As relações dos estranhos no mundo mediado pelas tecnologias. Por Carlos Weinman.

Imagem via Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

Os três viajantes acordaram antes do nascer do sol, Inaiê foi preparar o café, enquanto Ulisses e Roberto analisavam como poderiam tirar a combi daquele lugar, a maneira como o veículo estava indicava que somente um guincho poderia auxiliar, a coruja retornou para a árvore que estavam acampados. Nesse momento Ulisses falou:

Roberto e Inaiê vocês ficam aqui no acampamento que eu vou buscar ajuda, como nesse lugar o celular não funciona, não há sinal, a única maneira é ir até a rodovia e seguir até a cidade vizinha, talvez tenha sorte de encontrar ajuda no caminho, caso contrário vou ter que caminhar cinquenta quilômetros.

Ulisses terminou de falar, pegou água, um pouco do café em uma pequena garrafa térmica e saiu em busca de ajuda. Enquanto isso, Inaiê e Roberto ficaram conversando, tomando um café, cuidando da sua morada, ou seja, a ferrugem dos esperançosos, acompanhados pela coruja, a companheira de viajem. Enquanto Roberto apreciava o café, Inaiê resolveu falar:

Roberto estamos no meio da natureza, em um lugar que o acesso a tecnologia é difícil, até para um simples telefonema, parece ser estranho para o mundo em que vivemos, embora que, na minha vida até conhecer vocês, nunca tive a oportunidade de ter um celular com internet ou notebook, agora é que consegui um aparelho de celular, com grande dificuldade, sei que todos dizem que o mundo em que vivemos é constituído por pessoas  conectadas, vivemos em um mundo ligado por uma grande rede de computadores e smartphones, o que de certa forma traz confusão para o meu modo de ver, pois não estou tão conectada, compro créditos para acessar, nem sempre consigo, muitos lugares que passamos não há sinal, como é o caso onde estamos, as pessoas desse lugar, também não devem estar conectadas ao ponto de afirmarmos que o mundo é uma grande sociedade em rede, o que você pensa sobre essa questão?

– Inaiê você está certa quando afirma que o mundo, no qual vivemos, as tecnologias da informação e da comunicação viabilizam novas formas de socialização das pessoas, do conhecimento e de interação. Contudo, vejo que novos estranhos são constituídos nesse universo, pois para ser alguém ou ter seu status social precisa estar ligado a rede, quando não está não pertence a esse mundo, é uma estranha, imagine se alguém diga que não tem o acesso ou não utiliza o facebook, o twitter ou qualquer outra rede social, muitos vão achar um absurdo, poderão perguntar em que século ou mundo em que esta pessoa está vivendo. Esse fenômeno ocorre pelo fato que tais ferramentas aparecerem para o nosso imaginário como uma única forma de viver, alguns poderão sentir menos pela perda de um braço ou de uma perna do que perder seu celular ou a possibilidade de ter um.

Inaiê pegou um pouco mais de café, ficou pensativa por alguns minutos, quando resolveu romper o silêncio:

– Pensando dessa forma, nós devemos ser figuras bizarras – disse rindo- pois a maior parte do tempo estamos conversando, viajando, trabalhando, nossas relações são estabelecidas, basicamente, através da comunicação face a face, estamos conectados pela mediação entre pessoas e não por máquinas, somos péssimos consumidores da tecnologia, temos o básico, você nem tem, apenas possui livros, que ao meu modo de ver são muito bons, mas somos os estranhos do século XXI que não aderiram ou que não tem condições de acessar o mundo mediatizado pela rede de internet, poderíamos dizer que fazemos parte dos excluídos digitais.

Roberto ficou fascinado pelas reflexões de Inaiê, soltou uma gargalhada e respondeu para sua amiga:

Vejo que os livros que tenho na ferrugem dos esperançosos estão fazendo bem para o seu intelecto! Realmente temos várias formas de exclusão nesse mundo dos estranhos, entre elas está a exclusão digital, muitos não tem a opção, outros tem um acesso limitado, consomem o básico das redes sociais. Porém, temos outro desafio, pois há aqueles que tem acesso as informações, ao conhecimento, as tecnologias, mas não aprenderam a fazer a leitura desse mundo, poderíamos dizer que são analfabetos, dado que ler não é apenas reproduzir palavras, mas decifrar e interpretar os sentidos e significados, vemos a falta dessa capacidade, no mundo virtual, quando o fácil é atrativo, enquanto que a leitura aprofundada é percebida como um crime, os indivíduos tornam-se meros espectadores de uma grande vitrine que chamamos de mundo virtual, são facilmente conduzidos por informações dissociadas, sem base e sem questionamento, são bons consumidores. Nesse universo, não aprenderam a fazer o exercício do pensamento, reproduzem “achismos”, paixões, desejos, mas não percebem a si mesmos com autores, muitos chegam ao ponto de ter os amores e os desejos de outros, são prisioneiros, como diria o filósofo Hegel, se queres ter o domínio sobre outro, tenha a posse do seu desejo. Diante disso, sou levado ao questionamento se o despertar do pensamento pode atingir as pessoas na grande rede, as respostas são postas e não pensadas, ficamos à mercê de um grande guru para tudo, nesse universo o acesso não necessariamente alimenta o cérebro ou consciência humana, ao mesmo tempo, a rede revela um grande potencial para o pensamento, temos assim uma grande contradição.

Inaiê entusiasmada pelo debate interrompeu Roberto:

Talvez o modo como encarramos o mundo virtual seja equivocado, queremos acessar tudo e querer tudo instantaneamente, mas não damos tempo para o desenvolvimento das nossas habilidades cognitivas, de amadurecimento e até mesmo de deslumbre para o mundo que se revela para nós, penso que na busca pelo conhecimento existe uma beleza, uma forma de deslumbre que possui um ritmo, caso queiramos acelerar tudo, temos uma tendência de ir para o fácil e o deslumbramento e o pensamento perdem o seu lugar. Desse modo, ao invés de apreciarmos uma obra literária, por exemplo, vamos direto para o seu resumo que estará na rede, pronto, não é necessário pensar, sentir a obra.

            Diante da fala de Inaiê, Roberto disse:

            – O mundo virtual é a construção nossa, realmente o imediatismo é uma das consequências desse universo. Nesse sentido, se surgisse um vírus mortal para a humanidade, que a obrigasse parar, teríamos várias resistências, com muitas justificativas, mas talvez, não faríamos o básico, isto é, ser solidários uns com outros, para tornar a vida de todos possível, a tendência imediatista tenderia a querer a voltar a nossa condição de produção e de velocidade e não de pensamento, mesmo que tudo levasse ao fato que não seria possível, quem sabe tenderíamos a buscar constantemente na tela de um aparelho a solução, mas a angústia seria tão grande que não consideraríamos pensar em soluções para tornar as vidas das pessoas possíveis, enquanto uma parte da sociedade, constituída por cientistas e médicos estivessem pesquisando uma cura. O imediatismo talvez seria a causa do não pensar no outro e todos isoladamente buscariam soluções, mas o problema somente poderia ser resolvido conjuntamente. Nesse caso, ao invés de haver unidade para enfrentar os problemas, teríamos como resposta a resistência aos fatos, pois muitos ainda sonhariam em encontrar soluções imediatas e milagrosas. Afinal, tudo isso seria decorrente do fato em que por mais acesso que se tenha às tecnologias, as pessoas continuam estranhas umas das outras e, caso alguém não tenha acesso, essa situação ganha um agravante.

Inaiê entusiasmada falou para Roberto:

– Poderíamos buscar na filosofia de Kant o princípio do pensar, de ter entendimento sobre algo, o que é trabalhoso, exigente, mas ação deve ser orientada pelo pensamento, do contrário poderíamos ser percebidos como pessoas que agem com os olhos vendados na escuridão, sem ter nenhuma forma de orientação. Aqueles que mencionam que a prática é melhor do que pensamento, são bons servos, bons escravos, mas precisam de alguém para dizer o que fazer, o que está longe do despertar do pensamento e muito menos se orientar por ele. Disso surge a questão: como se orientar pelo pensamento no mundo, nas relações mediadas pelas tecnologias?

Nesse momento Ulisses chegou com ajuda esperada, no caminho encontrou carona e foi buscar o auxílio. Os três começaram a preparar as coisas para retirar a ferrugem dos esperançosos do rochedo e depois ir até a oficina. Enquanto isso, as mentes de Roberto e de Inaiê estavam ativas, muitos raciocínios surgiam sobre o mundo das tecnologias e o despertar do pensamento.

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Carlos Weinman

Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

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