Boulos: “Modelo econômico dos governos Lula e Dilma gerou crise urbana e agravou déficit habitacional”

Por Lamia Oualalou.

Entrevista a Guilherme Boulos líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Afirmou que objetivo do grupo ‘não é só conquistar a moradia, mas reverter o modelo urbano para acabar com o caráter de segregação das cidades brasileiras’

Dezoito anos após seu nascimento em São Paulo, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) está se afirmando como um dos novos protagonistas da mobilização popular.

Representando 45 mil famílias em dez capitais brasileiras, o movimento já ganhou certa capilaridade e se afirma como o primeiro movimento urbano do país. Para seu principal líder, Guilherme Boulos, o objetivo do grupo não é só “conquistar a moradia, mas reverter o modelo urbano para acabar com o caráter de segregação das cidades brasileiras”.

Apontando o crescimento das ocupações por sem-tetos – que triplicaram em 2014 – ele explica que isso não é resultado da crise econômica. Para ele, foi a própria política econômica dos governos Lula e Dilma que provocou a especulação imobiliária. Isso porque apostaram no crédito para a moradia sem nenhuma regulação em relação, por exemplo, aos preços dos aluguéis. “A crise urbana antecedeu a crise econômica no Brasil”, resume.

Formado em filosofia pela USP, o militante, com 33 anos, defende uma “Frente Social”, ou uma “Frente Popular”, para combater o avanço da direita sem apoiar o governo. No entanto, o MTST não compõe a Frente Brasil Popular, fundada no começo de setembro por iniciativa do PT, do PCdoB, da CUT, do MST e da UNE.

Revista Samuel/Opera Mundi: Os movimentos de sem tetos, e especialmente o MTST, ocupam um espaço cada vez maior nos protestos na rua. Por que a questão da moradia é tão crucial?

Guilherme Boulos: O MTST nasceu em 1997, com a proposta de fortalecer a luta pela moradia digna no Brasil, que tem um dos maiores déficits habitacionais no mundo. Calcula-se que 5,8 milhões de famílias são consideradas sem tetos, ou seja, 20 milhões de pessoas. Além disso, o déficit qualitativo – que representa as pessoas que têm uma casinha, mas sem acesso a serviços públicos ou infraestrutura urbana – atinge mais de 15 milhões de famílias no país. Isso significa que o problema da moradia afeta direta ou indiretamente um terço da população. Em relação à população urbana, a proporção é ainda maior.

RS: Porque que esta luta ganhou mais visibilidade nos últimos dois anos, sobretudo a partir das manifestações de junho de 2013?

GB: Junho de 2013 funcionou como um gatilho, um disparador. A panela de pressão explodiu, deixando escapar as tensões latentes na sociedade brasileira, entre elas a da crise urbana. Não é à toa que junho de 2013 estoura com um tema urbano, que é a mobilidade. A crise da mobilidade tem tudo a ver com a especulação imobiliária. Se você joga as pessoas para mais longe, você agrava o problema de transporte, já que a oferta de trabalho continua no centro.

As pessoas passam pelo menos 4 horas por dia em ônibus lotados para ir ao trabalho. Acrescente a isso os despejos e as remoções provocados pela Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos e você entende o crescimento dos sem-tetos. O número de ocupações não para de crescer. Em São Paulo, foram 250 entre 2011 e 2012, e passaram a 680 entre 2013 e 2014, três vezes mais.

RS: Por que a panela de pressão estourou dois anos atrás numa situação de geração de emprego ainda forte e de alta da massa salarial? 

GB: Acima de tudo porque o processo que nós vivemos no último período agravou as contradições do modelo urbano. O modelo de desenvolvimento adotado pelos governos do PT, embora seja comparativamente melhor do que as políticas neoliberais puro-sangue dos anos 1990, preservou muitos elementos desta política. A ampliação do mercado interno e do consumo popular através do crédito, que por um lado é positivo, por outro, teve um efeito perverso. Este crescimento foi uma das locomotivas da construção civil, o setor que mais cresceu nos últimos 10 anos – junto com o agronegócio e dos bancos.

O crédito para aquisição ou construção de casa aumentou brutalmente. Em 2005, o estoque de crédito imobiliário era de 4,8 bilhões de reais. Em 2014, atingiu 102 bilhões. Foi jorrado muito dinheiro público no setor da construção. Isso incentivou a criação de empregos e permitiu a alguns segmentos da chamada classe C ascender à casa própria. Mas também estimulou uma especulação imobiliária brutal. Algumas regiões de bairros periféricos que não eram capitalizados pelo mercado imobiliário passaram a ser e esta valorização implicou a exclusão.

Nos últimos sete anos, o valor da terra em São Paulo aumentou de 220%, e no Rio de Janeiro, de 265%, a maior alta do país. Boa parte das capitais brasileiras ficou neste patamar de 150-200%. Isso influi diretamente no valor dos aluguéis. Aquilo que o aumento do salário mínimo, Bolsa Família e o crédito deram para a família trabalhadora com uma mão, o aluguel tirou com a outra. Isso começou a provocar uma expulsão de pessoas, gerando uma onde de periferização, jogando as pessoas para regiões ainda mais distantes.

RS: Quer dizer que o processo de expulsões dos mais pobres para a periferia é anterior à crise econômica? 

GB: A crise urbana antecedeu a crise econômica no Brasil. Aliás, este modelo econômico gerou a crise urbana. Ao encher o setor da construção de crédito, empoderá-lo sem nenhuma regulação pública, o sistema aumentou o valor dos aluguéis e agravou o déficit habitacional. Para milhares de famílias não restou alternativa que não a ocupação de imóveis ociosos.

RS: O MTST privilegia ocupações nas periferias das cidades e não nos centros. Pode explicar esta escolha? 

GB: Primeiro, quero dizer que o movimento acha importante que ocorram ocupações nas regiões centrais, porque o que aconteceu com o modelo urbano foi expulsar os pobres do centro. Tem muitos edifícios ociosos que precisam ser reapropriados pelos trabalhadores pobres, e há vários movimentos que fazem isso no país. Estas ocupações são importantíssimas. A opção do MTST de focar mais nas periferias tem a ver com um projeto de acúmulo de força social para fazer mudanças no país.

Uma ocupação no centro, mesmo com toda sua importância, fica ilhada num ambiente hostil. Na periferia, é diferente porque o processo de ocupação das grandes periferias brasileiras foi historicamente de loteamento clandestino. Então uma ocupação nestas regiões se irradia e se relaciona com seu entorno, conseguindo se articular com outro projeto de reforma urbana para lutar por serviços públicos, saúde, educação, esporte, contra os despejos de comunidades historicamente estabelecidas. Esta luta dá mais horizonte e amplia o processo de organização popular. Para nós, não basta conquistar a moradia, queremos reverter o modelo urbano para acabar com o caráter de segregação das cidades brasileiras.

RS: Qual é sua avaliação da política de moradia do governo? GB: Primeiro, tem que lembrar que antes não tinha nenhuma política. Há seis anos temos o MCMV (Minha Casa Minha Vida) o que já é um avanço. Além disso, o programa incorporou uma reivindicação histórica dos movimentos que é o subsídio. Em países como o Brasil é impossível resolver a questão da moradia apostando só no crédito.

Boa parte das pessoas que não têm casa não tem condição de contratar um crédito, por ser de baixa renda ou por ter o nome sujo. A única forma de resolver é com subsídio, tratando a moradia como um direito, não como uma mercadoria. O MCMV chega a 95% de subsídios na faixa de renda mais pobre. Dito isso, o programa tem um problema central: ele não foi criado para resolver a questão da moradia no país, mas para injetar recursos no setor da construção civil, que estava ameaçado pela crise a partir de 2008. Neste sentido, a lógica do programa é comprometida por interesses econômicos muito mais do que com perspectivas sociais.

RS: Qual é o impacto do fato que, segundo vocês, o programa atende muito mais ao setor da construção do que a demanda de moradia?

GB: Os principais agentes do programa são as construtoras. Elas têm a prerrogativa de escolher o terreno, gerir a obra, e fazer o projeto. Ou seja, o planejamento urbano passa a ser privatizado. O mecanismo é o seguinte: a construtora tem um terreno, ela faz um projeto atendendo às especificações mínimas que ela submete à Caixa Econômica Federal. Tendo o projeto aprovado, ela recebe os créditos para construir as moradias. A prefeitura municipal indica as pessoas que vão morar lá. O governo paga o mesmo valor por unidade habitacional, independente do tamanho e da localização. Em São Paulo, por exemplo, o valor é R$ 76 mil por apartamento. Suponhamos: a construtora tem um terreno onde ela vai construir mil apartamentos. Ela vai receber R$ 76 milhões do governo para fazer a obra. Se ela fizer a obra aqui no centro ou no fundão de Itapecerica da Serra, ela vai receber os mesmos R$ 76 milhões. Se ela fizer apartamentos de 39m2, que é o mínimo, ou se ela resolver fazer 60m2, ela vai receber o mesmo dinheiro. Isso significa a produção de apartamentos de baixa qualidade, pequenas, e nas piores regiões.

Assim o MCMV acaba reproduzindo uma lógica de expulsar para a periferia os pobres, uma lógica segregadora. As construtoras utilizam seus piores terrenos para o programa e reservam os melhores para empreendimentos de alta renda.

RS: Apesar disso, vocês consideram que o programa ajudou a melhorar a questão da moradia? 

GB: Como já disse, o programa tem o mérito de existir e nós militamos, junto com outros movimentos de moradia, para conseguir o financiamento de sua terceira fase. Mas, na medida em que o MCMV produz casas e não cidade, na medida em que não vem acompanhado de políticas publicas de combate à especulação imobiliária, o programa acaba enxugando o gelo.

Em 2008, um ano antes de ele ser lançado, o déficit habitacional era 5,3 milhões. O último dado que temos, depois de mais de um milhão de casas construídas pelo programa, é de 5,8 milhões; Ou seja, o próprio déficit aumentou, porque o ritmo de construção de MCMV é menor que o ritmo de produção de novos sem-tetos por este modelo de cidade. Por conta de todos estes vícios, o programa acabou sendo utilizado como uma política de periferização e de remoção, isso é inaceitável. Ele representa o aprofundamento de um modelo de cidade excludente.

RS: Que medidas preconiza o movimento para acabar com exclusão urbanas? 

GB: São várias. Vou apontar as três principais. Primeiro uma nova lei do inquilinato. Não é razoável que uma questão tão social como o aluguel seja determinada apenas pela lei de oferta e procura. Tem que ter uma regulação que coloque, por exemplo, que o ajuste tenha como teto o índice de inflação. O aluguel aumentou três vezes mais que a inflação nos últimos anos. Isso já existiu na historia do país e existe em outros.

Segundo, temos que retomar uma política de terras públicas no Brasil. A constituição brasileira assegura o direito à propriedade, mas ela exige que esta propriedade cumpra uma função social. Isso não é respeitado. Tem milhares de terras privadas utilizadas apenas para a especulação imobiliária. Imóveis na região central esperando uma operação urbana, uma parceria público-privada para ser vendido melhor. “Esperando” não é a palavra correta: os interesses se articulam com os poderes públicos para conseguir esta valorização. Precisamos ter um combate brutal da especulação imobiliária, as chamadas traves de taxação da valorização imobiliária, que não existe hoje.

Finalmente, necessitamos uma política agressiva de levar o centro para a periferia e trazer a periferia para o centro. Isso significa levar os serviços públicos, a oferta do trabalho para a periferia. É irracional que as pessoas tenham jornadas de oito horas mais quatro no ônibus. Ao mesmo tempo, fazer das regiões centrais lugares de moradia para os trabalhadores mais pobres. O déficit habitacional é 5,8 milhões, como já vimos. O numero de imóveis ociosos é de 5,5 milhões. Ou seja, você praticamente resolveria o déficit se desapropriasse estes imóveis, muitos deles nas regiões centrais, para fazer moradia popular.

RS: Com a crise econômica os problemas de moradia vão se estender? 

GB: Por um lado, a crise econômica diminui o ritmo da especulação porque os imóveis param de se valorizar. Mas, por outro lado, a renda das famílias cai brutalmente. Com desemprego, redução salarial, a ocupação de terras por famílias vai crescer nos próximos anos. Estamos só no começo da crise, o ano que vem será um desastre.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Fonte: Revista Samuel/Opera Mundi

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