Bitcoin, autonomia incompleta

Por Edemilson Paraná.

A disruptiva expansão do setor financeiro está na ponta de lança da globalização tecnológica, com destaque para o boom das telecomunicações e da internet nas últimas décadas. É nos mercados financeiros de todo o mundo onde as fronteiras da negociação automatizada em altíssima velocidade, processamento ubíquo de dados, inteligência artificial, realidade aumentada, entre outras, vem sendo expandidas na prática. É o caso do Blockchain, a tecnologia que serve de base ao Bitcoin, o mais novo ativo-sensação do mundo financeiro.

O Bitcoin é uma moeda digital alternativa, criada em 2009, com base em um texto apócrifo, assinado por Satoshi Nakamoto, ente cuja verdadeira identidade nunca foi revelada.

Mais um produto dos humores políticos “libertários” que ganham terreno no mundo pós-crise de 2008, tem como ideia-força retirar do par bancos-governos o poder de emissão e gestão do dinheiro. Utopia tecnocrática de uma moeda sem política, a ideologia econômica que o ampara faz parecer fichinha qualquer palavrório sobre a necessidade de “autonomia” do Banco Central.

Mas sua engenhosidade não é, por isso, menos fascinante. Trata-se de algo inédito: uma moeda gerida de maneira descentralizada e anônima, sustentada por criptografia robusta. Sua administração algorítmica está baseada em um livro público, aberto e, portanto, auditável que registra todas as transações.

O processamento destas transações, em blocos, é feito pelos próprios usuários que, ao utilizarem seu poder de processamento computacional em prol da “comunidade”, recebem em troca um incentivo pecuniário em Bitcoin – algo que é apoiado, ademais, pela resolução de problemas matemáticos por essas mesmas máquinas. Assim são produzidos (ou “minerados”), trocados e verificados os Bitcoins.

Essa moeda digital demorou algum tempo para deixar de ser apenas mais um intrigante e promissor experimento hacker e cair de vez nas graças dos investidores. Mas assim que isso ocorreu, sua evolução vem sendo surpreendente.

Alimentado pela promessa de ganhos sempre crescentes, sua escalada impulsiona e é impulsionada por uma verdadeira “corrida ao ouro”. Novas cryptomoedas, como o Bitcoin, e novos ambientes de negociação são criados, empresas de tecnologia e investidores de risco entram e saem do negócio em curto intervalo de tempo; para não mencionarmos os esquemas fraudulentos levados a cabo neste novo faroeste financeiro –um ambiente livre de regulação, bem ao gosto do liberalismo selvagem.

Mas se essa nova mania tem feito muita gente esfregar as mãos de entusiasmo, já começa também a causar preocupação em grandes gurus das finanças, instituições financeiras, governos e reguladores. Algo que ocorre nem tanto devido à magnitude de seu volume financeiro, mas sobretudo por conta de sua trajetória acentuada de crescimento e pelo risco que configura para os mercados em geral.

Estados e grandes bancos já falam em revidar criando suas próprias cryptomoedas, e autoridades começam, aos poucos, a intervir por meio de regras e proibições. De Brasília a Nova York, esquemas vêm sendo desmantelados, levando, em alguns casos, seus agentes à prisão. Seria ingênuo imaginar, afinal, que, tocando em aspectos tão sensíveis da economia mundial, as cryptomoedas fariam imperturbáveis seu caminho rumo ao sonho hayekiano de “desestatização” do dinheiro capitalista.

Por razões teóricas e práticas, que não cabem ser aqui aprofundadas, muito indica que, concernente aos aspectos monetários, o futuro do Bitcoin parece pouco promissor. É mais provável que siga sua trajetória antes como um reluzente ativo financeiro do que como uma moeda no sentido pleno do termo. Mas mesmo neste caso, trata-se de algo bastante incerto e arriscado.

O Bitcoin é uma moeda de emissão limitada (buscando mimetizar a escassez do ouro, seu algoritmo-base estipula um total de 21 milhões de Bitcoins a serem decrescentemente criados/minerados até 2140), o que impõe grandes desafios à sua circulação.

Vinculado a este problema, cresce em alta velocidade (por razões econômicas, mas também técnicas) o número de milionários Bitcoin e a consequente concentração econômica em seu ambiente, em proporção muito maior do que a verificada em qualquer outra moeda existente.

Para piorar, sua gestão começa a dar mostras de relevantes problemas de segurança da informação, e emergem dúvidas sobre o real poder da elite de técnicos sob a qual é sustentado seu funcionamento pretensamente horizontal, neutro e impessoal.

No entanto, uma das características que mais vem chamando a atenção dos mercados é sua altíssima volatilidade –o quanto seu preço varia em um dado período de tempo.

Essa assustadora montanha russa de variações dificulta sua adoção como moeda, uma vez que poucas pessoas se sentiriam confiantes para fazerem dívidas, comprarem produtos básicos ou receberem seus salários em um ativo que pode cair pela metade ou duplicar de valor no espaço restrito de um mês ou pouco mais. No entanto, essa mesma volatilidade configura, para especuladores, um grande atrativo, já que ganhos consideráveis podem ser obtidos em um curto espaço de tempo, explorando tais oscilações.

Eis, então, um dos segredos por trás do boom das cryptomoedas. Do ponto de vista estrutural, a rápida valorização do Bitcoin é apenas mais uma ponta do iceberg da financeirização generalizada a que as economias vêm sendo submetidas nas últimas décadas.

Turbinado pela liberalização e desregulamentação financeira, pelo engajamento dos Estados no processo generalizado de inflação de ativos, pela privatização de bens e serviços públicos e estatais, a corrida do Bitcoin, bem como as demais venturas e desventuras dessa forma de inovação financeira, não é causa, mas o sintoma de um problema maior: o excesso de riqueza concentrada na esfera financeira que, sem se dirigir a investimentos produtivos, vive da busca constante por novas oportunidades de ganhos fictícios de curtíssimo prazo.

Eis, pois, seu paradoxo. Antes do que uma nova fonte de perturbações, a corrida do Bitcoin é mais um produto da instabilidade sistêmica vinculada à submissão crescente da reprodução da vida social ao objetivos, temporalidades e modos de funcionamento da Finança.

Fonte: Outras Palavras. 

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