Aulas de Cortázar em universidade dos EUA viram livro sobre história da América Latina

Entre outubro e novembro de 1980, quatro anos antes de sua morte aos 70 anos, o argentino nascido em Bruxelas, Julio Cortázar, ditou oito aulas de literatura na Universidade de Berkeley, Estados Unidos. A Argentina, onde viveu até 1951, atravessava o quarto ano de uma ditadura militar que desapareceu com 30 mil pessoas e, em outros países da América Latina, militantes, intelectuais e artistas lutavam ou se exilavam contra regimes autoritários similares.

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O curso conduzido por Cortázar em Berkeley, transcrito no livro Clases de Literatura, lançado na última semana em Buenos Aires pela editora Alfaguara, é um diálogo político sobre literatura com os estudantes do Departamento de Espanhol e Português da universidade.

Cortázar pontua na primeira exposição três etapas de sua produção literária: estética, metafísica e histórica, que é a que ele diz viver naquele momento devido ao contexto político da América Latina. No entanto, quando expõe e analisa suas inquietações sobre as fases estética e metafísica, também se posiciona politicamente em relação à sua obra e resgata as condições de produção como ponto de partida para uma análise crítica de seus contos.

“Pertenço a uma geração de argentinos surgida quase em sua totalidade da classe média em Buenos Aires (…) jovens argentinos profundamente estetizantes”, se apresenta. Cortázar conta que, entre seus pares, quando analisavam a Guerra Civil Espanhola ou a Segunda Guerra Mundial, a posição política não aparecia na produção literária. “Nunca percebemos que a função de um escritor (…) deveria ir muito além do mero comentário ou mera simpatia por um grupo de combatentes.”

A etapa que o autor chama de metafísica se projeta a partir do romance Os prêmios (1960) e coincide com sua primeira visita à Cuba depois da revolução, quando esteve no país em 1961 como membro do júri da recém-fundada Casa das Américas, que foi fundamental para o pensamento latino-americano de esquerda a partir dos anos 1960.

Cuba

Em 1959 emerge em Cuba uma experiência revolucionária sem a qual não seria mais possível pensar a política na América Latina e no mundo. De fato, Cortázar menciona o impacto da Revolução Cubana em sua obra e nos processos políticos latino-americanos várias vezes, em 1980, na universidade norte-americana.

“Quando voltei à França trazia comigo uma experiência que me tinha sido completamente alheia: durante quase dois meses não estive metido com meus grupo de amigos (…) estive me misturando cotidianamente com um povo que nesse momento se debatia diante das piores dificuldades (…) que se via preso a um bloqueio impiedoso e que, no entanto, lutava para seguir adiante com essa auto definição que havia dado a si próprio pela via da revolução”, diz.

Os personagens — “gente profundamente preocupada por questões de tipo individual” — de O jogo da amarelinha (1963), ao qual Cortázar dedica parte de duas aulas e vários comentários ao longo das outras seis, são uma expressão dessa “fase metafísica”. Para falar de seu processo de criação no livro, Cortázar conta que as questões filosóficas “tratadas de maneira muito amadora, muito existencial”, refletem também suas vivências dos primeiros anos em Paris e a nostalgia de Buenos Aires.

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Cortázar é fotografado em protesto contra a ditadura na Argentina realizado em Paris, cidade onde viveu por alguns anos

Nesse ponto, Cortázar expõe em aula não apenas o que havia proposto, mas realizado com O jogo da amarelinha: que para narrar na e a revolução era preciso também revolucionar a linguagem. E faz uma crítica orgânica, como intelectual que participa de um processo revolucionário, à dificuldade de transmitir a mensagem em novos termos, que precisam ser inventados. E, mais uma vez de volta à Cuba, afirma que “é preciso também fazer [revoluções] na estrutura mental das pessoas que vão viver e aproveitar essa revolução.”

O sentido revolucionário da escrita para Cortázar não significa o abandono da preocupação literária. Em resposta ao questionamento de uma aluna, defende que um escritor deve ter o direito também de cumprir “uma tarefa de literatura pela própria literatura” e celebra que “cada dia é mais frequente na América Latina que os escritores de ficção, para quem o mundo é uma chamada contínua de toda liberdade temática, dediquem uma parte crescente de sua obra a misturar suas qualidades literárias com um conteúdo que se refere às lutas e ao destino de seus povos”.

Outro estudante pergunta se Che Guevara havia lido seu conto Reunião, do livro Todos os fogos o fogo (1966). No trabalho, ele dá sua versão inspirada em um texto do próprio Che, em uma primeira pessoa atribuída ao médico revolucionário argentino, sobre o desembarque do navio Granma nas costas cubanas em 1956 e os primeiros combates da guerrilha que derrocou a ditadura de Fulgencio Batista. Cortázar responde que havia sido informado de que sim e aproveita para compartilhar a história, mas também para conduzir uma exposição sobre os elementos fantásticos e a narração da história.

A etapa histórica de sua obra, que ele admite que, assim como as outras, esteve presente em diferentes momentos de sua produção literária, já se projeta, ainda que Cortázar defina os anos 1970 como o período em que sua literatura se compromete com mais força aos processos históricos latino-americanos.

livro de Manuel, escrito entre 1971 e 1972, publicado em Buenos Aires em 1973, talvez seja a maior expressão desse momento. Na sétima e penúltima aula que ditou em Berkeley, Cortázar descreve seu processo de “despertar” após retornar de Cuba depois da visita em 1961 – quando O jogo da amarelinha já estava escrito – e sua transição nos anos seguintes “de um mundo estetizante e sobretudo excessivamente individualista a uma tomada de consciência que podemos chamar de histórica.”

Cortázar critica sua própria obra e se posiciona politicamente sem perder a ternura. É capaz de relatar com humor e respeito uma conversa de 1962 com Fidel Castro e outros escritos latino-americanos em Havana ou de falar de como a dimensão lúdica da literatura é importante em processos revolucionários. Um aluno que pergunta sobre a importância de Histórias de Cronópios e de Famas(1962) ouve sobre como um grupo de revolucionários pediu para vê-lo em Havana em 1964 apenas para informá-lo de que nos intervalos da luta adoravam ler suas histórias de cronópios.

Ditaduras militares

Cortázar conta aos alunos de sua experiência no Tribunal Bertrand Russel II, em Roma e Bruxelas, onde recolheu depoimentos de vítimas de ditaduras militares na América Latina. Na ocasião, ele diz ter sido influenciado por essas histórias e por recortes de jornais e telegramas que recebia na Europa de amigos que viviam a repressão política em países sul-americanos. Naquele momento a Argentina estava sob comando do general Lanusse (1971-1973), o último dos três militares que ocuparam sucessivamente a Casa Rosada depois do golpe de 1966 e que Cortázar acusa frente ao auditório de ter “sistematizado a tortura” no país.

Cortázar lê trecho de “O jogo da amarelinha”:

O livro de Manuel é a expressão literária desse momento político de Cortázar, como ele faz questão de esclarecer a seus alunos em Berkeley. Lembra também que tanto os leitores de direita, que o apreciavam por sua produção desvinculada de temas políticos, como os da esquerda, rejeitaram em alguma medida a obra. Os primeiros porque sua política “era contrária à deles” e os outros porque consideravam que “o livro não tinha seriedade suficiente.”

Quando Cortázar esteve em Berkeley, as ditaduras militares da América do Sul ainda impediam que houvesse uma comunicação detalhada com o exterior sobre o que se passava na região. O escritor argentino, que estava impedido de entrar em seu país, conta aos alunos sobre um caso de censura do seu conto Segunda vez, escrito em 1974, que relata um desaparecimento em Buenos Aires sem fazer qualquer menção explícita à política argentina.

Na quarta aula uma aluna evoca a “Teoria dos dois Demônios”, como ficou conhecida na Argentina a alegação de que o terrorismo de Estado poderia ser encarado da mesma forma que a luta armada em termos de violência política, e pergunta se essa violência não seria fruto de uma impossibilidade de encontrar “uma solução racional” para os conflitos na América Latina. Cortázar então cita o bispo brasileiro Dom Hélder Câmara e o arcebispo salvadorenho Monsenhor Romero. “Um povo oprimido, subjugado, assassinado e torturado tem o direito moral de se levantar em armas contra seus opressores”, afirma o argentino.

Sem defender abertamente a guerrilha, o escritor conduz os alunos a uma reflexão sobre o processo político na América Latina a partir dos episódios de violência política. Entre alguns contos e trechos de romances escolhidos para ler em sala de aula, Cortázar faz uma apresentação do conto Apocalipse de Solentiname, (1977), que escreveu durante o regime de Somoza na Nicarágua e depois integraNicarágua tão violentamente doce (1983), que reúne textos sobre a revolução sandinista.

Em oito aulas, Julio Cortázar levou sua revolução – estética, literária, política – aos Estados Unidos em meio à Guerra Fria.

 Fonte: Ópera Mundi

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