Belo Monte. O monumento e o monstro

Por Lúcio Flávio Pinto*.

Os índios do Xingu ocuparam a maior obra pública em andamento no Brasil. Depois se retiraram do local. Foi o primeiro acordo com os engenheiros da hidrelétrica de Belo Monte em 23 anos. E agora: qual será o rumo da história?

Desde a sua fundação, e durante os 40 anos seguintes, a Federação das Indústrias do Pará teve um único presidente: Gabriel Hermes Filho. Gabriel foi senador por muitos anos, deputado federal e dirigente de órgãos públicos. Um homem sagaz e com um senso agudo da oportunidade. Estava sempre ao lado do governo no poder.

Mesmo com essas credenciais, já encanecido, o senador anunciou que comandaria o maior protesto contra a construção da hidrelétrica de Tucuruí, a maior obra em andamento no Brasil naquele inicio da década de 1980.

O dirigente das indústrias paraenses era inteiramente a favor da usina, tanto por pensar assim como por ser do partido do governo. O problema é que a barragem mantinha bloqueado o rio Tocantins. Às vésperas de ser inaugurada, ninguém levava a sério a exigência feita desde 1934, pelo Código de Águas, a quem fechasse um rio: restabelecer-lhe a navegabilidade.

Tratava-se, no caso, do 25º maior rio do mundo. Depois de percorrer quase dois mil quilômetros, o Tocantins estava represado a 300 quilômetros da sua foz. Precisava de um sistema de transposição para continuar a ser um rio navegável – e legalizado.

Para isso, teria que dispor de duas eclusas, de um canal de concreto entre elas, com cinco quilômetros de extensão, e obras de desobstrução no seu leito, rio acima. Obra para mais de um bilhão de reais, valor atualizado. A maior eclusa do mundo.

A empresa construtora da usina, a estatal Eletronorte, se livrou logo do que era para ela um abacaxi. Queria se dedicar apenas à geração de energia. O resto não lhe interessava (mesmo que “o resto” fosse uma bacia hidrográfica ocupando 8% do território nacional).

Em protesto, o senador Hermes anunciou que iria se colocar sob uma das comportas da represa e lá se imolaria quando ela fosse aberta para dar passagem às águas. No ano recorde de vazão, 1980, o Tocantins chegou a despejar naquele ponto 68,5 milhões de litros de água por segundo.

Ao lado do senador no momento em que ele comunicou seu ato heroico, ofereci-lhe um guarda-chuva para enfrentar o desafio. Todos riram, inclusive o candidato a maior surfista de todos os tempos. Tratava-se, evidentemente, de pura bazófia. O senador não molhou o seu corpo, a barragem inundou três mil quilômetros quadrados a montante (criando o 2º maior lago artificial do país) e as eclusas só foram parcialmente concluídas mais de duas décadas depois, no final do governo Lula.

As eclusas podem permitir a passagem de 30 milhões de toneladas de cargas nas duas direções. Por enquanto, por ela fluem poucas embarcações. Nenhuma integrante da grande frota de pequenos barcos típicos da região, que não atendem às condições exigidas para atravessar as duas câmaras de transição. Só navios de maior porte ou balsas utilizarão as eclusas.

É mais um efeito excludente da grande obra, que não foi feita para atender os nativos, mesmo porque eles não são contemplados pelo planejamento central e não tomam em suas mãos esse poder. O tão desejado sistema de transposição servirá aos novos senhores da região.

Talvez não ao maior de todos, a Vale, que neste momento realiza obras para aumentar a capacidade de carga de sua ferrovia (Carajás-Ponta da Madeira) de 130 milhões para 230 milhões de toneladas anuais. Só o acréscimo excede em mais de três vezes toda a capacidade de carga das eclusas de Tucuruí, que são as maiores do mundo.

Fica a pergunta: tinham razão os tecnocratas, quando se recusavam a atender aos pedidos das elites locais para cumprir a lei e restabelecer a navegação no Tocantins, argumentando que a região não tinha carga para justificar o pesado investimento? Não tinha e ainda não tem. Mas podia ter se, em função dessa nova infraestrutura, estímulos fossem dados ao desenvolvimento do vale do Araguaia-Tocantins, tema de um plano pago pela Sudam para ficar nas prateleiras e permitir o faturamento do consultor, a Hidroservice.

Poder absoluto

A Eletronorte fez o que quis durante a construção de Tucuruí, a quarta maior usina de energia do mundo. A legislação de proteção ambiental só começou a ser formada seis anos depois que o empreiteiro contratado instalou o seu canteiro de obras, em 1975. Quando a primeira das 21 turbinas entrou em operação, em 1984, nada mais havia a fazer para impedir o efeito dos erros que foram cometidos e dos absurdos que se incorporaram ao projeto.

Não há mais dúvida que a corrupção influiu decisivamente na multiplicação dos custos da obra, ou que maior atenção e alguns cuidados teriam reduzido o impacto negativo da enorme usina. Mas Tucuruí está em pleno funcionamento há mais de uma década e meia. Responde por 7% de toda geração de energia consumida no Brasil, abaixo apenas de Itaipu. Se a corrupção consumiu 2 bilhões de dólares ou se até hoje os efeitos negativos se fazem sentir, isso já é coisa do passado, história.

O perfil dessa usina é típico de um regime ditatorial. Com todos os poderes concentrados nas suas mãos, Brasília fez o que quis desde o começo das obras até a inauguração festiva da hidrelétrica, três meses antes de terminar o mandato do último governo militar, o do general João Figueiredo. Já as outras grandes usinas que se seguiram estão sendo construídas em plena democracia, a mais duradoura de toda a história republicana.

Todas as pressões, mobilizações e ataques aos três grandes projetos em execução se explicam pelas características da própria democracia. Não surpreende que os canteiros de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, e de Belo Monte, no Xingu, no Pará, sejam palco de conflitos jamais registrados no âmbito de Tucuruí.

Quem acompanhou mais de perto as obras no Tocantins deve ter contemplado com certa perplexidade e algum embevecimento a imagem da mais recente investida a Belo Monte, dos índios e seus aliados, os “guerreiros ambientalistas”, conforme se denominam.

Eles conseguiram abrir um canal no meio da barragem de terra, com algumas centenas de metros de extensão, que já interrompeu o fluxo natural do Xingu. A intenção seria a de libertar o rio, apenas um pouco menos extenso do que o Tocantins, do aprisionamento que a engenharia humana lhe impôs. Para que ele possa fluir com a liberdade que a natureza lhe concedeu.

O dano que os manifestantes causaram à ensecadeira de terra é quase nenhum, embora, sob um governo forte, como o que viabilizou Tucuruí, nem isso teriam conseguido. Os muitos órgãos de informação se antecipariam à iniciativa e os braços repressivos do regime, logo acionados, acabariam com o ato de protesto, se ele chegasse a se realizar, à base de violência.

Na democracia em que estamos, os manifestantes fizeram seu minúsculo dreno na estrutura, que é a espinha dorsal da monumental obra de engenharia que uma represa desse porte exige. Mas logo as enormes máquinas reporão tudo na condição original e a obra prosseguirá, sofrendo apenas uma ranhura no seu cronograma físico e financeiro. O simbolismo terá sido bem mais vivo e efetivo do que o do senador Gabriel Hermes Filho, no ocaso da ditadura.

Esse é o lado da democracia que favorece a cidadania. Mas ele tem outra face: exige conhecimento e responsabilidade das lideranças. Quando o ato deixa de ter o objetivo político evidente, na sangria do bloqueio de um rio belo e admirável como o Xingu, para se tornar quebra-quebra, por mais nobre que seja sua inspiração, o conteúdo político da manifestação é erodido, rui, desaparece.

Com isso se infiltra o risco de o ato descambar para o mero episódio policial, com danos a reparar e autorias a imputar. Ainda mais quando nem sempre os que executam a concepção sabem o que estão fazendo. E os que sabem nem sempre digam o que sabem. Na democracia, ganhar de qualquer maneira não é jogo válido, sejam quais forem os jogadores.

A outra face

Duas semanas depois da série de manifestações contra a barragem, incluindo ataque às instalações administrativas da concessionária da obra, pela primeira vez índios e engenheiros fumaram o cachimbo da paz no Xingu. Depois de 23 anos de escaramuças em torno da construção da hidrelétrica de Belo Monte, eles firmaram um acordo, no dia 11.

Os representantes das cinco etnias que moram na área de influência direta daquela que pretende ser a terceira maior hidrelétrica do mundo (mas a maior inteiramente brasileira) aceitaram o prosseguimento das obras. Em troca, os construtores se comprometeram a cumprir o que o licenciamento ambiental já os obrigara a fazer, mas agora sob a fiscalização dos próprios índios.

Eles também acompanharão um dos efeitos mais temidos do represamento do rio Xingu, às proximidades de Altamira, no Pará, já no seu curso médio: a falta de água a jusante, por onde se espalham algumas tribos. Elas sofreriam sede e fome em pelo menos três meses do ano, quando é maior a estiagem.

Um dos compromissos assumidos no licenciamento ambiental pelo consórcio que venceu a concorrência pública de Belo Monte foi o de manter uma vazão mínima de 700 mil litros de água por segundo. É bem acima do nível registrado nos verões mais rigorosos, de 400 mil litros. Se ocorrer vazão abaixo desse patamar. a Norte Energia pode ser punida e até perder a concessão – com ou sem a fiscalização indígena, formalizada agora em dois comitês gestores.

Acusada de não cumprir várias das medidas mitigadoras dos efeitos negativos da obra e de não seguir o roteiro do licenciamento ambiental. A Norte Energia foi denunciada logo no dia seguinte por advogados dos próprios índios ao governo federal, com o pedido de severas punições. Era uma reação ao resultado da véspera.

Todas as reivindicações que os índios levaram consigo ao ocupar o canteiro de obras Pimental foram atendidas, depois de dois dias de intensa negociação. Após a assinatura do termo de entendimento, eles se retiraram do local, ao qual retornaram os 2,5 mil operários que ali trabalhavam. A consolidação do acordo, que afasta o principal entrave para a continuidade dos serviços, vai depender da execução do que foi definido.

O atraso, na verdade, será mínimo, quase imperceptível. E os pedidos dos índios poderão ser atendidos sem maior esforço porque já constavam do projeto. A rigor, a montanha pariu um rato. Muito barulho e confusão para pouco efeito real. A não ser que a partir de agora se torne possível impor à concessionária maior obediência às suas obrigações e deveres, com os quais tem manifestado tão pouca atenção.

A monumental hidrelétrica está sendo construída simultaneamente em cinco frentes. Todas trabalham em terreno seco, o que é uma raridade nessas grandes obras na Amazônia. Têm assim excepcional celeridade, como em nenhum outro empreendimento similar na região.

No local ocupado pelos índios surgirá o principal dos dois vertedouros do projeto, ao lado do qual será montada a casa de força complementar. A casa de força principal será erguida depois do segundo vertedouro, este não motorizado, 50 quilômetros rio abaixo em linha reta (140 kms pelo leito natural, que segue a “volta grande”). É um desenho completamente original para os padrões das hidrelétricas. Nem todos atentaram para essa singularidade.

O projeto rejeitado liminarmente pelos mesmos grupos indígenas em 1989 pouco tem a ver com o atual. A concepção original era a mesma da hidrelétrica de Tucuruí e de outras grandes barragens. Tudo devia se concentrar na área que os índios ocuparam no dia 21 de junho: vertedouro e casa de força. Se tivesse sido assim, a obra pararia por inteiro e os prejuízos teriam sido de grande monta.

Para poder vencer (ou contornar) a resistência nacional ao aproveitamento hidrelétrico do vale do rio Xingu, pelo impacto ecológico que seria causado a uma das mais belas e complexas áreas do país, entre Mato Grosso e Pará, o governo cancelou cinco das seis barragens previstas nos inventários realizados a partir dos anos 1970. Restou Belo Monte.

Ao invés de uma barragem, passaram a ser três. No ponto mais a montante já está em construção o vertedouro principal, que no início não seria motorizado. Na mais nova das versões (que parecem não ter fim), ele receberá oito turbinas do tipo bulbo.

Elas são bem pequenas: sua capacidade é mais de 20 vezes inferior ao das gigantescas turbinas Francis, 18 das quais (e não mais 20, como estabelecia a penúltima versão do projeto) ficarão na casa de força principal.

As turbinas bulbo do vertedouro Pimental funcionam com pouca água e com água em baixa queda (basta um desnível de 12 metros, contra 90 metros das turbinas convencionais de Belo Monte). Não precisam de acumulação de água num reservatório. São – como dizem os engenheiros – a fio d’água, com baixíssimo impacto ambiental, se seguidas as normas legais e os compromissos contratuais.

Os 233 megawatts que essas oito máquinas irão gerar, a partir de 2015, representam 40% do que produz uma única das 18 turbinas convencionais da outra casa de força. No conjunto, estas últimas é que respondem pelos 11 mil MW potenciais de Belo Monte. Energia que será transferida quase integralmente para o sul do Brasil. O consumo local podia ser atendido apenas com as máquinas do sítio Pimental.

Antes de chegarem a esse reservatório, as águas do Xingu (que podem atingir ali vazão de 19 milhões de litros por segundo) serão desviadas do seu curso natural. Ao fim de 50 quilômetros, elas terão descido 90 metros através de canais artificiais de concreto, também já em construção, na maior obra desse tipo em todo mundo.

Uma intrincada rede de canais conduzirá a água a um segundo reservatório (o Bela Vista) criado fora da calha do rio. Passando por um novo vertedouro, a água chegará à tomada da casa de força principal. Suas máquinas precisam de 10 milhões de litros por segundo para serem capazes de gerar conforme sua capacidade instalada.

Essa plenitude só será atingida nos meses mais chuvosos do ano, que não serão mais do que sete ou oito. Por isso a energia firme, aquela disponível durante o ano todo, cai para 4,3 mil MW, bem abaixo do que seria a média econômica, de 5,5 mil MW. Ainda assim, os projetistas de Belo Monte garantem que ela será rentável e que, sozinha, irá assegurar 8% da demanda nacional, através de uma matriz renovável e limpa.

Respondendo aos críticos e se ajustando aos novos padrões de exigência, o complexo hidrelétrico do Xingu representa, ao pé da letra, o que diz o seu título. É a obra mais complicada que já se concebeu e se realiza no Brasil no setor de energia. De tantas emendas e correções, adquiriu um perfil inteiramente novo, que pode ser visto como algo monstruoso (um Frankenstein hidrelétrico) ou primoroso, conforme o modo de vê-lo.

É claro que essa vasta complexidade na abordagem de um rio não esteve posta na mesa de negociação com as lideranças indígenas. Mas estará de volta às planilhas da obra em acelerado andamento. De tal maneira que talvez só com o fato consumado se venha a saber ao certo que criatura surgiu da prancheta dos engenheiros.

Eles se recusam, de forma arrogante e inaceitável, a discutir com a sociedade o que conceberam e não param de mudar. Tantas alterações, inclusive com a obra já em pleno curso, sugerem que há um grave componente de imponderabilidade e de surpresa nesta maravilha da engenharia.

* Jornalista paraense. Publica o Jornal Pessoal (JP)
Fonte: Adital

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