Autópsia geográfica do cavaleiro inexistente

Por Raul Longo.

Todo mundo tem seu dia de Madame Shakira. Eu também.

Amiga minha, que naquele fatídico 11 de Setembro das torres derruindo me ligou para lamentar a morte do Papai Noel, dessa vez chegou toda intrigada com o afogamento do Obama. Digo: Osama.

Eu, por mim, continuaria relembrando Calvino, mas a moça foi de tal insistência no inexistente nexo da coisa toda que resolvi jogar tarô. Embaralhei as cartas enquanto ela discorria sobre ângulos fotográficos de polícia técnica que, numa impossibilidade qualquer de reconhecimento presencial de um defunto, detalham apenas o suficiente para a confirmação de identidade sem chocar sentimentos dos familiares.

Virei a primeira carta, coincidentemente o primeiro arcano: O Mago. E a amiga encasquetada com o fato de que um fundamentalista do Talibã ou da Al Qaeda não planejará mais ou menos vingança por pior o estado do Bin Laden.

A carta seguinte era a do Louco. Arrepiei com a coincidência do último dos arcanos após o primeiro, mas a amiga não se comoveu e apenas perguntou:

– Como imaginam que fique o corpo de um homem-bomba? O que pode haver de mais revoltante do que aquelas centenas de crianças de Gaza com cérebros esfacelados?

A lógica da amiga atrapalhava minha concentração e tive de me esforçar para abstrair-me na próxima carta: O Enforcado.

– Muito mais do que uma foto, motivo maior da ira islâmica é o não cumprimento do ritual do enterro. Pra qualquer religioso mais importa o tratamento do morto do que motivo da morte.

Novamente divaguei lembrando o Ítalo Calvino, imaginando a armadura do Cavaleiro Inexistente sendo corroída pela maresia. Ainda assim virei outra carta: O Hierofante.

Acaso Maomé foi lançado ao mar? Imagine aquele povo que em maioria vive nos interiores, atravessando desertos para jogar mortos ao mar. Quase metade da população do planeta é muçulmana!

Alheio, descartei Os Amantes. No lugar da figura a amiga deve ter enxergado o Barack Osama ou Bin Obama e a Hillary Lewinsky ou Mônica Clinton.

– Além de seu povo, o governo dos Estados Unidos quer fazer o mundo de idiota!

Na próxima deu A Torre. Como imaginei, a amiga disparou:

Afora a ligação do tal marido do voo 93, quantas vezes você ouviu referência aos parentes dos passageiros daqueles aviões? Cada Boeing 757 ou 767 tem acento para 200 a 300 passageiros, mas só se conforta familiares das vítimas das torres implodidas. Por que os que estavam no ar nunca são lembrados?

Daí pra frente era só virar a carta para a amiga ir recitando significados e com isso me deixando tão zonzo que me confundi e achei haver uma réplica do O Louco naquele baralho. Mas foi no seu comentário que percebi ser a figura do O Imperador.

– Além de encobrir as falcatruas da ENRON e Companhias Associadas à família Bush, o filho do sócio serviu de desculpas para uso da…

Nem precisou usar a palavra, pois a carta virada era A Força. Naquele baralho, com a figura da Maga da Luz dominando o Leão e a das Trevas dominando o Dragão:

– … contra o Afeganistão. Por causa da burca? Da heroína extraída da papoula que em nenhum outro lugar se consome tanto quanto nos Estados Unidos? Cadê o atlas que eu te mostro?

Enfarado, apontei num olhar e virei a próxima carta: A Sacerdotisa. Da estante veio a amiga folheando o atlas até encontrar a página:

– Aqui! – e meteu o dedo no Afeganistão. – E deste lado – fez o mesmo com o indicador da mão esquerda em cima do Iraque. Olhando por baixo de meus olhos, com cara de gato persa: – E o que é que tem no meio?

Murmurei a resposta virando o arcano Sem Nome, A Morte.

– Xi-i-tas – soletrou – eles não poderiam tomar o petróleo do Iraque sem primeiro neutralizar os xiitas do Irã, pois foram eles que armaram os sunitas do Sadam contra os xiitas do Iraque. Sadam Hussein saiu do controle e Bush filho herdou o problema que o pai não pôde resolver pra não precipitar a perda total do petróleo na região, antes garantido pela corrupta e tirânica ditadura de Reza Pahlevi, derrubada pelos aiatolás.

Enquanto a moça explicava, as cartas se sucediam: A Temperança.

– Ben Laden foi o personagem perfeito. Além da sociedade familiar com os Bush, foi treinado pelos Estados Unidos para ensinar os afegãos a combater a União Soviética, ajudou a pôr os Talibãs no poder e estava justamente ali: nas costas do Irã.

A Justiça.

– O homem certo no lugar certo. Com o Afeganistão garantido, invadiram Iraque e deixaram a ONU falando sozinha.

O arcano da realização: A Imperatriz grávida.

– Império é império!

Imaginei a Rainha Vitória com o Barack Osama, digo, Obama, no colo. E em reverência à corte e herdeiros do trono, a próxima carta foi O Sol.

– Era pra ser o melhor dos mundos, mas desde a vitória sobre a Pérsia por Alexandre, O Grande, todo império tem seus momentos pequenos. A corrupção e a terceirização da guerra dão prejuízos, os mercenários dão prejuízos, as torturas de Abu Ghraib, os estupros coletivos no Afeganistão, a ganância dos políticos comprados, a resistência popular, distância, clima, a dignidade e sanidade mantida por um ou outro soldado… Tudo dá prejuízo!

A Roda da Fortuna! E dessa vez a amiga foi direta:

– Pois é. No giro da Roda da Fortuna veio a crise financeira.

O Diabo.

– No cumprimento do rito de passagem de poderes: de Republicanos para Democratas, em 3 semanas os Sionistas massacraram quase mil e quinhentos civis palestinos desarmados, cento e onze mulheres e trezentos e vinte crianças.

Nova carta: O Mundo.

– O Massacre de Gaza foi o recado para o mundo saber quem é que continua mandando, seja qual for o presidente dos Estados Unidos.

No baralho de tarô, A Estrela é a esperança representada por uma donzela desnuda. Claro que na maioria das versões se reproduz uma loira, mas no meu baralho, desenhado por uma amiga e maga finlandesa, a jovem é negra. Talvez por alguma sugestão, a amiga interpretou:

– E ao mesmo tempo O Massacre de Gaza serviu para recuperar as esperanças do mundo no governo dos Estados Unidos. Nunca eleição de presidente algum foi comemorada com tantas esperanças por toda a humanidade!

Lembrei-me de outra carta ambígua como a do Louco, o último dos arcanos maiores, mas também o primeiro, por seu valor zero, nulo. Mas essa de que lembrei era dos arcanos menores de antigo baralho cigano onde ao invés do valete, tem o Príncipe e também a Princesa, além da Rainha e do Rei. Naquele jogo ancestral não recordo se o Ás ou o Príncipe de Paus servia de coringa. Mas quando assim utilizado era rebaixado de valor e a carta tornava-se O Escravo. No meu baralho moderno, o arcano maior seguinte foi A Lua.

– Veja aqui no mapa. Ao norte do Irã, o Mar Cáspio. À oriente países de pouca população e reduzido consumo. Deste outro lado ao norte, também. À exceção da Rússia e sua grande população, mas distância inexequível a mercados  como o  da China. Bases norte-americanas em toda a volta. O Irã é um país cercado por aliados dos Estados Unidos ou países invadidos por motivação de seu Cavaleiro Inexistente.

– Meu não! – reclamei– Do Ítalo Calvino.

– Tanto faz. – e olhou pedindo pela próxima carta. Deu O Carro e sem prestar nenhuma atenção continuou no mesmo tom esotérico: – É uma corrida contra o tempo. A imprensa reclama de ditadura e autoritarismo, pede liberdade às mulheres,  ocidentalização de costumes. Mas nada diz de governos aliados como se não fossem da mesma religião, com os mesmos preceitos e mesmas leis, quando não muito piores. Os povos exigem mudanças e, afora a crise econômica, está em risco o atendimento da maior demanda energética do mundo. Veja a Líbia! Mas a Líbia é da Europa. É para abastecer aquele mercado e aquele inverno. Como ficará o outro lado do Atlântico, com Chávez na Venezuela e tudo o mais? Sem casa e sem comida não é problema, pois por qualquer MacDonald’s os estadunidenses se fazem os mais obesos do mundo. Mas do direito de ir e vir em potentes 8 cilindros e muito diesel, nenhum deles abre mão!

Meneei a cabeça fazendo bico, concordando um pouco, mas nem tanto.

– É verdade que ainda há muito petróleo em toda esta Península Arábica, além do Iraque, mas nem é preciso virar suas duas últimas cartas, pois independente de qual seja a próxima o julgamento está feito. Precisam ressurgir dos mortos e como estes sempre são dos outros, é de cinzas alheias que sobrevive essa fênix. A vez é a do Irã.

– E se for o Eremita? – testei.

– A resposta ao eremitério do Cavaleiro Inexistente ser o Paquistão? Olhe o mapa ao invés de tentar adivinhar pelo baralho. – apontou lá as vastidões ao norte do Afeganistão e depois cutucou perto de Islamabad – Por que o homem mais procurado do mundo se esconderia nesse adensamento populacional? Pra enganar quem? Orquestrou 11 de Setembro das montanhas do Afeganistão e quando procurado vai se esconder aqui?

De qualquer forma, displicentemente virei a penúltima carta. Era mesmo a do Juízo Final que no Tarô pode ser a passagem de um estágio a outro, perdão ou redenção. Também pode indicar um casamento, uma nova relação. E outra vez a bruxa cutucou o mapa, agora mais ao sul, na entrada do Golfo Pérsico:

– Deste lado Omã. Talvez o mais absolutista dos países árabes. Só em 2003 foi instituído o sufrágio universal e apenas para homens com mais de 21 anos. 190 mil votantes elegeram os 83 membros do conselho. O islamismo que professam é o ibadita, com muito mais restrições do que o dos sunitas e xiitas. Aqui perto está Dubai, o maior e mais absurdo investimento capitalista da atualidade.

O Sultão de Omã está no poder desde 1970 e pertence a dinastia Al Said que governa o país há quase três séculos, boa parte dos quais sob os auspícios do Império Britânico do qual foram protetorado.

 

O dedo atravessou aquela única saída do estreito golfo, até a outra margem:

– E deste lado, o Paquistão. Por esta estreita garganta do golfo o Irã chega até o Mar da Arábia e, de lá, ao Oceano Índico onde pode distribuir e vender seu petróleo ao mundo. Se tomarem o Paquistão para fechar aqui, o Irã vai viver do quê? Também sabe jogar xadrez? Entregaram as torres para tomar essa casa, comendo a rainha Bagdá. Agora vão dar o xeque mate imobilizando o rei de Teerã.

Estendeu o braço e revelou o previsível O Eremita na derradeira carta: – Entende porque ele estava onde não deveria estar? Ou, melhor, exatamente onde queriam que estivesse? Vivo ou morto, esse foi o cavalo mais estratégico do jogo petrolífero.

Deu-me as costas como a um perdedor e foi-se embora. Largou-me ali olhando aquele especulativo tabuleiro de cogitações, onde quis enxergar no contorno azul do Mar Cáspio o de uma bola de cristal.

 

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