítica à supervalorização do consumismo, mas não endossam a ideia de que a política de superávit primário foi ruim, que os únicos defeitos dos governos do PT foram não ter sido suficientemente de esquerda e que toda aliança é ruim.

Este movimento de opinião, descrito neste texto como Terceira Esquerda, encontra algumas dificuldades. Uma delas é transformar em ações práticas esta visão mais complexa de mundo que alega ter em comparação com a direita e com as duas esquerdas consolidadas. As três narrativas apresentadas podem ser simplistas e equivocadas em muitos pontos, mas a simplicidade ajuda a mobilizar pessoas. A Terceira Esquerda ainda não conseguiu construir uma narrativa que mobilize. Quanto alguns de seus integrantes tentaram, cometeram o mesmo erro de serem fantasiosos demais para defender seu lado. Tentaram descrever os protestos de 2013 como protestos que defendiam suas causas. Mas quem mais mobilizou em 2013 foram as duas esquerdas consolidadas e a direita.

A Terceira Esquerda ainda é apenas um movimento de opinião presente em pessoas da classe média urbana escolarizada. Não tem penetração nas classes mais baixas. Seus líderes são pensadores dispersos cuja maior articulação por enquanto é um dar like no texto do outro no Facebook. Por enquanto não há um movimento organizado, nem mesmo uma revista que unifique esta tendência. Ideias desta tendência podem ser encontradas com mais facilidade na Piauí e no Instituto Humanitas Unisinos. A revista Carta Capital, apesar de ser da Primeira Esquerda, com espaço para integrantes da Segunda Esquerda, também tem textos que podem ser identificados como ligados à Terceira Esquerda.

Embora não todos, grande parte dos integrantes da Terceira Esquerda estão relacionados apenas com meio ambiente, direitos humanos e minorias. Apesar de serem temas muito relevantes, não são suficientes em um país de renda média como o Brasil. Aliás, até em países de renda alta a esquerda vem tomando pau por ser identificada só com isso.

As opiniões da Terceira Esquerda têm espaço reduzido na opinião pública brasileira porque em um ambiente de grande polarização, há pouco espaço para meios termos. Alguns integrantes da Terceira Esquerda já receberam o apelido pejorativo de “isentões”.

Integrantes da Terceira Esquerda cobram autocrítica das duas outras esquerdas, mas também deveriam fazer sua própria autocrítica. Apontam a incapacidade dos partidos de esquerda mobilizarem pessoas, demonstrando que as manifestações vermelhas tiveram número muito inferior de pessoas em comparação com as manifestações amarelas. Mas as manifestações pretas, de esquerda autônoma, com simpatia de integrantes da Terceira Esquerda, geralmente foram ainda menores do que as manifestações vermelhas. O PT, o PCdoB e o PSOL tiveram grandes derrotas nas eleições municipais de 2016, mas a REDE, que conta com a simpatia de alguns integrantes da Terceira Esquerda, teve desempenho pior ainda.

Uma pergunta pertinente para a Terceira Esquerda é: o que fazer? Criar mais um partido fica difícil, pois já há mais de 30 registrados no TSE, o sistema partidário brasileiro já está consolidado, e ainda existe a PEC para reduzir o número de partidos no Congresso Nacional. Mas organizando-se fortemente como um movimento de opinião, seria possível influenciar o rumo das duas esquerdas já consolidadas. É importante lembrar que um movimento de direita, presente na mídia, na Internet e nas associações empresariais, não criou partidos, mas foi muito útil para puxar o PSDB para a direita.

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