Ateu

Não vejo qualquer sentido obrigatório para a Vida. Nós é que o construímos. Como dizia o poeta: Caminante no hay camino/Se hace el camino al andar.

Por Jacques Gruman.

Ateu

Resta uma catedral em ruínas onde outrora moravam meus deuses. Agora ela está vazia. Meus deuses morreram. Suas cinzas, então, voaram ao vento. (Rubem Alves)

Semana passada tive uma oportunidade rara. Silvio Tendler, cineasta a quem conheço e admiro faz tempo, me convidou para dar um depoimento que seria utilizado numa série que ele está produzindo para o canal Globosat. O tema geral é a influência da religião sobre a vida contemporânea brasileira. Há um episódio dedicado aos ateus e agnósticos, e por aí entrei. Nunca fui um ateu militante. Meu afastamento de Deus e das religiões teve uma história, irreprodutível por natureza. De um início rigidamente sectário, evoluí para uma relação pacificada, sem medo de contágios, nem arroubos de proselitismo. Dialogo, do meu jeito, com tradições religiosas, respeitando os que as seguem sem fanatismo e interpretando-as à luz do olhar com que traduzo o mundo. O convite do Silvio me permitiu elaborar observações e sentimentos, que gostaria de compartilhar com vocês.

E no princípio foi o luto. A morte do Zissi deixou o Adolescente desestruturado. Uma relação afetuosa, densa, foi bruscamente substituída por solidão e angústia. Estava prestes a descobrir a eficácia da religião para aliviar esta hemorragia. Primogênito, segui a tradição ritual que mandava rezar o Kadish (oração judaica dos mortos) duas vezes por dia, por 365 dias consecutivos. Sem direito a parada nos fins de semana e feriados. Como isso exigia um minián (grupo de dez judeus homens, maiores de treze anos), compareci a sinagogas por exatas 730 vezes durante um ano. A rotina teve um efeito hipnótico. Não dava tempo para pensar na perda, na dor, nas incógnitas do futuro. Por outro lado, a comunhão com as pessoas que frequentavam aquele ambiente trouxe um conforto provisório para o vendaval que se armava no Adolescente assustado. Trazer alguma forma de esperança: eis aí um trunfo poderoso da religião naquele cenário devastado. Era muito tentador. Uma entidade robusta, com respostas definitivas e incontestáveis, perpétua (sem risco, portanto, de novo luto), paternal, acalentando um jovenzinho frágil e cheio de dúvidas. Não podia dar outra.

E no meio havia um clandestino. Minha mãe começou a namorar um sujeito, que me apresentou a um amigo. Fala mansa, pausada, segura. Hoje, suponho que era alguém envolvido com um partido de esquerda, clandestino à época. Ouvi coisas e loisas. Deus começou a ser contestado. Quer dizer que o mundo do homem era obra do próprio homem, sem intermediários , sem bengalas sobrenaturais? A escolha de uma profissão ligada à ciência me ensinou um método de pensamento e consolidou uma convicção. Pelo método, não é possível acumular conhecimento sem comprovação experimental. A convicção, que confirmo todos os dias, é a de que, quanto mais próximos estamos do conhecimento, mais longe estamos da necessidade mística e da noção de Deus. O conhecimento, ressalte-se, é sempre provisório, o que faz coçar o cérebro e estimula a curiosidade. Não tinha jeito. Deus foi a nocaute e deixou de ser variável relevante para minha visão de mundo.

Foi uma fase rígida. Bani todas as conexões com a espiritualidade ancestral e repudiei os que as mantinham. Falou a voz do adolescente radical. Mais tarde, reencontrei algumas memórias deste exílio e as olhei com compaixão e, por que não?, com afeto. A principal veio pela música. A abertura do chamado Dia do Perdão judaico (Iom Quipur) começa com uma melodia solene e belíssima, o Kol Nidrei, ou Todos os Votos. O Adolescente a tinha ouvido na voz de uma figura profética, em transe, e a enterrara sob montanhas de negação. A maturidade trouxe o desejo de revisitar aquele som e, sobretudo, aquela emoção. Sem a convicção dos crentes, pesquisei o significado do Kol Nidrei. Tem uma beleza singela. Apareceu durante a Inquisição, quando, em nome de Deus, a Igreja Católica censurou, perseguiu, prendeu, torturou, matou e exilou milhares de judeus (a semelhança com regimes totalitários não será mera coincidência). Pessoas eram forçadas a se converter, sob pena de duros castigos. Faziam, pois, o que não queriam, e muitas se sentiam envergonhadas, humilhadas. O Kol Nidrei, senha para o início de um grande balanço pessoal, reconhece a situação e declara que não importa o que se fez por obrigação. Naquele momento, todos são iguais. Ora, não é necessário acreditar em Deus para reconhecer a generosidade deste gesto comunal, de inspiração igualitária. Assim eu o vejo, assim eu o sinto, assim eu o admiro. Nesta fonte não tenho problema em beber.

Meu entrevistador pegou pesado. Perguntou de onde viemos e para onde vamos. Lembrei do Carlos Heitor Cony (ô Cony, que falta fazem tuas crônicas longas das sextas-feiras !). Quando lhe fizeram essa pergunta, respondeu que vinha do Lins e estava indo para a Lagoa. Eu vim da Abolição e da Tijuca, e não faço a menor ideia para onde vou. Melhor dizendo: por enquanto, fujo a galope da Magrinha. Gosto da Vida. Quando não der mais, junto-me à matéria fértil de que somos compostos. A não ser em raras exceções (das quais tratarei em outra oportunidade), nosso destino é o esquecimento. Fazer o quê? Daqui a uns 60, 70 anos (sou um otimista incorrigível), se eu não deixar nada que preste, estarei completamente olvidado. Será como se eu nunca tivesse existido. Digo isso com naturalidade. Não há razão objetiva para achar que meu ciclo de vida é superior ao de uma gramínea. A Natureza não nos distingue.

Não vejo qualquer sentido obrigatório para a Vida. Nós é que o construímos (ou não, o freguês é quem manda). Como dizia o poeta espanhol Antonio Machado: Caminante no hay camino/Se hace el camino al andar. São nossas relações com os outros homens e com o ambiente que nos cerca que dão algum sentido à existência. Depois, é o Nada. Elis Regina estava muito angustiada no fim da vida. Exclamou, aos prantos, que não era possível que a vida fosse só “aquilo”. Inconformada, acabou tragada por uma overdose. É, parceira, é só “aquilo” mesmo.

Já vou longe nestas mal traçadas. Continuo no tema semana que vem.

Fonte: Carta Maior

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