Ausência de corrupção na ditadura é ‘conversa para boi dormir’, diz pesquisador

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Rubens Goyatá Campante é técnico judiciário | Foto: Assessoria de Comunicação do TRT3

Dado com a desculpa de que o objetivo era combater a corrupção e pôr o país em ordem, o regime então instaurado se arrastou por 21 anos, deixando como herança maldita um país extremamente desigual, um meio urbano violento, um sistema político completamente corrompido e um estado de imprevisibilidade difusa, que leva muitas pessoas a clamarem mais uma vez por salvadores da pátria. Esse é o ponto de vista adotado pelo cientista político Rubens Goyatá Campante, membro do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG.

Em entrevista ao Brasil de Fato MG, o pesquisador desmontou a ideia de que na ditadura não havia corrupção: isso é “é conversa para boi dormir”, ressalta. Campante também comparou as semelhanças entre o golpe de 1964 e o de 2016: “Ambos foram rupturas forçadas das regras do jogo, o que abre precedentes terríveis para o ataque à democracia”, pontuou.

Confira a íntegra da conversa:

Brasil de Fato: Que marcas a ditadura militar deixou na sociedade brasileira?

Rubens Goyatá Campante: A principal marca foi a exacerbação de uma tendência já existente no Brasil, de estreitamento da base social do poder, em suas dimensões ideológica, econômica e política. Isso causou um divórcio profundo entre o círculo de ferro dos donos do poder e o restante do país.

No plano ideológico, aumentou o individualismo e a fragmentação, com mais consumismo, indiferença com a pobreza e difusão de uma ideologia que culpa as pessoas por seu fracasso material. Isso foi construído por um sistema midiático que está atuando até hoje nesse mesmo sentido. É verdade que a ideologia dos militares era um nacionalismo ufanista, mas isso não pegou na população. Outra marca foi o estímulo ao ceticismo e à indiferença com relação à política, embora também tenha havido uma resistência cultural muito grande pela esquerda.

Na economia, o Estado foi instrumentalizado por grupos poderosos. O Brizola dizia que na ditadura, “quem peou a vaca foram os militares, mas quem ordenhou foi o grande capital estrangeiro”. Então, trata-se de um sistema concentrador de renda, mas, principalmente, um sistema de atração e exclusão. Ele atrai para o consumo, mas é impossível que todo mundo consiga consumir. Atrai para a cidade grande, concentra demograficamente, mas exclui, manda para a periferia. Atrai para o trabalho, mas boa parte das pessoas fica no trabalho informal e precário. Além disso, uma economia viciada na troca de favores no Estado, por um lado, e na exploração de trabalho barato. Em vez de aumentar competitividade e inovação, ela se fortalece explorando mão-de-obra de maneira agressiva e degradando o meio ambiente. Isso foi outra herança do golpe militar.

No poder político, a lei e o Estado passaram a funcionar para um grupo cada vez menor. Esses golpes de Estado geram um rompimento na regra do jogo, exagerando a ordem política oligárquica na qual a lei mais duradoura é a lei do mais forte. Isso não produz ordem, segurança e previsibilidade. Quem não está no círculo do poder passa, pelo contrário, a viver em um clima de imprevisibilidade e insegurança. Isto, por sua vez, produz um círculo vicioso de comportamento anômico. Cada pessoa começa a confiar apenas em si mesma e em seu círculo de familiares e amigos. Todo mundo é o “ladrão”, exceto o “meu próprio grupo”. Então, paradoxalmente, ganha força a ideia de que é preciso um salvador da pátria, um homem ou grupo que ponha ordem na casa com mão de ferro. Já vi um senhor dizer: “o Brasil precisa de um ditador bem intencionado, que prenda esses ladrões todos”.

Por outro lado, os que ocupam o poder vivem certo pânico de ceder ou conciliar e, a partir daí, acabar perdendo tudo. Isso explica a grande e inesperada duração da ditadura 1964. Muitos políticos, como Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart pensaram que aquela intervenção seria algo breve, mas demorou 21 anos para acabar. É claro que uma das razões para que durasse tanto foi o grande apoio do empresariado, mas outra razão importante foi esse medo do povo.

Apesar dessa herança maldita, algumas pessoas cultivam um saudosismo com relação à ditadura e dizem que não existia corrupção e violência urbana nessa época. Como você analisa esse discurso?

Falta-lhes consciência histórica e eu acho que a mídia não ajuda muito. Nas décadas de 1960 e 70, o Brasil deixava de ser rural para ser uma sociedade majoritariamente urbana. O meio rural brasileiro sempre foi muito violento. Agora, a criminalidade urbana é maior, mas um fator importante é que o nosso sistema de segurança é caótico, ineficiente e violento. Ele deixa o povo exasperado e, contraditoriamente, pedindo mais porrada do Estado. Ora, esse sistema foi gestado na ditadura, os esquadrões da morte também. Outra herança da ditadura é a disseminação do uso de armas.

Já a corrupção foi um dos motes para o golpe de 1964: “Vamos acabar com a corrupção”, diziam os militares, que viam o problema por um prisma subjetivo e voluntarista, como se corrupção fosse apenas “o cara que rouba o dinheiro público”. É claro que sempre há uma escolha individual do corrupto, mas a corrupção é um problema estrutural. Quando o regime de 64 começou, Castelo Branco percebeu que a questão não era tão simples assim.

A partir do governo Costa e Silva, cresceu a participação dos militares nomeados em agências e empresas públicas. Eles entraram na relação espúria entre o capital e política, que é, em si mesma, uma grande corrupção. Começaram, então, a pipocar escândalos. A partir da segunda metade dos anos 1970, a mídia passou a falar desses casos. Alguns poucos exemplos: os escândalos da Ponte Rio Niterói e da Transamazônica e as falências fraudulentas, com crise generalizada, na Coroa Brastel e na Capeme, um fundo de previdência privada. O banco Halles e o Banco Econômico também faliram de forma fraudulenta e os militares injetaram dinheiro público neles. Houve o caso do suborno em um tratado de cooperação nuclear entre Brasil e Alemanha, denunciado pela revista alemã Der Spiegel, e as inúmeras mordomias, como na residência oficial do ministro do trabalho, Arnaldo Prieto, com os famosos 500 quilos de salsicha.

Tudo isso fez com que, no início dos anos 1980, o regime militar fosse completamente desmoralizado e passasse a ser visto como corrupto por boa parte da classe média. Então, esse papo de que não havia corrupção na ditadura é conversa para boi dormir. E é preciso lembrar que os países menos corruptos do mundo são democracias substantivas, onde os cidadãos são respeitados. Onde há uma enorme assimetria de poder, não se respeita cidadãos, que vivem na ignorância e superficialidade. A causa estrutural da corrupção é a disparidade de poder.

Que comparações podemos traçar entre os golpes de 1964 e 2016?

Ambos foram rupturas forçadas das regras do jogo, o que abre precedentes terríveis para o ataque à democracia. E é verdade que ambos os golpes são movimentos literalmente reacionários, cujo espírito é uma resposta à expansão da base social do poder, que ocorria no pré-64 e no pré-2016. Por outro lado, há muitas diferenças entre os dois eventos.

O golpe de 1964 foi armado e imediatamente gerou uma grande repressão. Logo após a tomada do poder político, cerca de 50 mil pessoas foram molestadas, presas, chamadas a depor, demitidas, cassadas em seus mandatos. O trauma e a violência foram mais incisivos, o que não tira, evidentemente, a gravidade do que está acontecendo agora.

Eu penso que, em 64, muitos militares eram mais estúpidos do que corruptos, mas o importante é que a população demorou muito tempo para perceber a corrupção que existia. Agora, com Temer, até quem apoiou o golpe conhece a imensa corrupção do governo.

Também é preciso notar que, em 1964, o governo militar tinha muita instabilidade, muitas tensões internas entre as três armas e entre o grupo da linha dura e o grupo castelista. Entretanto, não era um governo amedrontado, acuado, como esse do Temer. Perante seus inimigos, a ditadura foi firme e incisiva. Temer está completamente desmoralizado e os quadros do governo, convenhamos, são um símbolo dessa mediocridade. Veja o exemplo do ministro da Educação, que recebeu Alexandre Frota para discutir política. O governo Costa e Silva, por exemplo, tinha quadros respeitáveis, embora discordemos profundamente deles. Tinha Roberto Campos, Hélio Beltrão, Golbery do Couto e Silva.

Tanto antes quanto agora, o país está muito polarizado ideologicamente. O golpe de 1964 teve apoio social expressivo não só na classe média, na igreja, mas também no meio popular. Do outro lado, também havia uma grande resistência popular de esquerda. Hoje, o país está dividido, mas um elemento da polarização que não existia em 64 é a questão cultural e comportamental, que abarca os debates sobre raça e gênero, bem como o reacionarismo que tenta responder aos avanços que esses setores conquistaram nos últimos anos.

Em 1964, a crise econômica tinha a ver principalmente com a inflação alta, que pesava no bolso de todo mundo, sem que houvessem mecanismos de compensação. Em 1963 e 1964, tínhamos uma desaceleração do crescimento, em comparação com o período JK. A crise econômica de agora é muito mais grave, com retração do PIB. O encaminhamento da crise no imediato pós-64 foi um pouco semelhante ao de hoje em alguns aspectos. O ministro Roberto Campos cortou gastos sociais, restringiu o crédito e promoveu o arrocho salarial. De 1964 a 1967, a política externa brasileira mantinha uma união carnal com os EUA, mas, depois, os militares promoveram uma política mais independente, que prezava pela construção de uma infraestrutura para o capitalismo brasileiro. Agora, o que se tem no governo Temer é um neoliberalismo xiita, que veio para desmontar qualquer pilar da soberania nacional.

Outra diferença seria o papel do Judiciário?

Esse é um ponto central. No golpe de 2016, o Judiciário foi fundamental. A semelhança é que tanto os militares de 1964 quanto o Judiciário de agora veem a sociedade como algo carente de tutela e pensam que vão resolver a bagunça toda encarnando a ideia do salvador da pátria.

Em 1964, havia entre os militares um grupo abertamente reacionário, mas boa parte foi legalista e alguns, inclusive, próximos da esquerda, principalmente da base. Dizem que mais da metade dos sargentos eram de esquerda, brizolistas ou ligados ao Partido Comunista. Quando os militares chegaram ao governo, cortaram imediatamente na carne. O primeiro movimento repressivo do regime, antes mesmo de 1968, foi perseguir duramente militares e sindicalistas. Faz parte da hierarquia, disciplina e modus operandi desse setor que detém as armas. Hoje, o judiciário também é heterogêneo, embora majoritariamente conservador. Há grupos progressistas, mas é mais difícil cortar na carne desses dissidentes, em virtude do modus operandi do Direito. É claro que essas pessoas não estão totalmente imunes.

É uma característica dominante no Direito e na burocracia brasileira criar um cipoal de complexidades, exigências formais e ambiguidades difíceis de seguir, que colocam a maioria das pessoas em um difícil limbo de normas. Por exemplo, a legislação tributária é caótica, inchada, difícil de entender. Anos atrás, um advogado tributarista disse que seria preciso um livro do tamanho de uma pessoa para juntar todas as normas tributárias. Isso abre janelas para que os poderosos abusem do Direito. E o Direito pode ser duas coisas: um instrumento de previsibilidade e ordenamento da vida social e uma ferramenta de poder. No Brasil, ele é mais isto do que aquilo. É como diz o ditado popular: “Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei”.

Agora, o protagonismo do Judiciário é um problema que tem a ver com o controle recíproco entre os poderes. Antes, o Judiciário estava preso a um padrão reativo e de micro-litigâncias. Então, ele era mais ou menos neutralizado politicamente, não precisava de contrapontos. Nesse meio tempo, ele foi ganhando protagonismo político até não ter mais nada que se contraponha a ele institucionalmente. Os juízes passam, então, a se considerar salvadores da pátria. No Ministério Público, que também entra nessa dinâmica, cada procurador faz o que quer e não há mecanismos para pôr freio neles. No caso do golpe de 2016, mais que o Sérgio Moro, os verdadeiros protagonistas da derrubada do governo foram os tribunais e o Supremo Tribunal Federal (STF). O Moro operou no varejo, mas quem chancelou as arbitrariedades que ele fez no atacado foi o tribunal regional lá em Porto Alegre e o STF.


Fonte: Sul 21

 

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