Autoalienação e saúde

Por Douglas Kovaleski, para Desacato.info.

No texto dessa semana trabalharei a questão da autoalienação, como um dos aspectos da alienação em geral, mas além disso, a autoalienação se encontra numa relação dialética de causa e ao mesmo tempo efeito dos aspectos anteriores à alienação.

A autoalienação é o efeito de determinado desenvolvimento histórico e social. Efeito concreto, porém não fixo, passível de alteração por meio da intervenção consciente no processo para transcender a (auto) alienação do trabalho.

Recorrendo à história, e com base no livro “A teoria da Alienação em Marx” de Istvan Mészaros, percebe-se que a construção judaico-cristã sobre alienação defende que ela origina-se da violação da origem divina, a pretensa queda do ser humano que alienou de si mesmo os caminhos de Deus. A missão messiânica seria então resgatar o ser humano desse estado de alienação que ele se auto impôs. Dialeticamente, essa orientação judaico-cristã tem papel fundamental na consolidação da autoalienação em prol do capital, pois: produz uma calmaria em termos de conflito de classe, uma vez que prega a caridade e a normalidade da exclusão social, pois a existência de pobres e miseráveis seria algo normal na história da humanidade e os que tinham mais posse teriam a obrigação de doar aos necessitados, sem questionar as razões das desigualdades sociais; outra forma de potencialização declarada da reificação humana por meio das religiões judaico-cristãs, é o poder de dominação sobre os estrangeiros, que serviriam de força de trabalho rebaixada para as necessidades dos cristãos. Nesse aspecto, há uma diferenciação entre o judaísmo e o cristianismo, pois no judaísmo a usura era permitida apenas na relação com os forasteiros, enquanto em relação aos compatriotas, não se poderia cobrar pelo empréstimo. O cristianismo, entretanto era universal em sua proibição com relação à usura. Essa proibição católica, no entanto, foi facilmente suplantada pelo espírito do judaísmo, que nada mais era do que o espírito do capitalismo.

A alienação é caracterizada pela extensão universal da venalidade, onde tudo pode ser vendido, ou seja, transformado em mercadoria. Esse processo ocorre pela transformação das pessoas em mercadorias, em coisas, a chamada reificação das relações humanas, que faz uma fragmentação do organismo social em indivíduos isolados que buscam seus objetivos privados e, portanto limitados, apenas da servidão da necessidade egoística, transformando seu egocentrismo em virtude digna de honrarias, no seu culto à privacidade.

A privacidade que remete à liberdade, considerada liberdade contratualmente salvaguardada, desempenhou um papel importante no sentido de retardar o reconhecimento das contradições do sistema caitalista. Assim a conexão entre reificação e alienação fica bem estabelecida. O mesmo que dizer que a alienação humana foi realizada por meio da conversão de tudo em objetos vendáveis, alienáveis, sujeitos à servidão da necessidade egoísta do negócio. Nesse sistema, o homem só será capaz de produzir objetos estranhos a ele sob a importância de um ser estranho a tudo e a todos: o dinheiro.

A autoalienação é a perda da consciência de si, é a anulação do devir, é o fim da mediação histórica entre o real e o devir, a utopia. A autoalienação é a morte do sujeito político e acontece de inúmeras formas e variados repertórios no decorrer da história, dependendo da correlação de forças e do investimento da classe no processo de formação de consciência de classe entre os trabalhadores. Afinal, esse processo não é natural ou simples de ser proposto em uma sociedade onde o cotidiano e cada microrrelação é alienante, alienada e voltada ao capital e não à vida humana, ou ao desenvolvimento humano livre e autônomo. Estamos (nós trabalhadores) à venda, e desejosos por sermos escolhidos para sermos explorados, pois uma parcela considerável e crescente nesse ciclo da crise do capital, sequer ser explorada consegue.

Esse aclaramento das relações tem papel fundamental na compreensão dos processos de controle e sustentação do capital, bem como nas possibilidades de luta engendradas pela classe trabalhadora. Pois o mecanismo que tem como consequência a autoalienação, ou a perda da consciência de si se dá por meio de relações muito simples, mas pouco visíveis. Essa perda da consciência de si é desalentadora e reforça o desamparo dos trabalhadores que se entregam de corpo e alma ao trabalho, ao estresse, ao adoecimento psíquico e consequentemente físico. A nova epidemia de suicídios e de doenças com forte componente mental comprovam esse raciocínio e desafiam os sanitaristas a uma compreensão mais aprofundada do processo social da saúde e da doença, para além de uma vinculação estreita das práticas de promoção e prevenção de saúde vinculadas exclusivamente a estruturas estatais, mesmo que tingidas de comunitárias, ou submetidas à panaceia da participação social.

O sofrimento dos trabalhadores é visível e precisa ser combatido com o apoio de políticas públicas, mas sem a falsa esperança de que elas serão a tábua de salvação para a classe. Precisamos construir alternativas de transformação apesar do estado, livres e autônomas, pois momentos de franca ruptura serão necessários no caminho da revolução.

Sobre a alienação em saúde

Sobre a alienação em saúde 2

Sobre a alienação em saúde III

Sobre alienação em Saúde – 4

Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.

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