Boletim de ocorrência

Por Fernando Evangelista.

Se você tiver interesse em entender o ser humano, o primeiro lugar que deve ir é a uma delegacia de polícia. Não existe experiência mais profunda. Esqueça Shakespeare, Marx, Freud ou Profeta Sai Baba – eles não estão com nada.

Tudo o que você precisa saber sobre seu semelhante, mas teve medo de perguntar, está a sua disposição na delegacia mais próxima. Eu estava numa delas, em Florianópolis, na sexta-feira passada. Enquanto conversava com o delegado sobre o furto da minha bicicleta, reparei num papel em cima da mesa: era um boletim de ocorrência. Há pessoas que têm atração irresistível pelo poder, pelo dinheiro, pelo sexo, por salgadinhos Piraquê – eu tenho atração por boletim de ocorrência, popularmente conhecido como BO. O delegado foi atender uma ligação, numa mesa ao lado e eu fiquei sozinho com o documento.

Olhei para os lados, disfarçadamente, vi o policial concentrado na conversa por telefone, o escrivão jogando paciência no computador e a servente limpando o corredor. Virei o papel e iniciei a leitura.

Era a história de uma briga de mulheres, com consequências graves. Na hora, sem saber a razão, lembrei de um ensinamento de meu avô: “Para uma mulher comum, todas as ofensas podem ser perdoadas, menos uma”. Ele nunca disse qual ofensa seria essa. Meu avô era um sujeito enigmático.

O boletim de ocorrência, ali na minha frente, dizia o seguinte: “Na servidão X, em frente ao número Y, a Fulana de Tal, de 25 anos, doravante denominada Agressora, atacou a Sicrana da Silva, de 27 anos, doravante denominada Vítima, com uma chave inglesa”. Existe alguma coisa de fascinante, de poético mesmo, numa chave inglesa.

De acordo com o BO, “A Vítima e a Agressora eram vizinhas e até então mantinham uma relação ordeira e pacífica. O primeiro golpe foi certeiro e decepou o dedo indicador da Vítima”. Como foi possível decepar o dedo com uma chave inglesa é um mistério que a polícia terá dificuldade em responder.

O delegado desligou o telefone, sentou-se na minha frente, mas foi chamado pelo preso, o único da delegacia. Saiu da mesa proferindo alguns palavrões, que me abstenho de reproduzir.

Fiquei imaginando as duas, fisicamente. A Agressora, para que a maldade fique ainda mais evidente, deve ser alta, bonita, loira, rosto quadrado, cabelo curto, corpo bem definido, como uma russa de filme americano. Usava, no dia da briga, calça jeans com camisa preta.

A Vítima, por sua vez, deve ser morena, com leves traços indígenas, um pouco menor em tamanho, mas também muito bonita, embora mais discreta. Eu a imagino de vestido branco, mostrando as coxas bem definidas, lutando na estrada empoeirada (isso não estava no BO, mas qualquer vítima que se preze deve usar branco e qualquer servidão digna do nome deve ser empoeirada).

Continuei a leitura: “A Vítima, já sem o dedo indicador, projetou-se sobre a Agressora, derrubando-a. As duas caíram no chão. Depois de alguns puxões de cabelo, gritos histéricos e sangue derramado, a Agressora mordeu o dedo mínimo da Vítima, deixando exposta parte do osso”.

Tive que reler essa última informação porque não estava claro qual osso ficara exposto, mas entendi que era mesmo o osso do dedo mindinho. Prossegui: “A Vítima, sem o dedo indicador, e com o osso do mindinho exposto, foi imobilizada pela Agressora. Houve cuspes recíprocos, gritos e novas ameaças”.

“Estendida no chão, a Vítima pegou uma pedra e a jogou contra a cabeça da Agressora, provocando um corte no supercílio, sem gravidade. A Agressora retirou a pedra das mãos da outra e acertou-lhe na boca, causando a quebra do canino. Neste instante, o carteiro – no seu primeiro dia de trabalho depois da greve – virou a esquina e deparou-se com a cena das mulheres”.

Pela quantidade de sangue no local, o carteiro deve ter visto que a coisa estava feia. “O homem das cartas largou a bolsa no chão e deu uma chave de braço na Agressora, que tentou acertá-lo, sem êxito, com a chave inglesa. Finalmente, os vizinhos perceberam o que estava acontecendo e separaram as duas…”

O delegado voltou e eu desviei o olhar do boletim. Briga de mulher é coisa séria, eu disse. “Você não pode ler esses documentos”, retrucou o policial, com voz firme, mas sem rispidez. “É uma historia incrível”, eu disse.

O rosto do delegado se iluminou. Os homens têm fascínio por brigas de mulher. Uma briga de mulher, seja ela qual for, parece unir os machos, como se eles fossem parte de uma tribo superior, propiciando uma sensação de solidariedade e de prazer.

– Tudo por causa da vaidade – revelou o delegado. A Vítima, pelo que investigamos até agora, chamou a Agressora de gorda. Esse foi o motivo. Não tinha homem no meio, até aparecer o carteiro – que está em maus lençóis porque a bolsa com as cartas, no meio daquele rolo todo, sumiu”.

– Eu – continuou o delegado – estou aqui há mais de 20 anos e lhe digo uma coisa: não existe nada mais perigoso do que atingir a vaidade de uma mulher, a vaidade de uma mulher é a sua honra.

– Seu peso é sua honra, eu disse. E o que aconteceu com a Agressora?

– Foi presa em flagrante e depois liberada. De acordo com o advogado de defesa, ela está em depressão profunda.

– E a Vítima, que chamou a outra de gorda?

– Está em casa. Segundo relato dos vizinhos, parece feliz da vida. Mais do que chamar a outra de gorda, ela a convenceu de que isso é verdade. Essa é a sua grande vingança, sua vitória.

– Mesmo tendo perdido o indicador, parte do dedo mindinho e o dente canino? questionei.

– Claro, porque tudo é vaidade – disse o delegado, citando o Eclesiastes, com os olhos fixos no ventilador de teto.

Naquele instante, tive certeza de que meu avô, ao falar sobre ofensas contra as mulheres, queria dizer exatamente isso: atingir a vaidade feminina é imperdoável.

Fui embora, pensando na vida e nas mulheres, na vaidade e na vingança, sem esperança de reaver a minha bicicleta, mas com uma história para contar.

 

Imagem:http://www.linkdicas.com.br/saiba-como-fazer-um-boletim-de-ocorrncia-online/

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