Assassinato em Ramallah

Por Fernando Evangelista.

Empurro lentamente a cortina e vejo o Quartel General da Autoridade Palestina cercado por 20 tanques de guerra israelenses. Dentro do quartel estão Yasser Arafat, alguns de seus auxiliares mais próximos e integrantes da Via Campesina, dentre eles o agricultor brasileiro Mário Lill.

– Fecha essa merda – alguém gritou.

Fechei. Somos seis pessoas num quarto de hotel com apenas duas camas – uma de casal e outra de solteiro. Por falta de agilidade e espírito competitivo, sobrou-me um canto do chão, quase em frente ao banheiro.

 

É abril de 2002 e esta é a nossa primeira noite em Ramallah, centro político dos Territórios Palestinos e epicentro da Operação militar Escudo Defensivo, iniciada por Israel alguns dias antes. Exceto eu, repórter brasileiro, todos os outros são ativistas italianos, integrantes de um grupo em defesa dos Direitos Humanos que percorre o mundo irritando autoridades e denunciando injustiças.

Pela manhã, ainda no saguão do hotel, converso com alguns palestinos e as histórias se repetem, uma atrás da outra. Um teve o filho preso, outro o pai morreu na prisão, outro foi preso e torturado, outro o Exército israelense destruiu a casa e matou o filho adolescente, uma senhora disse ter testemunhado a morte de três homens da família e por aí vai. Muita notícia ruim para um começo de manhã.

Se os italianos já são agitados e barulhentos em dias normais, é possível imaginá-los num hotel pequeno, sem luz e com pouca água, bem no meio de um conflito. Nada fácil. Para acalmar os nervos, eles decidem ir ao hospital, lugar obrigatório para se entender a dimensão de uma guerra, mesmo sendo uma guerra de um exército só.

“Os militares, sabendo de nossa presença, sabendo que estamos gravando e fotografando tudo, talvez se sintam menos livres para cometer algumas violações”, explica um dos ativistas. O problema, porém, é que não se pode circular por Ramallah. Avisos das autoridades israelense alertam: quem desrespeitar o toque de recolher poderá ser morto.

– É fundamental que os snipers entendam que somos europeus e que estamos desarmados – diz uma ativista, durante a primeira reunião do dia no hotel.

– O que são snipers? – eu pergunto. Os italianos me olham com aquelas expressões que dizem, sem dizer, algo do tipo: “Meu Deus, de onde vem este sujeito?”.

– Snipers são franco-atiradores ou atiradores de elite – alguém explica. Faço uma cara de “ora, ora, veja bem, é claro, sempre soube desses franco-atiradores, que distração a minha”. Franco-atiradores? Caminhar sob a mira de franco-atiradores israelenses? Estou entendendo bem?

Decide-se que cada um deve levar, com os braços erguidos, um pedaço de pano branco, como se fosse uma bandeira da paz, um pedido: “não atire, estou desarmado”. E na outra mão o passaporte, para deixar claro que éramos todos estrangeiros.

Ao sair do hotel, bem no meio da nossa rua, completamente deserta, percebo que sou o mais alto do grupo. “O mais alto é o alvo”, como ensinam os filmes policiais americanos. Fico bem no meio dos ativistas e vou observando com o canto dos olhos os tetos dos edifícios. Para despistar os maus pensamentos, começo a cantarolar baixinho uma música religiosa: “erguei as mãos e dai Glória a Deus, erguei as mãos…”.

Os italianos, surpresos, desconfiam da minha sanidade. Não dou bola, continuo caminhando e cantando, como na canção do Geraldo Vandré. Não há ninguém no caminho, nem soldados, nem aviões ou helicópteros, nada. Ramallah nos recebeu com tanques, passou a noite sob bombas, mas naquele momento parece tranquila. Tento não pensar nos atiradores.

De repente, vindo não se sabe de qual casa palestina, um grito de agradecimento: “Thank you for being here”. “Obrigado por estarem aqui”. Atrás daquelas janelas fechadas, das portas trancadas, atrás do silêncio, um povo nos observa. Finalmente, 10 minutos depois, chegamos ao hospital.

É grande e limpo, com dois prédios principais, a pediatria e o pronto-socorro. A primeira impressão é de normalidade: os médicos tomam chá, o segurança ouve rádio e as enfermeiras riem de alguma coisa.

“Parece tudo normal, mas não está”, reconhece Mundar al-Sharif, diretor-geral do Ministério da Saúde da Palestina. “As ambulâncias estão impedidas de circular, estamos sem remédios, com racionamento de luz e alguns feridos não puderam ser socorridos porque o Exército israelense impediu”.

Na recepção, converso com uma enfermeira palestina e ela faz um discurso – com um inglês fluente e gestos graciosos – sobre o futebol brasileiro. Eu estou no meio de uma guerra, mas quase ninguém demonstra ansiedade, medo ou revolta. Isto é o mais estranho.

Nem mesmo uma senhora palestina, sentada na recepção do hospital, à espera de uma consulta, parece ansiosa. Ela está acompanhada do marido. Apesar da proibição de sair de casa, ela foi ao hospital por causa de fortes dores na perna. Na consulta, rápida, recebe uma receita e um analgésico, e sai calmamente pela porta principal.

A senhora e o marido passam por mim e tudo acontece muito rápido. Ouço um barulho estranho e um grito. O marido volta desesperado para a recepção, pede ajuda, diz coisas em árabe, coloca o dedo indicador no peito e depois na cabeça. Parece em choque. Neste momento, entendo o que está acontecendo. É a guerra sem edição, sem disfarce, sem justificativa.

Enquanto isso, em Beirute, a Liga Árabe aprova o Plano de Paz do príncipe saudita Abdullah. O plano propõe que os 22 países da Liga reconheçam a existência do Estado judeu, assegurem a linha de suas fronteiras e estabeleçam relações comerciais e diplomáticas completas. Em troca, Israel deverá se retirar dos territórios ocupados em 1967. O Estado Palestino será criado com Gaza, Cisjordânia e  Jerusalém Oriental.

Para os palestinos, além do direito ao retorno, a retirada israelense das terras ocupadas na guerra de 1967 continua sendo o ponto crucial. A guerra dos Seis Dias, como ficou conhecida, transformou profundamente a geografia da região. Israel, vitorioso, ocupou um território três vezes maior do que aquele estabelecido pela ONU.

Ali, na minha frente, a história deste conflito, história quase sempre maquiada por nobres justificativas, maravilhas tecnológicas, atos heroicos de bravura, generais patrióticos e patrióticas reportagens, reduzia-se a uma senhora palestina, uma civil, estendida no meio da rua, baleada por um franco-atirador israelense.

O marido pede que os ativistas o ajudem a trazê-la para dentro do hospital. Cinco italianos se dispõem a pegá-la, mas são impedidos por novos disparos. “A estratégia é deixar que ela morra ali, sem ajuda. Nela, atiraram para acertar, nos ativistas, atiraram para impedir a ajuda a um ferido”, explica-me a recepcionista. Pouco depois, dois enfermeiros conseguem “resgatar” a senhora. Dessa vez ninguém atirou, mas já era tarde. Ela estava morta.

O assassinato não repercutiu na mídia internacional. Na imprensa brasileira, o que gerou editoriais e artigos, muito deles furiosos, foi a imagem do gaúcho Mário Lill ao lado de Yasser Arafat, ambos reféns em Ramallah, segurando uma bandeira do Movimento Sem Terra. Para grande mídia nacional, aquela bandeira era, e ainda é, o grande escândalo desta história.   

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Cobriu três guerras no Oriente Médio e conflitos na Europa e América do Sul. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira. Ilustrações de Juliana Kroeger.

 

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