Por Cíntia Alves.
A privatização seria o caminho para solucionar o grave problema do encarceramento em massa no país?
Alguns gestores públicos acreditam que sim e por isso lançaram mão de projetos pilotos, como a penitenciária de Ribeirão das Neves (MG), a primeira construída por meio de uma parceria público-privada. A ideia inspirou outros estados e, inclusive, motivou a discussão de um projeto de lei no Senado para regulamentar esse novo sistema, que foi anexado à Agenda Brasil lançada pelo PMDB às vésperas do impeachment.
Uma vez no poder, a equipe de Michel Temer já sinalizou que pretende privatizar presídios, sob a lógica neoliberal de que “conteúdo nacional exacerbado” e que traz prejuízo deve ser entregue à iniciativa privada por meio de concessão, para que o Estado mantenha apenas “aquilo em que formos competitivos”.
Em entrevista ao GGN nesta quarta (4), Bernardo Faeda, coordenador assistente do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, avaliou que privatizar não é a solução. Sequer é uma alternativa juridicamente válida e em conformidade com a Constituição.
Faeda apontou que a solução é “desencarcerar”, descriminalizar algumas condutas e mudar a mentalidade da sociedade que acha que bandido bom é bandido morto.
“Grande parte da população, insuflada por programas televisivos sensacionalistas, acredita que punição cruel é algo que a pessoa fez por merecer. A verdade é que essa pessoa vai voltar para a sociedade um dia, e ela deveria voltar ressocializada, não pior do que entrou.”
Abaixo, a entrevista completa:
GGN: Qual é o panorama do sistema penitenciário hoje?
Bernardo Faeda: O panorama é catastrófico. Hoje em dia o sistema penitenciário brasileiro é uma forma de tortura institucionalizada mesmo. São mais de 600 mil presos, a quarta maior população carcerária do mundo. Cerca de um terço desses presos encontra-se no estado de São Paulo.
Na verdade, as penitenciárias brasileiras, como um todo, são locais de superlotação. O número de vagas é muito inferior ao número de presos atuais e a superlotação no encarceramento é uma das principais razões de violação de direitos humanos.
É possível traçar um paralelo entre uma solução via terceirização e a ideia de um presídio privatizado com parceria público-privada (PPP)?
A diferença é que na privatização, toda a gestão do presídio é desenvolvida por um particular. No caso da terceirização, apenas alguns desses serviços públicos prestados no interior do presídio são terceirizados.
Há algumas penitenciárias no País que estruturam-se no modelo de PPPs [parcerias público-privadas]. Existe até um projeto federal que estabelece alteração na Lei de Execução Penal para autorizar expressamente a possibilidade de serviços penitenciários serem executados via PPP.
O Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo entende que o serviço público penitenciário, dada sua especificidade e inerência ao serviço público, não pode ser, de forma alguma, transferido para o particular sob pena de violação de princípios e normas constitucionais. Ao nossa ver, é inconstitucional a transferência da execução penal, em qualquer de suas facetas, para o particular. Sobretudo em decorrência da função precípua da pena, que é a ressocialização, em detrimento de princípios que regem a iniciativa privada, como a busca e o interesse pelo lucro.
Essa inconstitucionalidade também atinge a terceirização, não apenas a PPP?
A gente sabe que é uma realidade a terceirização da empresa que fornece os alimentos. Não posso dizer que, por si só, isso é inconstitucional ou violaria os princípios que regem os serviços públicos no Brasil. É absolutamente secundário.
Mas a assistência material, jurídica, de saúde, educacional, social, religiosa, de segurança, ou seja, serviços públicos que integram a essência da execução penal, a meu ver, não podem ser objetos de concessão. São serviços de natureza intransferível.
Em São Paulo, como está o cenário? Há muitos presídios privados ou terceirizados?
Temos 176 unidades prisionais e elas não são terceirizadas. Não saberia te informar sobre projeto específico de implantação aqui, mas são 176 unidades prisionais, desde Centros de Detenção Provisória, a Centros de Progressão Penitenciárias, e penitenciária mesmo, para quem já foi sentenciado, e essas unidades são todas geridas pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado.
Se é inconstitucional delegar tarefas essencialmente ligadas à execução penal a empresas privadas, por que alguns estados já fazem isso e discutem ampliar as terceirizações e PPPs?
Acho que essa discussão polêmica sobre PPPs e privatização de presídios existe por uma constatação óbvia: o sistema penitenciário brasileiro está completamente falido. Não há como ressocializar ninguém com a estrutura atual. A função precípua da pena, como já disse, é a ressocialização, e isso é inviável. O sistema virou responsável não só pela privação de liberdade, mas de privação de dignidade. O próprio sistema penitenciário é inconstitucional. Daí essa tentativa de solução, que seria a privatização, mas essa não é uma possibilidade juridicamente plausível.
É um serviço público que tem que ser prestado intransferivelmente pelo Estado. A solução é que o Estado preste esse serviço com a máxima eficiência possível, de forma humanizada e respeitando todos os parâmetros constitucionais.
O senhor chegou a conhecer as experiências de PPPs em Minas Gerais ou outros estados? Do ponto de vista de ressocialização e garantia do direito à dignidade humana, esse sistema privado não teria demonstrado um pouco mais de sucesso em relação aos presídios públicos?
Não conheço pessoalmente esses locais. Não tenho como afirmar. Acredito que há uma discrepância de ordem principiológica, que é a diferença entre a essência desse serviço público e o que busca uma empresa.
Há, em sua opinião, algum aspecto positivo em construir presídios por meio de PPPs?
Não, acredito que não há aspectos positivos porque isso fere normas fundamentais basilares. Ainda que, de fato, o sistema prisional público esteja falido, a alternativa não poderia ser incompatível com os princípios que regem o direito brasileiro.
Há até uma questão de ética, porque o incremento do núcleo empresarial muitas vezes demandaria o incremento do próprio encarceramento.
O encarceramento, ao contrário de outros serviços, não importa do ponto de vista de desenvolvimento da sociedade, mas sim do fator de involução e de depredação do ser humano que está sujeito a um estado de vulnerabilidades. Por isso não poderíamos legitimar o enriquecimento de uma sociedade empresária, que busca incrementar lucro ano após ano, com base no encarceramento, algo nefasto na sociedade.
Sei que a questão posta é que do jeito que está, não dá para ficar. Mas temos que criar alternativas juridicamente válidas e constitucionalmente aceitáveis, e não é o caso da privatização.
Quais seriam as alternativas, na sua visão?
Acho que podemos pensar de duas formas. A primeira forma é desencarcerar. Temos de reduzir a população e isso demandaria um esforço grande, inclusive do Legislativo, de fazer com que o rol de delitos que ensejem a privação de liberdade seja reduzido. Penitenciária deveria ser local destinado exclusivamente para crimes gravíssimos, praticados mediante violência física, não todo e qualquer delito. A solução é a busca por uma justiça penal transacional, negocial, com uma realidade mais ligada à ideia de ressarcimento da vítima do que ao punitivismo, encarceramento, infligir sofrimento de natureza pessoal.
Por outro lado, é indispensável a mudança de mentalidade de todos: operadores do direito, juízes, promotores, defensores, advogados e da população que tem a visão de que bandido bom é bandido morto. Grande parte da população, insuflada por programas televisivos sensacionalistas, acredita que punição cruel é algo que a pessoa fez por merecer. A verdade é que essa pessoa vai voltar para a sociedade um dia, e ela deveria voltar ressocializada, não pior do que entrou.
Essa iniciativa seria retroativa, ou seja, seria aplicada em favor de quem já está preso ou seria um desencarceramento para valer no futuro?
Toda lei penal que a gente chama de benéfica ao réu retroage. Então se vier, hoje, uma norma que estabeleça uma pena para o crime de furto que não seja o encarceramento, isso retroagirá para outros casos. Só uma norma penal maléfica ao réu não iria retroagir.
Como avalia a decisão do Supremo Tribunal Federal de desvincular o trânsito em julgado da execução penal já a partir de decisões em segunda instância?
A decisão do Supremo, para além dos efeitos práticos nefastos que possui – evidentemente vai aumentar o número de presos – viola expressa e dramaticamente a Constituição. Não poderia ter sido exarada dessa forma, mas não há recurso contra essa decisão. É uma interpretação que o Supremo adotou ao arrepio de uma norma da Constituição que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado, derivado do princípio da presunção de inocência.
Há outras decisões recentes do Supremo que, como esta, contribuem para agravar o caos do sistema penitenciário?
Eu gostaria de acreditar que existem decisões recentes do Supremo que, na verdade, podem melhorar essas condições. É que elas são de difícil aplicação. Por exemplo, a Súmula Vinculante 56, se for efetivamente aplicada, poderá gerar algum desencarceramento porque garante que o preso deverá cumprir a pena no regime compatível, e se não houver vaga no regime incompatível, alternativa não haveria senão a de colocação em liberdade condicional. É uma decisão complicada de ser colocada em prática.
Também estamos esperando decisões do Supremo sobre descriminalização de condutas, como no caso do aborto – há decisão nesse sentido do ministro Barroso – e da descriminalização do porte de drogas para uso, que está com o ministro Teori Zavascki, que fez um pedido de vistas. O voto de Gilmar Mendes é no sentido de descriminalizar a droga para uso.
O que quero dizer é que, em que pese a lastimável decisão do Supremo acerca do trânsito em julgado, há decisões boas que já foram tomadas ou que ainda não foram formalizadas porque os ministros pediram vistas. O problema, depois, será a distinção entre a teoria e a prática.
No caso da Súmula Vinculante 56, qual é a dificuldade de pôr em prática?
A Súmula diz que preso que estava em regime fechado e progrediu para o semiaberto tem que ser transferido. Se não tiver vaga no semiaberto, tem que ir para o regime domiciliar. O que temos visto, na prática, e na realidade específica de São Paulo, é que diversos presos são transferidos para centros de progressão penitenciária, ou seja, para estabelecimentos de regime semiaberto, mas que estão superlotados. Ou seja, tudo passa pela mudança de mentalidade, porque lotar esses lugares não é solução de nada. Pelo contrário, temos hoje a quarta maior população carcerária do mundo e não resolvemos os nossos problemas de segurança.
Fonte: Brasil de Fato.