Belo Monte queima madeira legal e aquece mercado ilegal

Enquanto desperdiça as árvores que derrubou, a usina compra madeira irregular, esquentando o mercado criminoso que invade terras indígenas

Por Ana Aranha, de Altamira (Pará).

Deslizando pelas águas do rio Xingu, no Pará, entre praias de areia branca e árvores de quatro andares, o contraste é intenso quando o barco se aproxima de uma ilha envolta em fumaça. O chão, coberto por uma fina camada de pó branco, ainda está quente. Não há uma árvore em pé. Só se vê toras transformadas em carvão e pilhas de galhos secos. O vento atiça as brasas ainda acesas. No centro da ilha, cercado pelas marcas do fogo, encontramos um jacaré morto.

O incêndio não foi acidental, logo chegam funcionários uniformizados munidos de combustível e tochas. Eles espalham as chamas sobre as pilhas de vegetação seca. No uniforme cor-de-laranja, lê-se: Belo Monte (leia nota no fim da reportagem). Eles são funcionários de uma terceirizada da Norte Energia, empresa responsável pela usina de Belo Monte, para limpar a área que vai virar lago. A hidrelétrica tem autorização para desmatar até 43 mil hectares, parte deles dentro de Áreas de Proteção Permanente.

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Foto: Marcio Isensee e Sá

A queima foi autorizada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas é criticada por ambientalistas, moradores locais e poder público. “A fumaça prejudica o meio ambiente, por isso [o incêndio] é proibido por lei”, diz Luiz Alberto Araújo, secretário municipal do meio ambiente de Altamira, um dos municípios onde fica a usina. “O pequeno produtor não pode, mas o Ibama dá autorização para a usina. São dois pesos, uma medida”.

Em tese, a autorização é só para a queima de galhos finos. Os troncos devem ser serrados e aproveitados. Mas a reportagem testemunhou dezenas de toras sendo queimadas e outras dezenas transformadas em cinzas. Sob condição de anonimato, os trabalhadores confirmaram que queimar toras é procedimento padrão.

A reportagem visitou também ilhas onde o desmatamento estava acontecendo. Macacos gritavam de cima de árvores que eram serradas. Alguns só pulavam no momento da queda. “O macaco é mais esperto, ele pula e não se machuca. O bicho preguiça não.” diz um trabalhador que pede para não ser identificado. “Não vou mentir, sempre morre. A preguiça não tem a agilidade do macaco. Muitas vezes a gente pega o bicho quebrado, com a mão quebrada, perna quebrada. Ou morto mesmo”. A usina é obrigada manter uma equipe que retira os animais durante o desmatamento. Mas, em uma das ilhas visitadas, as árvores foram derrubadas por mais de uma hora sem a presença da equipe que faz o resgate.

Ao receber as denúncias da Repórter Brasil, o Ibama confirmou a “queima de material lenhoso não autorizada” e a “completa irregularidade” da ausência da equipe do resgate. A Norte Energia, empresa responsável por Belo Monte, já foi multada por queimar madeira e autuada por falhas na retirada dos animais. “Caso confirmada a reincidência na infração [da queima de troncos], será aplicada nova penalidade com o agravamento previsto na legislação”, declarou o diretor de licenciamento ambiental do Ibama Thomaz Miazak de Toledo. A Norte Energia não respondeu aos questionamentos sobre as queimadas e o resgate dos animais.

A queima de árvores e morte dos animais é apenas a primeira etapa do círculo vicioso que marca a relação de Belo Monte com a floresta ao redor. Autorizada a devastar milhares de hectares, a usina deveria aproveitar essa madeira na sua própria obra ou doar para uso externo. A entrada de grandes quantidades de madeira no mercado local ajudaria a diminuir a pressão sobre a floresta. Era esse o plano e uma das condições para a obra ser aprovada. A prática foi bem diferente.

Árvores jogadas fora

Além de queimar árvores, a usina de Belo Monte também desperdiça madeira ao abandonar as toras a céu aberto. A reportagem visitou três depósitos de Belo Monte cheios de madeira estragada. Em um deles, o tempo de abandono era tão longo que trepadeiras forravam as pilhas de troncos. Em breve, elas devem desaparecer por completo em meio ao mato.

No Reassentamento Urbano Laranjeiras, conjunto residencial construído na periferia de Altamira para abrigar os ribeirinhos removidos, os troncos já estavam trincados por dentro. Entre eles, toras de castanheiras, árvore protegida por lei e que a usina não poderia derrubar fora da área de alagamento. A espécie foi identificada por Lindomar Andrade, coordenador de fiscalização da secretaria do meio ambiente: “Essas árvores foram tiradas daqui e ficaram debaixo de sol e chuva. Estragou tudo”.

“Isso é uma extravagância”, surpreendeu-se o ribeirinho João Pedro da Silva, quando soube que a Norte Energia derrubara tantas árvores para construir a sua casa. Ele foi removido das ilhas queimadas e colocado nesse reassentamento. O local lembra os conjuntos habitacionais da década de 70, com dezenas de fileiras de casas idênticas cercadas por terra seca. Desde que foi removido, ele sofre com o calor e com uma “lembrança no peito”. Sua antiga casa, na beira do rio, era “forrada” pela floresta. A Norte Energia não deixou uma árvore em pé no novo bairro.

Não é possível saber o tamanho do desperdício por que, desde meados de 2014, a usina parou de divulgar o volume de árvores desmatadas. O último relatório do Ibama diz que Belo Monte usou na obra apenas 10% de 115 mil metros cúbicos da madeira derrubada. A proporção pode ser ainda menor, já que não foram somadas as árvores derrubadas em 2015, ano em que a atividade foi mais intensa. A usina pode desmatar até 3,9 milhões de metros cúbicos.

A falta de transparência fica evidente graças ao trabalho dos pesquisadores do Instituto Socioambiental (ISA), que se debruçaram sobre os milhares de documentos do licenciamento. Eles encontraram diversos pareceres do Ibama registrando a desordem no trato com a madeira. Em 2013, a falta de controle era tão flagrante que um parecer técnico registrou: os pátios de Belo monte podem virar “sumidouros de madeira”.

“Há três anos os técnicos do Ibama identificam que a Norte Energia não controla o quanto produziu, mas o órgão nunca aplicou multa por isso”, aponta Leonardo Amorim, advogado do ISA. Provocado pelas denúncias do instituto, o Ministério Público Federal de Altamira abriu um inquérito civil público para investigar a gestão da madeira em Belo Monte.

Indagado sobre por que o Ibama não faz uma cobrança mais efetiva para exigir controle e uso da madeira, o diretor de licenciamento ambiental argumenta que essa é uma operação complexa. “Nós fixamos metas, vamos sempre tencionando para que ela não se acomode com a madeira apodrecendo nos pátios. Mas a Norte Energia não tem interesse em utilizar essa madeira”, afirma.

Segundo ele, Belo Monte foi a primeira usina obrigada a desenvolver um plano de aproveitamento da madeira. O início da limpeza das ilhas atrasou em um ano porque a usina demorou para apresentar o destino que daria às árvores derrubadas. O plano era que a madeira fosse transformada em carvão para uso na indústria siderúrgica do Pará. Segundo toledo, o plano caiu por terra quando o setor entrou em crise.

Esquentando o mercado ilegal

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Ao invés de aproveitar as árvores desmatadas para a área onde será criado o lago, a usina compra madeira irregular (Foto: Marcio Isensee e Sá)

Na mesma semana em que a reportagem registrou o desperdício de madeira, o Consórcio Construtor Belo Monte foi multado em R$ 250 mil por comprar madeira irregular. Entre os indícios de que a madeira tinha origem ilegal, as notas não batiam com a espécie transportada. A ação aconteceu em agosto. Em abril, o Ibama já havia autuado o consórcio e o fornecedor pela mesma infração. Isso não significa que toda a madeira comprada pela usina tem origem ilegal. Mas indica que a usina não está controlando sua cadeia de fornecedores, já que insistiu na empresa já autuada. Segundo o Ibama, Belo Monte comprou de 514 metros cúbicos de madeira irregular.

Mas por que a usina prefere deixar sua madeira estragar enquanto compra de um mercado contaminado?

É que, nessa região, transportar e tratar a madeira seguindo as regras ambientais é mais caro do que comprar o produto pronto. O mercado explica: “a ilegalidade predomina no setor madeireiro daqui. Nossa indústria regularizada está parada, temos oito empresas fechadas”, diz Maria Augusta da Silva Neto, diretora do Sindicato dos Produtores Rurais e ex-empresária do setor madeireiro. “O custo é alto para quem quer trabalhar dentro da lei, ninguém aguenta a competição com o mercado clandestino”.

O crime ambiental é praticado na frente de todos. A reportagem seguiu um caminhão sem placa que carregava toras da Terra Indígena Cachoeira Seca até uma serraria. Essa serraria tem autorização para receber madeira de planos de manejo – locais onde a madeira pode ser derrubada de modo controlado. É assim que a madeira ilegal ganha lastro.

O esquema está enraizado no mercado e na política local. “O crime organizado opera no Pará. O estado emite crédito fictício para plano de manejo que não faz manejo nenhum” afirma Luciano Evaristo, diretor de proteção ambiental do Ibama. Ele critica a facilidade com que os planos são aprovados pelo governo estadual. “O estado não fiscaliza, monitora mal e não passa os dados para o órgão federal ir lá monitorar”.

É desse mercado que Belo Monte compra. “Até o fim de 2012 a usina comprou 17 mil metros cúbicos de madeira, equivalente a 800 caminhões cheios de toras, uma quantidade gigantesca para a região. Ela aqueceu o mercado de madeira ilegal da região sem necessidade, sendo que ela poderia ter usado a madeira que ela mesmo produz”, afirma Amorim, do ISA.

A compra de madeiras também é investigada pelo Ministério Público Federal. “Há suspeita de aquisição de madeira por serrarias que não cumprem as leis”, afirma o procurador federal Higor Rezende Pessoa. “A aquisição de madeira em grandes volumes por fornecedores que não tenham certificação florestal acarreta no desmatamento ilegal de terras indígenas e terras públicas federais”.

Invasão de terras e violência

Quando se olha o entorno da usina, é fácil entender por que jogar madeira fora é motivo para abertura de inquérito. A obra foi cravada em uma fronteira explosiva. De um lado, terras indígenas e unidades de conservação abrigam as últimas árvores de alto valor econômico na região. Do outro, a ocupação violenta herdada da abertura da estrada Transamazônica na década de 70, região onde, ainda hoje, os conflitos por terra são arbitrados pela “lei do mais forte”.

De 2010 a 2014, período de construção, o desmatamento foi 53% maior do que era projetado para a região.

A chegada de Belo Monte joga lenha nessa fogueira. Primeiro por que, ao queimar árvores e comprar madeira de fora, a usina coloca dinheiro em um setor contaminado pela ilegalidade. Depois, por que a usina atrai gente de todo o país. Com o aumento populacional, cresce a demanda local por madeira, por produtos agropecuários e por terra – o que acelera a invasão das áreas preservadas e indígenas. Esse impacto é oficialmente previsto pelos estudos da usina.

De 2010 a 2014, período de construção, o desmatamento foi 53% maior do que era projetado para a região. O estudo é de Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). No início do licenciamento, ele foi contratado pela Norte Energia, a pedido do Ibama, para fazer a previsão de desmatamento. Barreto projetou que, ao longo de 20 anos, Belo Monte pode ser responsável pelo desmatamento adicional de até 500 mil hectares. A área corresponde a tudo o que foi desmatado na Amazônia em 2014.

Ibama e Norte Energia contestam o estudo. Governo e empresa se alinham na defesa de que a usina não é responsável pela destruição da floresta no seu entorno. Segundo o diretor de proteção ambiental do Ibama, o desmatamento a um raio de 100 quilômetros da usina caiu mais do que a média da Amazônia. Em nota, a Norte Energia lembra que o desmatamento já era um problema anterior à chegada da usina. “É ingênuo sustentar que Belo Monte é a impulsionadora de problemas que há anos não são combatidos de forma adequada”. A empresa também questiona a metodologia usada pelo estudo do Imazon.

Há um elemento que nenhum número alcança: a realidade local. Basta uma visita às terras indígenas na zona de impacto da usina para ver o trânsito de caminhões sem placa. No começo de uma manhã, enquanto o sol nascia, a reportagem cruzou com cinco deles em fila. Todos carregavam grandes toras, nenhum tinha placa. Os madeireiros burlam os radares e satélites ao roubar apenas as árvores mais valiosas, sem abrir clareiras.

Nesse mesmo local visitado pela reportagem, a Terra Indígena Cachoeira Seca, a Norte Energia deveria ter construído dois postos de vigilância.

Belo Monte só foi aprovada na condição de investir na proteção dos territórios que sofreriam mais pressão depois da sua chegada. O Plano de Proteção Territorial era uma das condicionantes para a obra acontecer. Antes de ser construída, a usina deveria ter erguido 21 postos de vigilância em terras indígenas e contratado 122 técnicos. Isso antes da obra começar. Cinco anos depois, a usina já está pedindo licença para operar e os postos não estão funcionando.

Se depender da usina, muitos nunca vão. A Norte Energia propõe substituir a fiscalização em terra pelo monitoramento por satélite, reduzindo o número de postos de 21 para 11.

Para quem acompanha de perto os efeitos da obra, cortar as bases locais é um erro. “O satélite é uma ferramenta de apoio, não pode substituir os postos e os funcionários locais”, afirma Marcelo Salazar, do ISA. O Ibama já funciona com equipes móveis e a maior dificuldade é que, quando os fiscais vão embora, tudo volta ao “normal”.

O superintendente de assuntos indígenas da Norte Energia, Thomas Sottili, afirma que a mudança está sendo feita com o aval do governo. “Foi um diálogo entre a Funai e o governo federal, eles acabaram observando que a Funai teria dificuldade para ocupar essas unidades. Por isso, essa proposta seria mais eficiente”.

Com mudanças ou não, a procuradora federal Thais Santi está ansiosa em ver a proteção chegar aos povos indígenas. “Os impactos já aconteceram e vão aumentar por que o início da operação é um dos piores momentos para a proteção territorial. É quando os canteiros se desarticulam e aumenta a presença humana”, afirma Santi, que acompanha os impactos da usina sobre os povos indígenas.

O cerco está fechando para os índios que vivem na Cachoeira Seca. Esse grupo, formado pelo povo Arara, teve contato com a Funai há apenas 30 anos. Por isso, o órgão indigenista não autoriza visitas da imprensa à aldeia.  Mas os madeireiros entram armados. Os índios estão encurralados dentro da sua terra, e já evitam caçar em certas áreas. “Eles estão apavorados, não vão aguentar muito tempo”, diz José Cleanton Ribeiro, coordenador do Conselho Missionário Indigenista (Cimi) de Altamira, que morou na aldeia por quatro anos. “Alguns já falam em procurar outro lugar, minha preocupação é que os madeireiros vão expulsar eles de lá”.

A quem Belo Monte responde?

As ações de proteção às terras ao redor de Belo Monte são tarefa compartilhada entre a Norte Energia, governo federal, estadual e municipal. Mas, em algumas frentes, ninguém assume a responsabilidade.

É o caso da necessária retirada de moradores não indígenas de terras indígenas. Sottili, da Norte Energia, argumenta que ações repressoras são de responsabilidade do estado. Toledo, do Ibama, diz que questões indígenas são de responsabilidade da Funai. E a batata quente acaba nas mãos do órgão com menor capital político para mobilizar os órgãos necessários.

A procuradora Thais Santi aponta a perigosa troca de chapéus que contamina a fiscalização da usina. A Norte Energia tem como principal acionista (49,9%) a Eletrobras, empresa controlada pelo governo federal. Desde que era ministra de Minas e Energia, a presidenta Dilma Rousseff se dedica ativamente à aprovação de Belo Monte. A presidência acionou a suspensão de segurança, mecanismo usado pelo regime militar, para impedir que a justiça julgue o mérito das 22 ações movidas pelo Ministério Público. Apesar de interessado direto, é um órgão do governo federal, o Ibama, que fiscaliza e autoriza o funcionamento da usina.

Belo Monte já solicitou e está aguardando autorização para começar a funcionar. Em setembro, o Ibama deu a primeira negativa à usina, ao adiar a Licença de Operação enquanto ações para reduzir os impactos não forem completadas. Esse momento é visto como crucial pelas entidades que acompanham o empreendimento. Para muitos, é a última chance de corrigir os erros mais graves e garantir que cuidados mínimos serão tomados.

Foto de capa: Jacaré encontrado no centro de uma ilha onde houve queimadas (Foto: Marcio Isensee e Sá)

Fonte: Repórter Brasil

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