Barragem da Samarco continua vazando e lama segue descendo o rio, diz presidente da CUT-MG

Por Marco Weissheimer.

O impacto do rompimento da barragem da Samarco em Bento Rodrigues, ocorrido no último dia 5 de novembro, no subdistrito do município de Mariana, é muito maior do que se consegue ver hoje e terá consequências devastadoras para a vida de muitas comunidades. O alerta é da professora Beatriz Cerqueira, presidente da Central Única dos Trabalhadores em Minas Gerais, que vem acompanhando o caso desde o início e participa de uma articulação de sindicatos, movimentos sociais e populares de Minas que luta para que os responsáveis paguem civil e criminalmente pelo ocorrido. Em entrevista ao Sul21, Beatriz Cerqueira, fala sobre essa mobilização e sobre a dimensão do impacto social e ambiental do rompimento da barragem, “que não foi um acidente”, faz questão de enfatizar, “mas sim um crime ambiental”.

“O crime ocorreu na época da piracema, quando os peixes se reproduzem. O impacto disso será devastador na vida das comunidades e dos pescadores. A lama destruiu muitas pastagens e áreas de agricultura familiar, que viviam da produção de leite. Os impactos são muito maiores do que aquilo que a gente consegue ver. Conseguimos ver os atingidos que perderam suas casas ou que perderam alguém de sua família. Mas os impactos são muito superiores”, diz a dirigente da CUT, que critica a chantagem econômica promovida pela mineradora sobre as comunidades da região atingida, bem como o acordo firmado pela empresa com a União, que não contou com a participação dos atingidos.

Sul21: Você poderia resumir os acontecimentos que se seguiram ao rompimento da barragem da Samarco? Qual a sua avaliação sobre as consequências trágicas do rompimento e seus possíveis desdobramentos?

Beatriz Cerqueira: A barragem de Fundão rompeu no dia 5 de novembro. Esse rompimento gerou a devastação imediata e completa de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana. Mas a lama também percorreu uma extensa área até chegar ao rio Doce, comprometer toda a bacia desse rio e, finalmente, chegar até o mar. Embora, nacionalmente, se conheça mais a situação do subdistrito de Bento Rodrigues, outros subdistritos e municípios também foram muito atingidos. É o caso, por exemplo, do município de Barra Longa, localizado a uma hora e meia de Mariana. Neste município, a lama invadiu o centro da cidade cobrindo as casas da região central quase até o teto. A força da lama foi tal que, ao passar pelo rio, ela voltou por cinco quilômetros contra a correnteza.

O rompimento da barragem provocou o comprometimento de toda a bacia do rio Doce, a vida do rio e o abastecimento de água de diversos municípios da região. Diante desses acontecimentos, uma das primeiras coisas que precisa ficar clara é que não se tratou de um acidente. Estamos dizendo isso desde o dia 6 de novembro e o que nós avaliávamos foi comprovado pelo inquérito da Polícia Civil concluído na semana passada. Diferente do discurso da mineradora, esse inquérito conclui que não ocorreram impactos sísmicos que pudessem provocar o rompimento da barragem. O inquérito da Polícia Civil demonstrou que houve uma série de fatores causados pela negligência da empresa, que resultaram no rompimento. Entre esses fatores estão equipamentos com deficiência, assoreamento de partes da barragem e falta de manutenção em vários trechos da barragem. Então, não estamos falando de um acidente, mas sim de um crime e a luta da CUT e de todos os movimentos populares e sociais de Minas Gerais é para que os responsáveis paguem civilmente e criminalmente pelo que fizeram. O segundo aspecto que estamos discutindo agora é a situação dos atingidos pelo rompimento da barragem.

Sul21: Qual o número consolidado de vítimas, entre mortos e desaparecidos?

Beatriz Cerqueira: Entre mortos e desaparecidos, são 20 pessoas. Dezessete mortos, dois desaparecidos e nós estamos considerando uma vigésima vítima, que foi o feto de uma jovem grávida de quatro meses que, na luta para sair da lama que atingiu sua casa em Bento Rodrigues, sofreu um aborto. Quanto aos atingidos, são todos os moradores que vivem na região do percurso da lama. Na verdade, todo o estado de Minas Gerais foi atingido por esse crime da Samarco, Vale e BHP.

Nós temos lutado para que a empresa não controle nem tutele a relação com os atingidos. Não pode ser a empresa a definir, sozinha, o que é necessário para os atingidos e mesmo quem são os atingidos, mas é isso que a mineradora tem feito desde novembro de 2015. Ela define quem são os atingidos e tenta impor o que esses atingidos precisam como mecanismos de compensação. Os movimentos sociais e populares estão trabalhando para que os atingidos se organizem e não sejam tutelados pela mineradora. É uma luta muito desigual porque a Vale, a BHP e a Samarco colocaram toda a estrutura de seu poder econômico para fazer esse monitoramento e esse controle.

De fato, o que nós identificamos é que atuação da mineradora ficou muito aquém das suas responsabilidades. Ela vem tentando diminuir as necessidades das pessoas atingidas. No município de Barra Longa, eu acompanhei a luta das mulheres para que sejam repostas questões básicas do cotidiano de suas casas, como, por exemplo, o funcionamento de máquinas de lavar. Houve o caso de uma senhora idosa que só teve a reposição de sua máquina de lavar após apresentar um laudo médico para a Samarco comprovando que ela não podia torcer a roupa com as mãos. Existem outros casos muito semelhantes envolvendo negativa de direitos.

Outro aspecto fundamental envolvido neste episódio é o do abuso do poder econômico. É necessário que Minas e o Brasil rediscutam o modelo de mineração implantado no país e a serviço de quem ele opera. Em 2014, a Samarco teve um lucro líquido de R$ 2,8 bilhões de reais. A sua produção é toda voltada para a exportação e grande parte de seu lucro não é revertido em benefícios sociais para a população, indo para os acionistas. Cabe assinalar ainda que as mineradoras exerceram até hoje um papel estratégico no financiamento de campanhas eleitorais. Os principais candidatos à presidência da República, os principais candidatos ao governo de Minas e um grande leque de candidatos a deputado estadual, a deputado federal e a vereador são financiados pelas mineradoras. Muitas pesquisas nas universidades também são financiadas por mineradoras. Além disso, temos as grandes campanhas publicitárias feitas nos meios de comunicação, comprometendo a cobertura jornalística feita por essas empresas.

Sul21: O que representa, hoje, o setor de mineração em Minas Gerais? Qual o tamanho, o perfil e a dinâmica dessa atividade?

Beatriz Cerqueira: O nosso problema é que Minas Gerais não cuidou da diversificação da sua economia. O minério de ferro é um dos principais produtos da pauta de exportação do Estado. Existe uma coisa assustadora, sobre a qual pouco se fala, que são os mineriodutos (quatro, no total), que fazem o transporte do minério da mina até o porto, para exportação. O que se gasta de água para esse transporte é superior ao consumo de grandes cidades da região metropolitana de Belo Horizonte, ou de cidades como Governador Valadares, que teve todo o seu consumo de água comprometido pelo rompimento da barragem. A negligência envolvendo a segurança, a utilização desse sistema de mineriodutos e de barragens de rejeitos são práticas para diminuir custos. O minério de ferro teve uma queda de preço no mercado internacional. Mesmo assim, as mineradoras mantiveram ou mesmo aumentaram seus lucros. Como isso é possível? Diminuindo custos, inclusive na área da segurança. O inquérito apontou que vários equipamentos não estavam funcionando.

Outra característica desse modelo é a prática intensa de terceirizações, inclusive de modo ilícito, razão pela qual a Samarco está sendo investigada pelo Ministério Público do Trabalho. Mais de 50% dos funcionários da Samarco são terceirizados. Dos trabalhadores que morreram, somente um era vinculado diretamente à empresa. Esses trabalhadores sequer tiveram por parte da empresa um aviso do iminente rompimento da barragem. Então, temos um conjunto de negligências operando para cortar custos e manter a lucratividade.

Sul21: Há muitas barragens desse tipo operando em Minas?

Beatriz Cerqueira: No total, são mais de 400 barragens. O que nos preocupa é que o caso dessa barragem que rompeu expôs um esquema de favorecimento e de agilidade no processo de licenciamento. Foram pouco mais de dois meses para que houvesse o licenciamento para a operação da barragem, por decisão monocrática no secretário adjunto do Meio Ambiente à época. Estamos falando de licenciamentos em 2007, 2008 e 2013. Esse processo faz com que o Estado também seja responsável por esse tipo de crime, por omissão, negligência e favorecimento no processo de licenciamento das barragens. Isso que essa barragem que rompeu era considerada segura. Se olharmos os relatórios das barragens em Minas essa que rompeu não era considerada de risco, mas sim como segura.

Sul21: Como está sendo a atuação institucional neste caso? Os órgãos do governo, Ministério Público e Judiciário estão enfrentando o poder e a pressão econômica da Samarco?

Beatriz Cerqueira: O Ministério Público tem tido uma atuação muito forte e positiva junto aos atingidos. O que nos causou estranhamento e indignação foi o processo de acordo da empresa com a União sem a participação dos atingidos. Esse acordo, pela informação que temos, traz consigo a autorização para a retomada das atividades por parte da mineradora. O poder econômico das mineradoras tem atuado fortemente neste tema. Materializando esse poder, cabe esclarecer que a Samarco, hoje, tem como duas de suas principais controladoras a Vale e a BHP. Mas o consórcio que compõe a Vale tem o BNDES, o Bradesco e os fundos de pensão do Banco do Brasil e dos funcionários da Petrobras. Então, esses atores que estão silenciosos desde que o crime aconteceu também precisam ser cobrados, pois são controladores da Samarco. O que se percebe é que, publicamente, tenta-se jogar a responsabilidade só para a Samarco, omitindo o papel da BHP, da Vale e suas controladoras.

Sul21: Do ponto de vista da repercussão midiática do caso junto à opinião pública de Minas Gerais, o assunto já está desaparecendo das manchetes principais?

Beatriz Cerqueira: Esse é um de nossos desafios, não deixar que Mariana caia no esquecimento. Temos pautado permanentemente esse tema no movimento sindical. No dia 28 de abril, dia em memória às vítimas de acidentes de trabalho, teremos um ato nacional do movimento sindical, em Mariana, envolvendo várias centrais e o DIEESE. O dia 1º de maio, em Minas Gerais, terá um tribunal popular para discutir os crimes da mineração. É uma luta desigual, pois a empresa tem uma estratégia muito forte na disputa da opinião pública. Desde o ano passado, a Samarco tem promovido campanhas publicitárias dizendo que tem feito tudo o que é necessário, o que não é verdade. Na prática, os atingidos, os ribeirinhos, os pescadores do rio Doce não têm tido a assistência necessária na maioria dos municípios. Neste momento, a própria Samarco avalia que não tem mais que fornecer água, mesmo que a qualidade da água do rio Doce não esteja adequada para novas captações.

Sul21: Como está essa questão do abastecimento de água? Os municípios mais diretamente atingidos seguem captando água do Rio Doce?

Beatriz Cerqueira: O sistema está comprometido. Quem conseguiu, fez captação de outros rios. Mas quem depende diretamente do rio Doce, como Governador Valadares, tem enfrentado muitos problemas e voltou a captar. Há muita falta de transparência nas informações disponibilizadas para a população que, em função disso, está justificadamente desconfiada com a qualidade da água neste momento. É importante destacar ainda que a lama continua descendo. Minha última visita à região foi no dia 13 de fevereiro. Eu vi com os meus olhos que a lama continua descendo, chegando à bacia do rio Doce e chegando ao mar. A barragem continua vazando e a lama continua descendo pelos rios.

Sul21: Depois do rompimento, não houve a instalação de um sistema de contenção para interromper o vazamento?

Beatriz Cerqueira: Não, não houve. A lama continua descendo, mais de três meses depois do rompimento. Eu estive lá na semana que completou cem dias do rompimento. Publiquei um vídeo no meu Instagram que mostra isso (ver abaixo).

Sul21: Já há um diagnóstico inicial sobre o tamanho do impacto ambiental do rompimento?

Beatriz Cerqueira: Não. Esse é outro objeto de disputa que faz parte também do acordo da União com a Samarco. A União está assumindo a responsabilidade pelas questões ambientais. Mas existe um inquérito policial aberto para apurar as responsabilidades no processo de licenciamento e o crime ambiental. Além deste, temos o inquérito já concluído que pediu a prisão preventiva de sete acusados. É um cenário de disputa, onde a empresa tenta diminuir o tamanho do impacto. Temos relatos que a própria empresa contratou ribeirinhos, logo no início, que pudessem recolher os peixes mortos para que esse dano se tornasse o menos visível possível. É importante dizer que o crime ocorreu na época da piracema, quando os peixes se reproduzem. O impacto disso será devastador na vida das comunidades e dos pescadores. A lama destruiu muitas pastagens e áreas de agricultura familiar, que viviam da produção de leite.

Os impactos são muito maiores do que aquilo que a gente consegue ver. Conseguimos ver os atingidos que perderam suas casas ou que perderam alguém de sua família. Mas os impactos são muito superiores. O que eu acho mais perverso é a chantagem feita pela mineradora. Essas empresas criaram um sistema onde diversas comunidades passaram a viver em torno da mineração. Tome o exemplo de uma cidade linda como Mariana, numa região de turismo histórico, que apostou na mineração como sua maior fonte de renda. Acontece que, nas cidades que fizeram essa escolha, não se vê melhores indicadores de qualidade de vida, comparando com outras comunidades. Não há prestação de serviços públicos essenciais em áreas como saúde, educação e habitação de qualidade melhor do que em regiões que não têm mineração.

Como a economia destas cidades gira em torno das mineradoras, vende-se a ideia de que a paralisação das atividades da empresa vai trazer queda de arrecadação e desemprego. A chantagem econômica é muito forte e continua na região. Hoje, mesmo depois do que aconteceu, vemos manifestações em favor da empresa. Há movimentos nas redes sociais intitulados “Fica Samarco”, “Somos todos Samarco”.

Sul21: Alguém já foi preso em função do que aconteceu?

Beatriz Cerqueira: Não. Houve o pedido de prisão preventiva do presidente da empresa, que está licenciado e de diretores responsáveis pelo projeto, pela segurança, mas ninguém foi preso ainda.

Fonte: Sul21

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