Audiência Pública reafirma direitos territoriais Guarani sobre tekoha em Paraty e denuncia desassistência

Prefeitura Municipal de Paraty suspendeu cartão alimentação de dez famílias indígenas em plena pandemia. MPF pede retomada do benefício

Indígenas Guarani Nhandeva e Mbya acompanham via transmissão, no tekoha Je’y, a Audiência Pública (Foto: Divulgação/Aldeia Tekoha Je’y)

Por Cimi Regional Sul – Equipe São Paulo.

Os Guarani Nhandeva e Mbya do Tekoha Je’y, aldeia do Rio Pequeno, em Paraty (RJ), receberam, entre os dias 27 e 29 de janeiro, procuradores do Ministério Público Federal (MPF) no Tekoa Je’y/Aldeia do Rio Pequeno para participar da Audiência Pública sobre a Ação Civil Pública n°. 5000655-81.2020.4.02.511, que visa determinar à União e Fundação Nacional do Índio (Funai) a conclusão do processo de demarcação.

Durante a visita, os procuradores também trataram de outros assuntos envolvendo a ocupação tradicional Guarani Nhandeva e Mbya e a relação com a sociedade do entorno, sobretudo os interesses privados que espreitam o território indígena. No dia 27, a equipe de São Paulo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul acompanhou a visita do procurador da República Igor Miranda da Silva.

O procurador chegou por volta das 8h e a visita se estendeu até metade da tarde, período em que ouviu as lideranças e os anciãos da aldeia. As lideranças tiveram oportunidade de levar o procurador aos locais desmatados, onde os antigos ocupantes do território realizavam extração ilegal de madeira para comercialização, bem como às áreas que sofreram queimadas.

As lideranças também denunciaram a postura do prefeito do município de Paraty, Luciano Vidal (MDB), que em meio à pandemia do novo coronavírus interrompeu a distribuição de cartões de alimentação para dez famílias que residem na aldeia.

Essa interrupção aconteceu logo após o início de ações dos Guarani, em setembro de 2020, quando a vice-cacique fez denúncias a respeito de posturas públicas do prefeito contra os direitos da comunidade Guarani Nhandeva e Mbya, o que gerou uma onda de ataques racistas e preconceituosos contra os indígenas. Situação que envolveu diretamente a pauta da Audiência Pública.

Audiência Pública

No dia 28, a aldeia foi tomada por conversas, expectativas, conselhos, rezas e  cantos. Afinal, a Associação de Moradores de Paraty, Prefeitura e demais poderes locais empreendem uma forte campanha contra os Guarani Nhandeva e Mbya articulando outras tradicionalidades, como os caiçara, desterritorializados também pela elite política e econômica local, para confrontar a ocupação tradicional indígena.

Por volta das 12h30, os Guarani Nhandeva e Mbya saíram da aldeia, rumo à Casa da Cultura, no centro de Paraty, local onde foi realizada a audiência. Na ida e na volta, os carros com indígenas e aliados foram escoltados por viaturas da Polícia Militar. Há, inegavelmente, um clima de tensão instalado pelo tipo de campanha, de caráter difamatório e desconectado da Constituição, contra os Guarani Nhandeva e Mbya.

A Audiência Pública foi mais um espaço para os Guarani Mbya manifestarem suas reivindicações e denúncias, mas também revelou que o conflito entre indígenas e comunidades do entorno é causado pelos interesses da especulação imobiliária que trouxe ao convívio social a presença de fazendeiros, donos de pousadas e estrangeiros ao território.

Além dos cinco representantes do povo Guarani e cinco representantes da Associação do Rio Pequeno, participaram da audiência, com direito a fala, as seguintes organizações: Funai (representante  do escritório regional), Polícia Federal, Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Cimi, Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Frente de Apoio aos Povos Indígenas do Brasil (Fapib), Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais de Angra, Paraty e Ubatuba. A Funai de Brasília, convocada pelo MPF, não enviou representante.

No decorrer da audiência, se evidenciou que a Associação dos Moradores, por mais que tenha estabelecido como estratégia se contrapor à ocupação indígena com um outro tipo de ocupação tradicional, a caiçara, não conseguiu reunir elementos suficientes para deslegitimar o território Guarani Mbya, já respaldado pela devida apreciação antropológica e respaldado pela Constituição Federal que impede a sobreposição de qualquer outra territorialidade sobre a indígena.

Por algumas vezes, o procurador Igor Miranda da Silva se manifestou afirmando que o comportamento de alguns moradores era contrário ao comportamento de um caiçara ou qualquer um que vive em uma comunidade tradicional. Ele mencionou as denúncias de exploração ilegal de madeira, caça ilegal, supressão da mata ciliar nas proximidades das nascentes e queimadas.

O procurador afirmou que constatou tais situações durante a visita à Terra Indígena, realizada um dia antes, nas proximidades das casas que eram ocupadas por esses não indígenas, que residem ou residiam dentro do território a ser demarcado.

Audiência Pública ocorreu com número restrito de participantes com distanciamento social em face da pandemia do novo coronavírus. Crédito da foto: Divulgação/Aldeia Tekoha Je’y

Denúncias contra criminalização

As organizações presentes na Audiência Pública, por sua vez, denunciaram o processo de criminalização sofrido pelas lideranças. A Prefeitura de Paraty está processando a vice-cacique por dano ao patrimônio público, quando na realidade os danos têm sido causados pelos não indígenas, como o MPF constatou.

Também foram enfáticas ao denunciar a omissão e negligência da Prefeitura em relação à população indígena do município, bem como demonstraram os efeitos da  morosidade da Funai no que tange o processo de demarcação da Terra Indígena, o que gera insegurança jurídica, conflitos e um ambiente hostil aos Guarani Nhandeva e Mbya.

A comunidade, com o auxílio de apoiadores, preparou um dossiê com postagens que trazem o discurso de ódio, racismo, xenofobia e preconceito propagados pelas redes sociais contra o povo Guarani

Como encaminhamento, o MPF irá oficiar o município para que retome as ações de assistência social na Terra Indígena. Também à Funai para que esteja ciente dos assuntos tratados na Audiência Pública.

O procurador solicitará ainda ao corpo técnico de antropólogos do MPF um laudo para averiguar se existe a presença de caiçaras no Rio Pequeno. Ficou delegado ainda ao Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais Angra, Paraty e Ubatuba o papel de interlocutor entre a Associação de Moradores e a comunidade Guarani Nhandeva e Mbya.

Durante a Audiência Pública, ficou evidente a postura anti-indígena do prefeito de Paraty, que em meio à pandemia interrompeu a distribuição de cartões de alimentação para uma comunidade em situação de vulnerabilidade, impossibilitada de realizar seus trabalhos de venda de artesanato na cidade.

Visita do CNDH

Por outro lado, a audiência foi um momento propício para esclarecer os fatos à população do município, bem como apresentar um pouco da cultura e da dívida histórica que o Estado Brasileiro possui em relação aos povos indígenas. Ao contrário daquilo que se dissemina na cidade, os Guarani Nhandeva e Mbya possuem reivindicações legítimas e amparadas legalmente.

Cientes de que essa foi mais uma etapa do grande embate que terão pela frente para garantir a conclusão do processo de demarcação, os Guarani Nhandeva e Mbya, no dia seguinte à audiência, receberam o representante do CNDH Marcelo Chalréo, que visitou a aldeia com o intuito de explicar os desdobramentos da Audiência Pública para as lideranças, bem como dialogar sobre os encaminhamentos possíveis.

Chalréo informou que irá sugerir ao colegiado do CNDH que oficie a Prefeitura Municipal de Paraty para que esta retome as ações de assistência social na aldeia e também a Funai para que se explique sobre a ausência na Audiência Pública, bem como a situação do processo de demarcação da Terra Indígena.

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