Brasil? Leva que é de graça

Por Carlos Drummond.

Caso se concretize a intenção do Ministério da Fazenda anunciada na quarta-feira, 4, de reduzir a alíquota das importações de bens de capital de 14% para 4% e a de produtos de informática e de telecomunicações de entre 6% e 16% para a média internacional, conseguirá a indústria nacional sobreviver à avalanche inevitável de produtos acabados produzidos no exterior?

Há risco de um baque fatal, alertam economistas e empresários. “Não fomos chamados para discutir essa proposta. Não há estudos sobre o impacto da medida”, reclamou aos jornais José Velloso, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq). “A ideia é absurda. Com tarifas rebaixadas o País terá pouco ou nada a barganhar com os países desenvolvidos em futuras negociações”, protestou Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee).

As contestações provavelmente não surtirão efeito, dada a adesão absoluta do governo à abertura econômica um dia preconizada pelo próprio empresariado e aplicada de modo incondicional por várias administrações, sem exigência de contrapartidas dos investidores estrangeiros à concessão do acesso ao mercado nacional.

Brasília deixa claro, nesta e em inúmeras outras decisões do gênero, ter abdicado por completo do papel de coordenação dos agentes econômicos com vista aos interesses do País, limitando-se à função de escritório local executor de objetivos dos investidores estrangeiros. A categoria empresarial nativa, cabe ressaltar, mostra-se também muito aquém da visão de país de um Roberto Simonsen, o primeiro presidente da Confederação Nacional da Indústria, na demarcação de limites entre empresas brasileiras e firmas estrangeiras.

Nessa toada tende a se concretizar a previsão do empresário Mario Milani de que o País demorará de 30 a 40 anos para ser uma grande potência industrial, meta que exige a redução dos juros e a desvalorização do real, entre outros requisitos. Quando a globalização se intensificou, revelou Milani, presidente da Sogefi Filtration do Brasil em depoimento ao Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, as empresas brasileiras de autopeças, sem contar com um mercado de capitais desenvolvido e diante de juros bancários altos, não tinham a menor condição de se tornar players globais e 95% do parque de autopeças foi vendido.

A abertura incondicional dos anos 1990 limitou o escopo da indústria automobilística e do País, descreve Milani: “O governo abriu o mercado, deu terrenos e reduziu impostos para montadoras se instalarem aqui, mas deveria também ter imposto regras. A primeira delas, pela qual sempre lutamos no Sindipeças, é a elaboração da engenharia de pelo menos uma das plataformas no Brasil.

uso da engenharia local é indispensável para adaptar os modelos estrangeiros às condições brasileiras de estradas ruins e de muita chuva em algumas regiões, por exemplo. A criação de uma plataforma local constituiria um mercado. Sem isso, os nossos filhos que estão na faculdade de engenharia não terão onde trabalhar. Era necessário impor, exigir, vender caro o acesso ao nosso mercado, mas o entregaram de graça.”

O industrial sofreu as consequências do aprofundamento do abismo entre as condições de operação das empresas brasileiras em comparação às das suas concorrentes nos países avançados. Fundou a Filtros Fram em 1964 e comandou-a até 1991, quando vendeu o controle ao grupo britânico Sogefi Filtration. “Não tínhamos a mínima condição de continuar.

Onde obter recursos para crescer, fazer fábricas para o mundo? Os nossos ícones eram a Cofap e a Metal Leve, todo mundo queria ser como eles. Mas nem eles aguentaram.” A Metal Leve, fundada por José Mindlin, foi vendida à alemã Mahle em 1996 e, no ano seguinte, a Cofap, criada por Abraham Kasinski, teve o controle adquirido pela italiana Magneti Marelli.

Anote-se que o problema denunciado por Milani se generalizou na economia. Dos grandes países com mercados de tamanho significativo, o Brasil é o único com vinculação ao capital estrangeiro sem exigência de contrapartida, chama atenção o economista Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

“Os Estados Unidos, a Rússia, a China, a Índia sempre usaram o seu mercado como um ativo para negociar. O Brasil foi o que mais se abriu para o capital estrangeiro. Nem sempre isso aconteceu. Getúlio Vargas não excluía o capital estrangeiro, por exemplo na Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, feita com tecnologia e capital americanos, mas dentro de determinadas linhas estipuladas pelo governo brasileiro. A partir de Juscelino Kubitschek, presidente entre 1956 e 1961, é que se consagra no Brasil esse tipo de industrialização que mais nenhuma nação grande e populosa fez.”

Por que, questiona Fonseca, a burguesia brasileira, que tinha vencido heroicamente as etapas iniciais da industrialização, quando chega nos anos 1950 resolve aceitar a internacionalização? Por que o Brasil não tem uma indústria automobilística nacional, se mesmo países com mercados menores como a Itália, a Suécia e o Japão, entre outros, implantaram o setor?

Ele mesmo responde: “Vargas tentou fazer a Fábrica Nacional de Motores e o País tinha todas as condições para desenvolver o setor. Automóvel não era mais uma tecnologia impossível de dominar, mas os empresários locais não foram adiante nisso. Repare, o Estado teve de bancar a própria FNM porque eles ou não tinham interesse, ou não tinham fôlego, ou achavam mais fácil se associar ao capital estrangeiro.”

Kubitschek, prossegue Dutra, queria, entretanto, acelerar, avançar 50 anos em 5 (era seu lema), e aí tinha de ser com o capital estrangeiro, que já vem com a tecnologia pronta. Ao passo que, se fosse investir em tecnologia, fazer pesquisa, levaria mais tempo. Outras nações optaram por esse caminho mais demorado, de desenvolver sua própria tecnologia.

Ao menos parte da capitulação do País expressa na aceitação da entrada de capital estrangeiro sem obrigatoriedade de contrapartidas deve-se ao fator ideológico. A avalanche de privatizações, muitas vezes com desnacionalizações concomitantes desde os anos 1990 foi acompanhada do discurso da supremacia incontestável da empresa estrangeira sobre a nacional.

A economista Roberta Sperandio Traspadini, professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana e da Universidade Federal de Santa Catarina, estudou a formulação daquela visão por Fernando Henrique Cardoso. Para FHC, diz, o desenvolvimento dependente e associado e a interdependência são preceitos necessários aos países latino-americanos e à sua inserção na economia capitalista mundial.

Essa alternativa, prossegue a professora, vem acompanhada do risco de esgotar qualquer possibilidade autônoma para o continente, já que no modelo por ele defendido as economias latino-americanas têm de estar alinhadas à lógica e às determinações do capitalismo central em situação de reprodução da subordinação política e dependência econômica.

“Não há como pensar o desenvolvimento nos moldes dos países centrais. Ao contrário, o desenvolvimento dependente e associado seria a única alternativa viável para a economia brasileira conseguir romper com seu atraso. É desse modo que ele defende a inserção internacional subordinada”, sublinha Traspadini.

Em Empresário Industrial e Desen-volvimento Econômico no Brasil, de 1972, FHC afirma mais de uma vez que é nas organizações estrangeiras que as “qualidades empresariais estão objetivadas nas normas da produção e administração científicas”.

Mas se assim é, como explicar que a indústria brasileira alcançou o topo mundial do setor em 1973, quando o peso do valor adicionado pela manufatura ao PIB superava os da França e dos Estados Unidos? Se só resta ao País se submeter a um desenvolvimento subordinado, de que modo se compreende a existência da Petrobras, pioneira mundial na sofisticadíssima tecnologia para exploração de óleo e gás em águas ultraprofundas, e da Embraer, terceira maior fabricante de aviões do planeta, superada só pela estadunidense Boeing, que hoje tenta anexá-la, e pela europeia Airbus?

De que maneira se encaixam na fatalidade da inserção internacional subordinada a produção pela Marinha do Brasil do ciclo completo do combustível nuclear e o início da fabricação do primeiro submarino movido a energia atômica, ambos com a participação de cerca de 200 competentes fábricas fornecedoras locais e ainda sob a pressão constante dos Estados Unidos? E a excelência científica da Embrapa, fundamental à ascensão do agronegócio verde-amarelo ao seleto grupo dos mais produtivos do mundo, como se explica?

Fica difícil acomodar também na condição de desenvolvimento subordinado incontornável a história exemplar do aço brasileiro, que não era competitivo segundo sentenciou décadas atrás a consultoria dos Estados Unidos Booz-Allen (atual Booz Allen Hamilton), que desaconselhava o empreendimento autônomo nacional.

Os projetos siderúrgicos da Usiminas, da Cosipa e da Ferro e Aço de Vitória estavam em plena implantação em meados da década de 1960, requeriam elevados aportes de valores, mas os grupos acionários privados que os conceberam originalmente não tiveram meios suficientes para atender às necessidades e o então BNDE, outra criação de Vargas, era obrigado a honrar as garantias prestadas anteriormente a financiamentos externos.

O banco público aportava também recursos para assegurar a continuidade dos empreendimentos com adiantamentos que a seguir eram convertidos em participação societária, pois as empresas privadas não conseguiam pagar as antecipações de caixa.

“Assim o BNDE tornou-se o ‘Banco do Aço’ (três quartos do seu orçamento eram gastos na siderurgia) e as empresas viraram empresas estatais”, revelou Sebastião José Martins Soares, ex-superintendente do banco em entrevista à professora Maria da Conceição Tavares no livro Memórias do Desenvolvimento. Na época dessa ‘escolha de vencedores’, Roberto Campos era ministro do Planejamento.

Não adianta esperar reflexão neoliberal sobre os feitos nacionais enumerados acima, pois eles só foram possíveis com a ação firme do protagonista empresário-Estado, o inimigo número 1 dos adeptos daquela escola. Por outro lado, não se trata também de defender uma estatização só concretizável sob o stalinismo nem o fechamento da economia, de resto impossível e altamente indesejável.

A solução, ensina Celso Furtado, é de natureza política e de economia política: manter no País o centro de decisão da empresa. Só assim é possível atuar em benefício do interesse nacional dentro da própria relação de desenvolvimento dependente e associado, o que se fez com grande êxito nos casos descritos.

Roberto Simonsen, prócer do empresariado nativo, era um crítico da aplicação pura dos princípios liberais e argumentava que em nenhum país desenvolvido a premissa era praticada e que o processo de industrialização das nações avançadas contou com apoio decisivo do Estado. Uma afirmação, cabe ressaltar, rigorosamente verdadeira à luz da história, mas seu autor nunca contou com a devida atenção entre os seus pares, embora tenha merecido 11 citações por parte de Celso Furtado na sua obra principal, Formação Econômica do Brasil.

Simonsen alertava também que, enquanto o País tivesse um povo pobre, mal remunerado, jamais conseguiria sair do atraso. Costumava repisar os objetivos da Conferência de Teresópolis, das classes produtoras, realizada em 1945, por ordem de importância: combate à pobreza, aumento da renda nacional, desenvolvimento das forças econômicas, implantação da democracia econômica e obtenção da justiça social.

Os empresários de hoje, salvo raras exceções, querem distância dessas reflexões. Em suas pesquisas para a biografia Roberto Simonsen Prelúdio à Indústria, Luiz Cesar Faro e Mônica Sinelli constataram o quanto é profunda a ojeriza das chamadas classes produtoras de hoje ressalvadas as exceções aos ensinamentos do primeiro presidente da CNI.

Os autores vasculharam entidades de classe, entrevistaram partidários da industrialização, buscaram obter registros, comentários e opiniões sobre o biografado, mas o resultado foi frustrante: “Não tivemos êxito. O silêncio do empresariado sobre Roberto Simonsen é ensurdecedor. Ele ressoa o abandono do ideário de entrega e luta em prol do desenvolvimento nacional. É o depoimento mais expressivo: o que não figura na obra”.

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