Brasil é o primeiro país a retroceder no combate e prevenção à tortura no mundo

Foto: Akira Onuma/Ascom Susipe

Por Denise Viola.

A Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu nesta semana parte do decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) que exonerou onze integrantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. A Justiça também mandou reintegrar os funcionários exonerados.

O órgão é ligado ao Ministério Público e ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A medida de Bolsonaro motivou uma denúncia da entidade Justiça Global à Organização das Nações Unidas (ONU).

A decisão da justiça é de caráter liminar, ou seja, provisória, e foi dada em resposta a uma ação movida pela Defensoria Pública da União (DPU). Em entrevista ao Programa Brasil de Fato, Natália Damásio, integrante do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, explica como funciona o órgão e como foi recebida a notícia da revogação de parte do decreto de Bolsonaro.

Brasil de Fato: Como atua o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura?

Natália Damásio: Foi criado a partir do cumprimento de um tratado da Organização das Nações Unidas (ONU). Basicamente, uma lei internacional que o Estado se obriga a cumprir desde 2007 criando órgãos autônomos e independentes para fiscalizar espaços de privação de liberdade, ou seja, abrigos, hospitais psiquiátricos, penitenciárias, sistema socioeducativo, dentre outros, para que se pudesse criar e produzir informação sobre torturas ou tratamentos degradantes, desumanos e cruéis, assim como propor políticas públicas e articular com outros órgãos envolvidos sejam do Executivo, do Sistema de Justiça ou Legislativo. Pensar em conjunto com esses órgãos propostas que pudessem evitar que a tortura se torne uma prática comum como hoje é no nosso sistema penitenciário, assim como em qualquer outro espaço de privação de liberdade.

Como funciona esse protocolo?

No momento que ratifica esse tratado, cada país tenta capilarizar esse sistema para garantir que todos os espaços de privação de liberdade vão ter pessoas executando essa tarefa em todo o território nacional. Nesse sentido é criado um sistema que é composto por dois órgãos cada um. Vamos começar pelo nacional: é composto pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura que tem os peritos, as onze pessoas que foram inicialmente exoneradas pelo decreto, e tem o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Esse mesmo modelo é replicado nos estados.

O que são os Comitês?

São compostos por uma série de órgãos ligados ao Sistema de Justiça, Executivo, Defensoria Pública, Conselho Penitenciário, a nível federal, o Ministério da Justiça. É um órgão híbrido, que tem alguns conselhos de classe, como o Conselho de Psicologia, regional ou federal, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional local ou federal, e mais os conselhos de serviço social, e além de tudo, cinco representantes eleitos da sociedade civil. Esses peritos que operam nesses órgãos são eleitos por esse comitê. É aberto um edital público, é feito um processo seletivo com base em eleição. Nós somos eleitos por um mandato de quatro anos, passível de recondução, caso reeleito, por mais quatro. Aqui no Rio somos seis peritos. É assim que é a montagem desse sistema que não é só brasileiro, também existe em outros países que ratificaram esse protocolo. É importante ressalvar que o Brasil é o primeiro caso de retrocesso em relação à criação de um Mecanismo. De todo o sistema global de proteção, é a primeira vez que a ONU está lidando com um país que retroagiu na implementação do protocolo.

Em um país que se depara com seu representante maior achando que a tortura é uma coisa natural.

Exatamente. O que se reproduz nos espaços da Comissão de Anistia e da Comissão de Mortos e Desaparecidos, também se reproduz na Prevenção. Esse tipo de violação continua acontecendo mesmo no período pós-1988, que é quando vem a nossa Constituição Federal atual, chamada Constituição Cidadã.

Aqui no Rio, quais são as violações mais frequentes com as quais vocês se deparam durante a fiscalização?

A gente encontra um sistema extremamente superlotado com um déficit de mais de 128 mil vagas no estado. São 53 mil presos, o fluxo de encarceramento é muito grande. Para além da superlotação e todos os problemas que isso gera, que é a falta de acesso à água e a um lugar para dormir adequado, a gente encontra na saúde um problema grave do sistema. Por exemplo, até julho,120 mortes já estão oficialmente contabilizadas pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap). Vou dar o exemplo de um presídio que está em uma situação extremamente vulnerável, o Jorge Santana, onde se encontra um número alarmante de presos baleados sem que eles tenham sequer acesso a médico. A maioria deles possuem amputação, tiros na cabeça, tendem a ter deficiências físicas que adquirem, na verdade, pela forma de encarceramento. Eles nem sequer estavam tendo acesso à gaze.

Outros agravos também aparecem: conseguir cirurgia para uma hérnia, um tratamento para câncer, pessoas que vivem com HIV, com tuberculose. Fora isso, você tem uma alimentação completamente inadequada em termos de nutrientes, condições completamente insalubres, há presídios com buracos no chão onde as pessoas fazem suas necessidades, elas dormem nesses espaços com esgoto a céu aberto. Pessoas dormindo em celas com capacidade para 75 com 180 pessoas. No geral, essas pessoas estão morrendo por conta de deterioração de saúde e são mortes evitáveis porque no sistema carcerário estamos lidando com uma população muito jovem, com uma média de 19 a 30 anos.

Quando o mecanismo constata uma irregularidade qual é o encaminhamento?

Depende. São uma série de encaminhamentos. Por exemplo, a gente faz o acompanhamento de casos individuais e também de casos coletivos. A depender, desde encaminhar junto à Seap pessoas para atendimento médico, até por exemplo o envio de uma denúncia para o Ministério Público. Pensar com a Defensoria saídas para um caso específico que envolva falta de acesso à saúde. Até, por exemplo, questões mais estruturais, como estimular a continuidade e aperfeiçoamento das audiências de custódia do Estado, pensar medidas legislativa com deputados e deputadas que tenham apreço pela questão das garantias fundamentais, ou seja, básicas de sobrevivência, os direitos humanos dos presos. Uma variedade de possibilidades de encaminhamentos que a gente dá, que são analisados em cada caso concreto ou cada presídio, porque são muito distintas realidades prisionais, que demandam encaminhamentos muito específicos.

Como vocês receberam a notícia da decisão judicial que revoga parte do decreto?

É importante ver o grau de reação que teve, ações da defensoria pública, um mandado de segurança para os peritos, uma carta da sociedade civil assinada por mais de 240 organizações e instituições, notas do Subcomitê de Prevenção de Combate à Tortura da ONU, manifestando o fim de uma política pública. Porque é isso que a gente é, nós somos uma política pública. Outra reação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, demandando que fosse restituído o órgão. Teve uma reação tanto institucional quanto da sociedade civil muito forte com o desmonte. Nós vemos como reconhecimento de que o trabalho que o Mecanismo faz é de interesse difuso e de garantia básica de acesso à direitos humanos. Não é um órgão que é criado do nada, ele tem uma história, tem uma missão e ele vem cumprindo uma missão que até então não era realizado por nenhum outro órgão no país, que é de ser um órgão independente e autônomo que garanta que as pessoas tenham condições mínimas de sobrevivência. Que se interrompa em definitivo a tortura, que é um crime de lesa humanidade.

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