Assentamento conquistado após massacre sofre sem assistência do Estado

Por Maura Silva e Marcelo Cruz. 

O que antes era um imenso latifúndio de 37 mil hectares, a antiga Fazenda Macaxeira hoje é o Assentamento 17 de Abril, onde mora a maioria dos sobreviventes do Massacre de Eldorado de Carajás, ocorrido há 20 anos – quando 21 trabalhadores rurais sem-terra foram mortos pela Polícia Militar do Pará. Duas décadas depois da conquista da terra, muita coisa mudou. Além das vítimas, filhos e netos, pessoas vieram de todo o país e, hoje, são assentados da reforma agrária. No entanto, a realidade hoje é de falta de política pública para apoiar a produção de alimentos ali.

Segundo a associação dos produtores do assentamento, 690 lotes abrigam 3,5 mil famílias. Para produção e subsistência, cada família possui um lote equivalente a 25 hectares (o que corresponde 25 campos de futebol). Além da escola, os moradores contam com um posto de saúde, mercados, farmácias e açougues.

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As famílias produzem leite, milho, banana, mandioca, arroz e farinha. Os moradores estão às voltas com a criação de uma cooperativa para organizar a venda da produção, mas para isso, a estrutura precisa de melhorias, em especial a longa estrada de terra que leva ao assentamento. Para Raimundo dos Santos Gouveia, 61 anos, representante jurídico da associação, embora a conquista pela terra seja parte fundamental na luta pela reforma agrária, ela não é a única.

“É claro que avançamos na luta pela terra e isso deixa cada um aqui feliz. Conquistamos com sangue esse pedaço de chão. Ainda assim, a nossa luta é diária. Não temos nenhum apoio para agricultura familiar. Além disso, sofremos muito com a seca. Não existe interesse por parte do poder público de incentivar a agricultura. A primeira luta é pela terra, mas e depois? Não basta ter a terra, tem que ter condição de plantio, acompanhamento e assistência técnica”, disse. 

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Gouveia destaca ainda que há uma produção importante por parte dos trabalhadores, mas a falta de assistência dificulta o trabalho. “O leite é todo vendido para fora, basicamente para as cidades de Marabá e Parauapebas. Já chegamos a uma produção de 30 mil litros por dia. Mas o preço caiu e muita gente deixou de produzir. Hoje mantemos média de 15 mil litros por dia. Este ano não vai dar muito milho por causa da seca, então caiu mais ao menos 50% da produção”, apontou.

Violência no campo

Para a presidenta da Comissão de Direitos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Pará, Luanna Tomaz, o Massacre de Eldorado de Carajás foi emblemático em relação à violência no campo. Segundo ela, embora algumas medidas tenham sido tomadas para coibir essa violência, como a criação do Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, instituído em 2002, o cenário pouco mudou.

Para ela, as medidas púbicas adotadas pós Carajás, não conseguiram trazer um impacto efetivo para o enfrentamento à violência no campo. “Após o episódio existiu um esforço da sociedade civil em tentar confrontar mais a questão da violência agrária. Houve a criação do Conselho de Segurança Pública, que surge a partir da sociedade civil, existiu também a tentativa de fortalecimento de algumas medidas estaduais, mas, infelizmente, elas não tiveram o impacto que se esperava”, avaliou Luanna, que é também professora da Universidade Federal do Pará (UFPA).

A professora acredita que é preciso repensar as instâncias que já existem para haja um controle social maior da ação policial em nosso país. “O discurso mudou um pouco, mas continua sendo hipócrita. Os nossos poderes são extremamente resistentes aos direitos humanos”, apontou. Ela avalia que o discurso dos direitos humanos é utilizado para legitimar a prática, mas não contribui para alterá-la. “Ou seja, é uma lógica muito contraditória e hipócrita”, acrescenta. 

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Luta por reforma agrária

Na avaliação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foi a solidariedade nacional e internacional após o massacre que permitiu aos sem-terra se reorganizarem no Estado. “A solidariedade externa ampliou a nossa denúncia e, de alguma maneira, ampliou a nossa retaguarda. Era como se tivéssemos a crença de que um novo dia era possível”, afirma Jorge Néri, 50 anos, uma das lideranças do movimento à época. 

No final de 1996, foi realizada uma grande ocupação, originando o que, atualmente, é o Assentamento 1° de Março. E, em 1997, o movimento fez uma marcha histórica que levou 100 mil sem-terra à Brasília. “Nos anos seguintes ao massacre, de 1997 a 2000, houve o maior número de assentamentos e ocupações da história do movimento”, afirma João Paulo Rodrigues, da direção nacional do MST. 

Foto: Agência Brasil

Ele destaca que, em 1998, foram assentadas 150 mil famílias. “A bandeira da reforma agrária foi descoberta pela sociedade em geral. O debate saiu dos assentamentos e foi para as ruas, dividindo opiniões, assim como acontece nos dias de hoje. De todo modo, nosso tema começou a ser pautado e, junto com ele, a violência policial e a criminalização dos movimentos sociais. Isso ocorreu por um tempo, mas, infelizmente, não foi o suficiente. E o retrato disso vemos nos dias de hoje”, afirma Rodrigues. 

Para Néri, a ineficiência e a falta de respostas do Estado não deve ser esquecida, pelo contrário, deve ser lembrada diariamente na luta diária pela terra. “Eu gostaria muito que Carajás significasse a celebração de um período em que nós fomos capazes de resistir com a vida, não com a morte. Mas enquanto algumas questões estruturais no Brasil não mudarem é o que vai continuar acontecendo”, declarou.

Ele lamenta que os últimos anos tenham sido especialmente difíceis para as políticas agrárias. “Nos últimos anos só aumentou a concentração fundiária, nenhum passo foi dado em direção à reforma agrária. Não conseguimos impulsionar mudanças que impliquem na consciência do nosso país. O que Carajás nos ensina é que precisamos refletir, olhar para frente, hastear nossa bandeira e seguir”, apontou. 

Arte: Laura Viana / Brasil de Fato

Foto: Reprodução/Brasil de Fato

Fonte: Brasil de Fato

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