As posições revisionistas (oportunistas) do marxismo, o reformismo burguês e a situação do Brasil de hoje

Por Anita Leocadia Prestes*

O revisionismo e o reformismo burguês no Brasil

  1. I. Lenin, em sua época, mostrou que as tendências revisionistas do marxismo, embora reconhecessem formalmente a teoria do socialismo cientifico, na realidade constituíam uma forma da luta da ideologia burguesa contra as ideias revolucionárias. Segundo o grande artífice da Revolução Russa de 1917, isso revelava a força do marxismo. “A dialética da história é tal – escrevia Lenin – que o triunfo teórico do marxismo obriga seus inimigos a disfarçar-se de marxistas. O liberalismo apodrecido internamente, tenta renascer sob a forma de oportunismo socialista”[1].

            As palavras de Lenin revelam-se de uma atualidade surpreendente, quando se observa o panorama político da sociedade brasileira de hoje. Uma sociedade, cujas classes dominantes, representadas pelas elites políticas – ou seja, seus “intelectuais orgânicos”, segundo A. Gramsci (Gramsci, 2001:15-25), – tiveram sempre sua atuação marcada pelas soluções de conciliação entre os distintos grupos de interesses dos setores privilegiados. As massas populares, os trabalhadores, os oprimidos e explorados permanecendo alijados dessas soluções de cúpula. Ao referir-se ao “homem cordial”, Sérgio Buarque de Holanda (Holanda, 1981) registrou esse traço manifesto das elites brasileiras, herança da nossa formação histórica, caracterizada pela permanência de quatro séculos de escravidão e da grande propriedade territorial.

            Tais tradições da vida política brasileira, em que as soluções de compromisso entre grupos e/ou partidos representativos de distintas facções das classes dominantes constituíram uma forma de sobrevivência diante do aguçamento da luta de classes, determinaram um constante afastamento das massas populares de qualquer atuação significativa na resolução dos problemas nacionais. Condicionaram uma permanente impossibilidade de que protagonistas de perfil popular exercessem influência significativa nas decisões políticas adotadas pelos intelectuais orgânicos dos setores dominantes. Nesse sentido, tornou-se emblemática a frase pronunciada em 1930 por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, um dos grandes oligarcas de Minas Gerais: “Façamos a revolução antes que o povo a faça” (Abreu, 2001:1115).

            Os antecedentes apontados, presentes no universo político nacional, formaram o caldo de cultura propício ao advento no meio dos setores de esquerda e dos movimentos populares e dos trabalhadores de tendências oportunistas, ou seja, revisionistas do marxismo – uma teoria revolucionária em sua essência, segundo a qual seus adeptos não devem apenas interpretar o mundo, mas transformá-lo,[2] assim como de correntes contaminadas pelo reformismo burguês.

            Na medida em que as forças revolucionárias no Brasil foram constantemente perseguidas e derrotadas pelo poder do Estado a serviço dos interesses das classes dominantes, na medida em que a debilidade orgânica e ideológica dos setores de esquerda e dos comunistas foi uma constante – em grande parte resultante dessa perseguição implacável –, tornou-se possível o predomínio em larga escala da ideologia burguesa nos movimentos populares e dos trabalhadores. Estava aberto o caminho para o avanço do oportunismo e do reformismo burguês no seio das esquerdas brasileiras, para as dificuldades de enfrentá-los com êxito.

            Se lançarmos um olhar retrospectivo sobre a história do Brasil a partir da independência de Portugal, verificaremos que as situações de crise vividas pelo país foram sempre solucionadas através de compromissos estabelecidos entre facções das classes dominantes. Os setores populares ficaram de fora, reprimidos com violência quando tentaram conquistar posições que lhes fossem propícias dentro dos novos esquemas de poder.

A independência brasileira resultou de um arranjo entre os senhores de escravos e de terras e a Coroa portuguesa, enquanto os radicais da época foram alijados e derrotados.  Diferentemente do processo de libertação das colônias espanholas liderado por revolucionários como Simon Bolívar e San Martin, que, ainda no início do século XIX, decretaram a abolição da escravidão negra e da servidão indígena, juntamente com o estabelecimento de regimes republicanos, no Brasil, com a independência, se constituiu uma monarquia, que assegurou a manutenção da escravidão negra até o final desse século e a proclamação da República apenas em 1889. Processos estes conduzidos de maneira a impedir qualquer mudança de caráter revolucionário. No Brasil, não tivemos lutas revolucionárias vitoriosas; pelo contrário, quando ocorreram, foram derrotadas com violência pelas classes dominantes. A tão celebrada opção por transições incruentas, proclamada com insistência pelos intelectuais orgânicos a serviço dos interesses dominantes, reflete a debilidade dos movimentos populares no Brasil – fruto das condições históricas a que foram condenados -, incapazes de impor suas aspirações aos donos do poder.

Se dirigirmos nosso olhar para as vicissitudes do processo de transição do regime ditatorial implantando no Brasil em 1964 para a democracia hoje existente no país, verificaremos que, mais uma vez em nossa história, tivemos uma solução de compromisso entre facções das classes dominantes, entre os generais então à frente do Poder Executivo e os representantes da burguesia liberal (Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, etc.). Em 1979, mais uma vez em nossa história, os setores populares não tiveram força política para impor uma “anistia ampla, geral e irrestrita”, como também, em 1984, não puderam conquistar as “diretas já” nas eleições presidenciais. Do pacto estabelecido entre as elites burguesas resultaram uma anistia restrita, extensiva aos torturadores, e eleições indiretas para a presidência da República. Apenas em 1989, garantidos os interesses do grande capital nacional e internacional pela realização de uma transição “segura”, as eleições diretas para presidente da República foram permitidas.

Também o processo constituinte que se seguiu ficou marcado pela conciliação entre o “poder militar” e os representantes burgueses com acento na Assembleia Constituinte de 1988, cujo resultado foi a tutela militar sobre os três Poderes do Estado, de acordo com o artigo 142 da Constituição então promulgada, conforme denunciado à época por Luiz Carlos Prestes:

Em nome da salvaguarda da lei e da ordem pública, ou de sua “garantia”, estarão as Forças Armadas colocadas acima dos três Poderes do Estado. Com a nova Constituição, prosseguirá, assim, o predomínio das Forças Armadas na direção política da Nação, podendo, constitucionalmente, tanto depor o presidente da República quanto os três Poderes do Estado, como também intervir no movimento sindical, destituindo seus dirigentes, ou intervindo abertamente em qualquer movimento grevista (…)[3]

A fundação do PT (Partido dos Trabalhadores), no início dos anos 1980, alimentou em amplos setores de esquerda a esperança de que afinal fora criada uma organização política capaz de conduzir os trabalhadores pelo caminho da sua emancipação social e política. Entretanto, sem confiar nas lideranças operárias surgidas das grandes greves de 1978/79 no ABCD paulista, a burguesia mobilizou recursos poderosos para derrotar Luís Inácio da Silva, o Lula, em três eleições presidenciais consecutivas (1989, 1994 e 1998).

No decorrer desses anos, tornou-se evidente que inexistiam no Brasil forças sociais e políticas – o “bloco histórico” gramsciano (Gramsci, 2001: 238) -, capazes de respaldar a eleição de um candidato à presidência efetivamente comprometido com os anseios populares e disposto a liderar um processo de transformações profundas da sociedade brasileira.

Ao mesmo tempo, tanto Lula quanto a direção do PT enveredavam pelo caminho da conciliação com setores da burguesia. Sem jamais terem adotado a teoria marxista como orientação ou considerado a realização de reformas sociais como caminho para a revolução, os líderes do PT optaram pelo reformismo burguês. Diante da tradicional alternativa – reforma ou revolução (Luxemburgo, 2010) -, a escolha foi clara. Tratou-se de buscar a reforma do capitalismo, de alcançar um capitalismo “sério” e distribuidor de benesses aos desassistidos, abandonando definitivamente qualquer proposta de mudança de caráter revolucionário e anticapitalista.

Contrariando o que haviam imaginado e proposto pensadores marxistas como Florestan Fernandes, nos primeiros anos de existência do PT, o “partido dos trabalhadores” transformou-se numa versão brasileira da social-democracia europeia, com a diferença de que os conflitos sociais no Brasil, resultado de desigualdades extremas, não têm solução, mesmo que temporária, nos marcos do capitalismo, como aconteceu com o “estado do bem-estar social”, criação dos partidos social-democratas na Europa. Experiência esta hoje falida, como é do conhecimento geral.

Em 2002, ao candidatar-se pela quarta vez à presidência da República, Lula e as tendências que o apoiavam dentro do PT compreenderam que para assegurar sua eleição seria necessário fazer concessões ao grande capital internacionalizado, ou seja, aos setores da burguesia monopolista brasileira e internacional. A “Carta aos brasileiros” então lançada selou esse acordo. Lula e o PT tornaram-se confiáveis para a continuidade do sistema capitalista no Brasil, contribuindo para tal a nomeação de Henrique Meirelles para o Banco Central, o único gerente não estadunidense do então Banco de Boston, homem de confiança das multinacionais, que permaneceu à frente do Banco Central durante os dois quadriênios dos governos Lula. Jamais no país os grandes empresários e banqueiros ficariam tão satisfeitos com um governo quanto no período de Lula e, logo a seguir, com a eleição de sua “criação”, a presidente Dilma.

Uma vez no governo, os dirigentes do PT incluíram em sua base aliada partidos e agrupamentos políticos comprometidos com a continuidade das políticas neoliberais, que haviam constituído a essência dos compromissos assumidos com a “Carta aos brasileiros”. Estava fora de cogitação qualquer possibilidade de os novos governantes desenvolverem esforços voltados para a organização e a mobilização populares, tendo em vista a implantação de políticas favoráveis aos interesses dos trabalhadores e das grandes massas vitimadas pela exclusão social.

De acordo com a cartilha neoliberal, formulada pelas agências ligadas aos grupos monopolistas internacionais, aos setores populares seria destinada uma parte dos recursos provenientes dos lucros fabulosos desses grupos, através de políticas assistencialistas promovidas pelo Estado brasileiro, cujo objetivo principal jamais deixou de ser a garantia da paz social. Dessa forma, tentou-se evitar as convulsões sociais e garantir o apoio popular aos governos do PT e de seus aliados, assegurando a sucessão tranquila desses governantes a cada eleição. Foram distribuídas migalhas ao povo, enquanto as multinacionais obtinham lucros fabulosos e os dirigentes do PT e seus aliados garantiam a reeleição para os principais cargos dos governos da República.

O modelo “petista” entra em crise

 Durante alguns anos esse esquema funcionou, mas, a partir de junho de 2013, com as grandes manifestações de protesto que se espalharam por todo o Brasil, passou a ser questionado.  A crescente insatisfação com as repercussões no país da crise mundial do capitalismo, com as consequências de uma política de privilégios aos interesses do grande capital, com as denúncias de corrupção atingindo figuras do governo e com a incompetência na gestão da economia nacional evidenciou-se durante a última sucessão presidencial, quando a reeleição de Dilma Rousseff foi garantida por uma pequena margem, de 3,28%,[4] sobre o seu principal adversário, o “tucano” Aécio Neves. Este se tornara o candidato preferencial dos monopólios nacionais e internacionais, uma vez que comprometido com setores empresariais partidários de políticas decididamente neoliberais, incluindo propostas de privatização total do Pré-Sal e de um completo alinhamento com os interesses estadunidenses. Ademais, os meios de comunicação a serviço dos grupos monopolistas nacionais e estrangeiros contribuíram decisivamente para a vitória apertada de Dilma Rousseff.

Diante do descontentamento generalizado com a política neoliberal adotada pelo seu primeiro governo – embora camuflada por um discurso demagógico -, a candidata do PT à reeleição precisou recorrer a promessas eleitorais, chegando a garantir que, em seu novo governo, os direitos dos trabalhadores não seriam tocados “nem que a vaca tossisse”. Mas, uma vez eleita, Dilma Rousseff não tardou em anunciar para o Ministério da Agricultura o nome da Sra. Katia Abreu, declarada representante do agronegócio e dos grandes latifundiários. A seguir seria a vez dos ministros da área econômica Joaquim Levy, Nelson Barbosa, Alexandre Tombini e Armando Monteiro Neto, todos conhecidos pelos compromissos que, de uma forma ou de outra, os unem aos grupos monopolistas que controlam a economia nacional.

De acordo com o “choque fiscal” anunciado pela nova equipe econômica, logo após sua nomeação, pretendia-se a redução dos direitos trabalhistas e da proteção social dos trabalhadores, ou seja, criar dificuldades para o acesso ao seguro-desemprego, ao abono salarial, à pensão por morte, ao auxílio-doença e ao seguro-defeso aos pescadores no período de proibição da sua atividade. A justificativa apresentada foi o combate às fraudes e a necessidade de cortar 18 bilhões de reais nas despesas da União, parte do ajuste fiscal de, no mínimo, 60 bilhões, definido pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, para atingir um superávit de 1,2% do PIB. Além disso, foi decretado o aumento de impostos sobre combustíveis, crédito ao consumidor e importações e mudanças no Imposto sobre Produtos Industrializados para o setor de cosméticos. Com tais medidas, pretendia-se chegar a retirar 70 bilhões de reais da economia[5] – uma “guinada ortodoxa”, tão a gosto das receitas neoliberais, para combater a crise econômica que adquiriu maior gravidade no país.

Entretanto, Joaquim Levy e sua equipe econômica foram forçados a rever drasticamente as metas desse ajuste fiscal devido, por um lado, às resistências generalizadas encontradas para sua aplicação e ao agravamento da crise econômica e, por outro, à reação contrária ao governo no Congresso Nacional, capitaneada por Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, o que se explica pelo temor de possíveis cassações dos mandatos de parlamentares envolvidos nos escândalos de corrupção investigados atualmente pela Polícia Federal e o Ministério Público.

Em julho, o governo reduziu de 1,19% para 0,15% a meta de superávit primário deste ano e ao invés de poupar 66,3 bilhões de reais, passou a pretender economizar apenas 8,7 bilhões. Passou a admitir a possibilidade de um novo déficit primário, como aconteceu em 2014 e, por isso, encaminhou ao Congresso uma cláusula de abatimento da meta de 26,4 bilhões, o que abre a possibilidade para um déficit de até 17,7 bilhões de reais nas contas públicas. Ou seja, ao invés de economia, pode haver rombo nas contas públicas.[6]

Segundo o conhecido economista Luiz Gonzaga Belluzzo, “A regra da economia de hoje é ‘o povo que se lixe’”. Na sua avaliação, “o Joaquim Levy, na verdade, representa um conjunto de interesses, que acabou se impondo durante as eleições e logo depois delas”[7]. Em outras palavras, os interesses do grande capital internacionalizado serão garantidos no segundo governo Dilma, desmentindo as promessas eleitorais da então candidata. Na prática pretende-se introduzir as “correções” que eram defendidas por Aécio Neves, o candidato oposicionista à presidência da República, e contestadas pelo PT e sua candidata.

Diante da resistência de setores do Congresso Nacional às medidas propostas por Joaquim Levy, o governo Dilma aceitou fazer mais concessões aos interesses do grande capital sustando aparentemente o perigo imediato de impeachment da presidente, que estaria comprometida com denúncias de corrupção. Surgiu assim a “Agenda Brasil” – um conjunto de medidas contrárias aos interesses populares – apresentada por Renan Calheiros, o presidente do Senado da República que, ao aliar-se ao Poder Executivo, espera ser absolvido das acusações que pesam contra ele nos processos judiciais ora em curso.[8]

 São testemunho do apoio concedido pelo capital financeiro à política econômica promovida por Joaquim Levy as declarações de Luiz Carlos Trabuco, presidente do Banco Bradesco, o segundo maior banco privado do Brasil, para quem o atual ministro da Fazenda tem “objetivos cívicos e patrióticos”[9]. No mesmo sentido pronunciou-se Roberto Setubal, presidente do Itaú, maior banco privado do país, ao afirmar que “não há motivos para tirar Dilma do cargo”.[10]

No último mês, diante das contradições evidenciadas tanto no seio da própria equipe econômica do governo quanto entre o Poder Executivo e o Congresso Nacional, ameaçando a estabilidade política no país, setores empresariais e financeiros vêm exercendo crescentes pressões para que as políticas ortodoxas propostas por Joaquim Levy sejam urgentemente aprovadas e postas em prática.[11] As dificuldades surgidas na elaboração do projeto orçamentário para o ano de 2016 levaram a presidente Dilma a encaminhar ao Congresso Nacional um orçamento deficitário em 30,5 bilhões de reais, provocando o rebaixamento do grau de investimento, conferido a países considerados bons pagadores e seguros para investir, por parte da agência norte-americana Standrd & Poor’s.[12]

A instabilidade política agravada por essa medida levou Dilma e sua equipe econômica a apresentarem ao Congresso Nacional nova proposta orçamentária. Os déficits deverão ser cobertos com a adoção de cortes nas despesas governamentais e o aumento de impostos, acarretando mais sacrifícios para a maioria do povo brasileiro. O governo pretende economizar um total de 65 bilhões de reais em 2016; esse total deverá servir para cobrir o déficit de 30,5 bilhões no orçamento e gerar ainda um superávit nas contas de mais de 34 bilhões – que corresponde a 0,7% do PIB – para pagamento dos juros da dívida pública. Quem vai pagar essa conta vão ser os trabalhadores, pois apenas 2,9 bilhões de reais virão do bolso dos mais ricos, provenientes do aumento do imposto de renda sobre o lucro obtido na venda de imóveis.[13]

Entretanto, segundo cálculo realizado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), baseado em dados da Receita Federal, com a adoção de um imposto de 15% sobre lucros e dividendos recebidos por donos e acionistas de empresas – rendimentos atualmente isentos de imposto – seria possível arrecadar mais de R$43 bilhões ao ano para os cofres públicos, o que seria uma alternativa ao ajuste fiscal proposto pela atual equipe econômica do governo Dilma, desmentindo as afirmações de que o atual gasto social é insustentável – algo não só falso como injusto e antidemocrático.[14]

Se, por um lado, durante os três primeiros governos petistas, as camadas mais desprotegidas do povo brasileiro foram brindadas com medidas assistencialistas, que permitiram uma pequena melhora das suas condições de vida, por outro lado, longe de a miséria no Brasil ter sido eliminada, conforme dizem os propagandistas do governo e do PT, as chamadas “políticas compensatórias” levadas a cabo desde 2003 não permitiram impedir o crescimento da concentração da renda no país. De acordo com pesquisa realizada na Universidade de Brasília a partir das declarações de Imposto de Renda Pessoa Física para os anos de 2006 a 2012, verificou-se “uma concentração de renda no topo substancialmente maior do que as outras fontes” revelavam, e “ela permanece estável”.

“No período analisado, o 0,1% mais rico da população recebeu quase 11% da renda total e isso significa que a sua renda média foi quase 110 vezes maior do que a média nacional. O 1% mais rico, incluindo esse 0,1%, apropriou-se de 25%, e os 5% mais ricos receberam 44%, quase a metade da renda total. Na Colômbia e nos Estados Unidos, a parcela do 1% mais rico na renda total situa-se em torno de 20%.”[15]

Não obstante as declarações em contrário da presidente Dilma, as medidas anunciadas pela sua equipe econômica, e que já começaram a serem postas em prática, estão agravando a situação econômica e as condições sociais tanto dos setores contemplados com a concessão da “bolsa família” e outras “políticas compensatórias” quanto da maioria dos trabalhadores brasileiros, de uma maneira geral.

 Se durante o primeiro mandato da presidente Dilma, a reforma agrária ficou estagnada, com Katia Abreu no Ministério da Agricultura, está claro que não haverá avanços nesse sentido e que os interesses do agronegócio serão cada vez mais favorecidos em detrimento dos anseios de milhões de trabalhadores que lutam pela terra e contra a devastação da natureza promovida pelo grande capital, contando com os incentivos governamentais.

Da mesma forma, cresce o desemprego e acentua-se a desindustrialização do Brasil, aumenta a inflação e a carestia atinge cada vez mais o nível de vida de amplas camadas da população brasileira.

O discurso ideológico voltado para a falsificação da História

Embora até recentemente o assistencialismo tenha sido bastante eficaz na garantia da continuidade das políticas neoliberais e da manutenção do sistema capitalista, o reformismo burguês praticado pelos governos de Lula e Dilma não pôde prescindir do discurso ideológico para justificar sua atuação. Não bastou apelar para a simbologia de um operário ex-metalúrgico e de uma mulher ex-guerrilheira na presidência da República pela primeira vez na história do Brasil.

Tornou-se necessário justificar o presente apelando para o passado e falsificando a história. Busca-se no passado a justificativa para o presente. Tenta-se, assim, apresentar os atuais governantes como continuadores das lutas do passado, como herdeiros dos líderes revolucionários do passado, como paladinos de ideias avançadas e progressistas. Torna-se conveniente disfarçar-se de progressistas, ou, em certos casos, de marxistas para melhor encobrir a orientação antipopular da política dos atuais governantes.

É assim que intelectuais e dirigentes de partidos governistas, tanto do PT quanto do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) – estes disfarçados de marxistas -, “inventam” uma história das lutas do povo brasileiro conforme seus desígnios inconfessáveis. As lideranças do PT costumam recorrer ao “possibilismo conservador”, ou a “um falso realismo” (Boron, 2008: 79-82; 2010: 83), para justificar as políticas adotadas pelos seus governos, apresentando-as como as únicas viáveis nas atuais condições do mundo e do Brasil, na tentativa de explicar o canhestro reformismo burguês que praticam. Enquanto isso, os dirigentes do PCdoB vão mais longe, na defesa de sua prática oportunista, ao propagandearem que estaríamos diante do “partido do socialismo” e aparentarem fidelidade aos clássicos do marxismo. Um partido que, entretanto, realiza políticas que favorecem o agronegócio e a entrega do petróleo brasileiro às multinacionais.  Um partido que falsifica sua própria história, ao negar seu surgimento, em 1962, resultado de uma cisão do PCB (Partido Comunista Brasileiro), e datá-lo de 1922, quando foi fundado o Partido Comunista (Seção Brasileira da Internacional Comunista). Assim, em 2012, o PCdoB comemorou os 90 anos de um partido que não é o seu.

Da mesma forma, deputados, senadores, prefeitos e governadores, assim como dirigentes dos partidos governistas, se apropriam da memória de lideranças revolucionárias como Luiz Carlos Prestes, Olga Benario Prestes, Gregório Bezerra, Carlos Marighella, para tentar melhorar sua imagem desgastada e seu crescente desprestígio diante das novas gerações. Para fazê-lo com algum sucesso precisam falsificar a história de luta desses homens e mulheres, admirados por seu heroismo, distorcendo sua atuação e esvaziando-a de qualquer conteúdo revolucionário. Tratam de transformar esses lutadores admiráveis em figuras aceitáveis até mesmo pelas classes dominantes, que eles sempre combateram.

Pudemos assistir à demagógica devolução do mandato de senador a Luiz Carlos Prestes, promovida pelos parlamentares dos atuais partidos governistas, assim como dos mandatos dos deputados comunistas cassados em 1948. Se Prestes estivesse vivo, jamais aceitaria as homenagens hipócritas desses senhores, cuja atuação política foi por ele combatida severamente até falecer em 1990. Outros exemplos desse tipo poderiam ser citados.

Ao se completarem 90 anos do início da Coluna Prestes, lembrados em 2014, dirigentes dos partidos governistas transformaram esse episódio glorioso das lutas do povo brasileiro em um valioso filão a ser explorado para melhor se disfarçarem de avançados, de progressistas ou até mesmo de marxistas, como é o caso dos políticos do PCdoB. Foram organizadas homenagens no Congresso Nacional, em assembleias estaduais e câmaras municipais, assim como caravanas pelo país, com o objetivo de manipular a história dessa epopeia brasileira, cujos feitos mal conhecem, difundido versões falsas a seu respeito e retirando desse movimento o seu conteúdo de luta revolucionária contra o poder oligárquico então existente.

A Coluna Invicta, como também ficou conhecida na época, é apresentada como um episódio que merece a unanimidade da aprovação nacional. Falou-se, inclusive, na sua “institucionalização”, o que significaria torná-lo mais uma data a ser incluída no calendário de festejos nacionais. Um episódio transformado em celebração, desprovida de qualquer caráter de luta, e aplaudido por todos os brasileiros, indistintamente da posição de classe. Estamos diante de uma nova tentativa da transformar Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, numa liderança de todos os brasileiros, falsificando sua memória de líder dos trabalhadores, dos explorados e dos oprimidos; jamais dos exploradores e dos donos do capital.

O legado de Prestes

Diante da atuação oportunista (revisionista do marxismo), dirigida no sentido de reformar o capitalismo em vez de liquidá-lo, diante da falsificação da história das lutas e da memória das lideranças revolucionárias do passado, com o objetivo de justificar o reformismo burguês, o legado de Luiz Carlos Prestes adquire indiscutível atualidade.

Para Prestes, a emancipação econômica, social e política dos trabalhadores brasileiros deveria ser obra deles próprios. Para que isso se tornasse possível, considerava que os verdadeiros revolucionários teriam que contribuir para a mobilização, a organização e a conscientização dos diferentes setores populares, assim como para o surgimento de novas lideranças e novas organizações partidárias efetivamente comprometidas com a solução radical dos graves problemas nacionais.

 Surge, pois, a questão dos possíveis caminhos a percorrer para que sejam criadas as condições propícias à realização da revolução socialista. Em outras palavras, trata-se de criar formas de aproximação ou de transição que possibilitem tal percurso, ou seja, de alcançar objetivos parciais, que não constituam etapas de consolidação do sistema capitalista sob novas formas, mas momentos de um processo ininterrupto de acumulação de forças voltado para a constituição do que Antônio Gramsci denominava bloco histórico.

O conceito de bloco histórico, proposto por A. Gramsci – ou, em outras palavras, do sujeito-povo[16]– pressupõe: o momento político dessa aliança. “Sua constituição está assentada em classes ou grupos concretos definidos pela sua situação na sociedade, mas as ideias cumprem um papel fundamental no que se refere à sua coesão” (Bignami, s.d.:27). No bloco histórico há “uma estrutura social – as classes e grupos sociais – que depende diretamente das relações entre as forças produtivas; mas também há uma superestrutura ideológica e política” (idem). Gramsci escrevia nos Cadernos do cárcere que, segundo Marx, “uma persuasão popular tem, com frequência, a mesma energia de uma força material”. Tal afirmação, segundo o filósofo italiano,

conduz ao fortalecimento da concepção de “bloco histórico”, no qual precisamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais.(Gramsci, 2001:238)

Os elementos citados da concepção gramsciana de bloco histórico permitem perceber o frequente empobrecimento de tal conceito no âmbito dos partidos comunistas, pois esse fenômeno marcou, de uma maneira geral, grande parte do movimento comunista mundial. Nas fileiras do PCB (Partido Comunista Brasileiro), semelhante postura teve como resultado a subestimação pelo trabalho ideológico de formação teórica e política não só dos seus quadros, como também de lideranças populares. A incompreensão da necessidade de criar um bloco histórico contra-hegemônico, capaz de conduzir o processo revolucionário à vitória, condicionou o desarmamento ideológico e político dos comunistas diante do bloco histórico dominante e a inevitável capitulação frente ao reformismo burguês. (Prestes, 2010)

Ao pensarmos nas possíveis formas de aproximação da constituição do bloco histórico gramsciano (ou sujeito-povo), o legado de Luiz Carlos Prestes representa uma contribuição de grande atualidade. Ainda em 1967, por ocasião do VI Congresso do PCB, Prestes, ao expor sua concepção da estratégia da revolução brasileira, escrevia:

(…) Não lutamos pelo desenvolvimento capitalista, mas por um desenvolvimento econômico democrático e independente, que abrirá caminho para o socialismo. Atualmente, toda revolução anti-imperialista é parte integrante da revolução socialista mundial.

(…) Marchamos para uma solução revolucionária que repele o capitalismo como perspectiva histórica, mas não exige de modo imediato a passagem para o socialismo. Vamos conquistar um poder revolucionário das forças anti-imperialsitas e democráticas, que não terá ainda o caráter de ditadura do proletariado, mas será capaz de cumprir seu papel histórico e abrir caminho para o avanço ulterior, rumo ao socialismo.[17]

            Em posição minoritária dentro do Comitê Central do PCB, Prestes, seu secretário-geral, defendia uma tática de luta contra a ditadura militar, estabelecida no Brasil a partir do golpe de 1964, que viesse a constituir a “conquista de um governo revolucionário, democrático e anti-imperialista, capaz de abrir ao proletariado o caminho para o socialismo”. Segundo Prestes, “a luta contra a ditadura pode resultar não somente na liquidação do regime político semifascista, mas ir adiante e resultar na liquidação do próprio regime de capitalistas e latifundiários ligados ao imperialismo”.[18] O secretário-geral do PCB escrevia a respeito:

Esta não é uma hipótese abstrata, existem as premissas objetivas para que tal processo possa ocorrer. A crise em que o Brasil se debate não pode ser resolvida sem a realização de reformas profundas em sua estrutura, isto é, não pode ser resolvida a não ser pela revolução. A luta contra a ditadura pode adquirir um rumo tal que a derrocada desta leve consigo o próprio regime social existente. Para que tal hipótese possa acontecer, entretanto, é necessário que as forças que estão interessadas numa solução revolucionária – a classe operária, a pequena burguesia urbana e os camponeses – representem tal força dentro da frente antiditatorial e desempenhem tal papel na luta contra a ditadura que, ao derrubarem esta, estejam em condições de fazer prosseguir o processo de aprofundá-lo até que ele adquira um caráter revolucionário. (Idem)

            Mas Prestes aventava a possibilidade de outra hipótese:

A ditadura pode ser derrotada e liquidada sem que as forças revolucionárias da frente antiditatorial disponham de poder suficiente para fazer prosseguir o processo e instaurar, no lugar da ditadura, um poder revolucionário. Neste caso, o governo que daí surgir pode ser mais ou menos democrático, mais ou menos avançado, segundo a correlação concreta de forças que existir no momento de sua constituição. Neste caso, os comunistas poderão participar ou não deste governo, poderão apoiá-lo ou não, dependendo do caráter concreto que ele tiver. Participando ou não de um governo antiditatorial que se instalar no país, apoiando-o ou não, os comunistas continuarão a luta por seus objetivos revolucionários. (Idem)

                        As posições defendidas por Prestes, em sua luta contra o reformismo dominante no Comitê Central do PCB, são comparáveis às defendidas por Fidel Castro alguns anos mais tarde, ao discursar no Chile à época do governo de Salvador Allende:

            Um verdadeiro revolucionário procura sempre o máximo de mudanças sociais. Mas procurar um máximo de mudança social não significa que em qualquer momento se possa propor esse máximo, senão que, em determinado momento e considerando o nível de desenvolvimento da consciência e das correlações de forças, pode-se propor um objetivo determinado. E uma vez conquistado esse objetivo, propor-se outro objetivo mais à frente. O revolucionário não tem compromisso de ficar parado no caminho.[19]

Obrigado a permanecer no exílio, devido à violenta repressão desencadeada contra os comunistas pelos governos de Emílio G. Médici e Ernesto Geisel, Luiz Carlos Prestes seria levado a elaborar com maior precisão suas concepções sobre as formas de transição ou aproximação a um poder efetivamente revolucionário:

A conquista de um regime democrático não deverá significar (…) uma simples volta ao passado. A frágil e vulnerável democracia de 1964 não corresponde mais aos anseios do povo. A luta de todos os patriotas e democratas só pode ter por fim a derrota definitiva do fascismo e a inauguração de uma nova democracia, que assegure amplas liberdades para o povo, uma democracia econômica, política e social, que possibilite a solução dos problemas nacionais mais graves e imediatos.[20]

            A seguir Prestes esclarecia o conteúdo dessa nova democracia por ele proposta:

Trata-se da conquista de uma democracia que seja estável, que impeça a volta ao fascismo. Para isso, a nova democracia terá que tomar medidas que limitem o poder econômico dos monopólios e dos latifundiários e que se orientem no sentido de sua completa liquidação. (…) A nova democracia deverá ser o regime estabelecido por um governo das forças da frente única patriótica e antifascista, abrirá caminho para as profundas transformações de caráter democrático e anti-imperialista, já hoje exigidas pelo sociedade brasileira. (Idem; grifos meus)

            Ao fazer uma apreciação crítica dos erros cometidos pelos comunistas brasileiros em 1935, Prestes assinalava que, “em vez de reforçar a frente popular, anti-imperialista e antifascista, de prosseguir acumulando forças, mediante a luta de massas, em defesa das liberdades democráticas e contra o fascismo, nos lançamos prematuramente à luta pelo poder”. Acrescentava ele que esta era uma lição da maior atualidade, pois explicava “a derrota dos grupos utra-esquerdistas” que combatiam a ditadura no Brasil. Prestes afirmava:

É lutando pelas liberdades democráticas, pelas reivindicações dos trabalhadores, pelos “interesses econômicos e políticos imediatos da classe operária”, conforme as palavras de Dimitrov em seu memorável Informe ao VII Congresso da Internacional Comunista, lutando enfim contra a ditadura (…) é nesse processo difícil e demorado, que não admite nenhuma precipitação ou aventura, que unificaremos as forças antiditatoriais e organizaremos a frente única capaz de isolar e derrotar a ditadura.[21]

            Após destacar a contribuição do revolucionário búlgaro para o combate ao radicalismo esquerdista, Prestes apontava no seu legado a atualidade das teses que, ao resgatar as indicações de Lenin, afirmavam a importância das “formas de transição que conduzem à revolução”. Segundo Dimitrov, os oportunistas de direita “inclinavam-se a estabelecer uma certa etapa intermediária democrática”, quer dizer, uma nova etapa, que, de acordo com Prestes, “no caso brasileiro, seria entre a ditadura da burguesia e o governo revolucionário. O que inevitavelmente leva ao abandono, na prática, da bandeira revolucionária do Partido, sem a qual não é possível ao proletariado conquistar a hegemonia na frente única antiditatorial”. (Idem)

            Ao procurar definir melhor o que seria no Brasil “esse governo de transição para a conquista do governo revolucionário”, Prestes afirmava que tal governo

surgirá como aquele capaz de assegurar o desenvolvimento independente da economia nacional, será um governo de luta contra o imperialismo e a reação, de defesa da soberania nacional, o que exigirá tomar medidas contra o latifúndio e a dominação imperialista e preparar as massas para enfrentar a contrarrevolução. (Idem)

            Na mesma ocasião, Prestes postulava a luta por

um novo regime revolucionário que abra um caminho de desenvolvimento da sociedade, que, sem ser ainda socialista, rompe decididamente os moldes clássicos da estrutura capitalista e determina uma nova correlação de forças internas da sociedade. Ou, para citarmos o grande Lenin: “(…) Não seria ainda o socialismo, mas já não seria o capitalismo. Representaria um passo gigantesco para o socialismo”. (Idem)

            Alguns anos mais tarde, ainda se encontrando no exílio, Prestes viria a reafirmar a tese da luta pela conquista de um novo tipo de democracia, que não significasse uma volta ao passado, ou seja, à democracia liberal, mas uma forma de transição a um poder revolucionário:

A única forma de consolidar a vitória das forças antifascistas, impedindo a volta ao odioso sistema de opressão, será o estabelecimento de um novo tipo de democracia. Será um regime que representará os interesses das forças aglutinadas na frente patriótica e antifascista, constituindo uma forma de transição ao poder revolucionário nacional e democrático, ou seja, antimonopolista e anti-imperialista. Este regime democrático deverá garantir amplas liberdades para todas as forças antimonopolistas e iniciar o processo de limitação do poder dos monopólios, principalmente dos norte-americanos.[22]

            Prestes insistiria na tese de que os comunistas deveriam empenhar-se para que no país se estabelecesse “um novo tipo de democracia, mais avançado que a democracia burguesa, e que se constitua numa ‘forma de transição’ ao poder nacional e democrático”.[23] Embora isolado dentro da direção do PCB (PRESTES, 2012), Prestes manter-se-ia firme no combate às tendência reformistas, defendendo permanentemente a tese de que, na luta pelas liberdades democráticas, os comunistas deveriam bater-se por um regime mais avançado, que permitisse criar as condições para a revolução socialista:

Ao lutarmos por uma saída democrática para a situação atual do país, apoiaremos qualquer regime que possa surgir em consequência da derrota do fascismo, desde que assegure a vigência das liberdades democráticas e os direitos dos trabalhadores. Em quaisquer circunstâncias, continuaremos nos batendo por um regime mais avançado, por uma democracia que não seja apenas política, mas também econômica e social e prepare as condições para a futura chegada ao socialismo, nosso objetivo supremo. Entendemos que, ao lutar hoje contra o fascismo e pela democracia, estamos preparando as massas trabalhadoras para a conquista de um poder nacional e democrático, que abrirá caminho para o socialismo.[24]

            As ideias defendidas por Prestes quanto às formas de aproximação a um poder revolucionário, capaz de abrir caminho para as transformações de caráter socialista, não perderam a validade para a realidade política de hoje enfrentada pelas forças de esquerda no Brasil, empenhadas em fazer o processo revolucionário avançar em nosso país.

A situação atual

Como já foi por mim aludido, após mais de dez anos de continuidade de políticas de corte neoliberal, aplicadas pelos governos do PT e seus aliados, a partir de junho de 2013, grandes manifestações tiveram lugar no Brasil. Foram protestos contra diversos aspectos da situação crítica existente no país no que diz respeito aos transportes públicos, à saúde pública, à educação pública, aos gastos exorbitantes com a preparação da Copa do Mundo, etc. Protestos desorganizados e carentes de lideranças e de projetos definidos, protestos não só de jovens, mas de amplos segmentos sociais, indignados com a incúria dos governos e dos partidos existentes, com a corrupção generalizada, a desmoralização e o descompromisso dos políticos frente aos seus eleitores e, por fim, com a violência policial desencadeada contra os manifestantes.

            Diante do inesperado dessas manifestações populares, explica-se o entusiasmo revelado por muito daqueles que se consideram de esquerda e apostam nas mobilizações populares como meio de avançar no caminho das profundas transformações sociais e políticas necessárias para a conquista de um futuro de justiça social e democracia para o nosso povo.

Se entendermos que, para atingir tal futuro, é indispensável trilhar o caminho de conquista de um poder popular revolucionário, capaz de iniciar mudanças que apontem rumo ao socialismo, concluiremos que se trata justamente de elaborar uma proposta que contemple formas de transição a tal poder num processo de construção do bloco histórico, ou sujeito-povo, contra-hegemônico, habilitado a conduzir as transformações revolucionárias que se fazem hoje necessárias.

            Considerando o nível de espontaneidade e desorganização em que se encontram os setores populares hoje no Brasil, seria viável propor de imediato a conquista de um poder popular? Seria viável, no momento, realizar uma reforma política que contemplasse as demandas populares? Seria possível, num futuro próximo, a eleição de uma Constituinte, comprometida com os interesses dos trabalhadores?

            Como alcançar tais objetivos sem avançar na construção do bloco histórico (ou sujeito-povo) ou, em outras palavras, das forças sociais e políticas organizadas e conscientes do seu papel transformador e, por isso, possuidoras de um projeto que as unifique em torno de metas viáveis para o Brasil de hoje?

            As respostas a essas questões ficam evidentes, quando entendemos que estamos diante de um processo de longa duração de mobilização, organização e conscientização dos trabalhadores e dos setores populares de uma maneira geral. A partir das reivindicações específicas de cada um desses setores, quem se considera de esquerda deverá agir para que, através de tal ação paciente e constante, cheguemos à formação do bloco histórico contra-hegemônico, unificado por um projeto de transformações revolucionárias elaborado no calor das lutas populares por suas reivindicações e plasmado com a contribuição teórica dos intelectuais marxistas comprometidos com a revolução socialista no Brasil. Um projeto que deverá incluir a formação de partidos revolucionários aptos a conduzir as lutas pela conquista de um poder popular, com a consequente convocação de uma Constituinte efetivamente representativa dos setores populares.

            A experiência histórica das lutas populares em diversos lugares do mundo, assim como em nosso país, é reveladora de que as posturas voluntaristas – a pressa característica do açodamento pequeno-burguês – não contribuem para acelerar as transformações revolucionárias pretendidas. Pelo contrário, retardam o processo de constituição das forças sociais e políticas habilitadas a conduzir as massas trabalhadoras à conquista de formas de aproximação do poder revolucionário, isolando as pretensas vanguardas, que, sem apoio popular, são levadas à derrota, como aconteceu por ocasião da derrubada de João Goulart com o golpe civil-militar de 1964.

            O legado de Luiz Carlos Prestes, ao apontar para a necessidade de considerar possíveis formas de transição ou de aproximação ao poder revolucionário, que venha a abrir caminho para a revolução socialista, constitui uma contribuição valiosa para as forças de esquerda que hoje estão empenhadas na luta por transformações profundas da sociedade brasileira, na luta por mudanças que não sirvam aos desígnios dos políticos das classes dominantes, interessados em que “tudo mude para que tudo permaneça como está”, conforme a célebre fórmula do “O Leopardo” de Lampeduza. [25]

 

 

 

*Anita Leocadia Prestes é doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes www.ilcp.org.br.

 

Referências bibliográficas

ABREU, Alzira Alves de e BELOCH, Israel et al. (coord). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. 2ª ed. V. I. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2001.

BIGNAMI, Ariel. El pensamiento de Gramsci: una introduccion. 2ª ed. Buenos Aires, Editorial El Folleto, s.d.

_____________. Intelectuales & revolución o el tigre azul. Buenos Aires, Acercándonos Ediciones, 2009.

BORON, Atílio A. Socialismo siglo XXI Hay vida después del neoliberalismo?  Buenos Aires, Ed. Luxemburg, 2008.

______________. “Estudio introductorio”, in: LUXEMBURGO, Rosa. Reforma social o revolución? Buenos Aires, Luxemburg, 2010.

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. 2ª ed. Volume 1. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2001.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 14ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1981.

LUXEMBURGO, Rosa. Reforma social o revolución? Buenos Aires, Ed. Luxemburg, 2010.

PCB: vinte anos de política (1958-1979) (documentos). São Paulo, LECH-Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.

PRESTES, Anita Leocadia.  “Antônio Gramsci e o ofício do historiador comprometido com as lutas populares”, Revista de História Comparada, v.4, n.3, dez.2010, p. 6-18.

_____________________. Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990). São Paulo, Expressão Popular, 2012.

[1] LENIN, V. I., “Las vicisitudes históricas de la doctrina de Carlos Marx” (publicado con la firma de V.I. el 1 de marzo de 1913 en el num. 50 de Pravda), in LENIN, V. I. Contra el revisionismo.  Moscu, Ed. en Lenguas Extranjeras, 1959, p. 158; destaques do autor. (Tradução do espanhol para o português de PRESTES, A. L.).

[2] MARX, C. “Tesis sobre Feuerbach”, in MARX, C. & ENGELS, F. Obras escogidas en tres tomos.Tomo I, Moscú, Ed. Progreso, 1976, p. 7-10.

[3] PRESTES, Luiz Carlos, “Um ‘poder’ acima dos outros”, Tribuna da Imprensa, RJ, 28/9/1988.

[4] “Dilma  é  reeleita  na  disputa  mais  apertada  d a história; PT ganha  4º  mandato”, UOL, São Paulo, 26/10/2014, in

<http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/10/26/dilma-cresce-na-reta-final-e-reeleita-e-emplaca-quarto-mandato-do-pt.htm>

[5]  Cf. Carta Capital, nov., dez. /2014, jan., fev./2015 in http://www.cartacapital.com.br/; Carta Capital,

 22/5/2015 in http://www.cartacapital.com.br/economia/ajuste-fiscal-governo-anuncia-corte-de-69-9-bilhoes-de-reais-do-orcamento-6830.html

[6] O Globo, RJ, 23/7/2015, p. 19.

[7] REVISTA FORUM, janeiro 21, 2015.

[8] COSTA, Afonso, “Governo negocia mais concessões para o capital e susta o impeachment”, 13/8/2015, in http://pcb.org.br/portal2/9066;  MONTEIRO, Fabio e CUCOLO, Eduardo, “Crescimento é centro de nova fala de Levy”, Folha de S. Paulo, 16/8/2015, mercado,  p. 3; FREIRE, Vinicius Torres, “Empresários doam água fria”, Folha de S. Paulo, 16/8/2015, mercado, p. 4.

[9]  Folha de S. Paulo, 8/8/2015, in <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/08/1666207-para-presidente-do-bradesco-crise-e-grave-e-solucao-exige-grandeza.shtml>

[10]  “Entrevista de Roberto Setubal”, Folha de S. Paulo, SP, 22/8/2015, p. A23 e A28.

[11]  Folha de S. Paulo, SP, 13/9/2015.

[12] “Grau de investimento: entenda o que significa o rebaixamento do Brasil”, acesso em 19/9/2015 in http://www.ebc.com.br/noticias/economia/2015/09/grau-de-investimento-entenda-o-que-significa-o-rebaixamento-do-brasil

[13] VILELA, Pedro Rafael, “Ajuste fiscal do governo poupa os mais ricos, afirma economista”, Brasil de Fato, 18/9/02015, acesso 19/9/2015 in http://www.brasildefato.com.br/node/32979

[14] VOLPE, Ana, “Imposto sobre lucros e dividendos geraria R$43 bi ao ano, diz estudo”, acesso 19/9/2015 in http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2015/09/14/imposto-sobre-lucros-e-dividendos-geraria-r-43-bi-ao-ano-diz-estudo; ROSSI, Pedro, “A democracia não cabe no orçamento”, Brasileiros, n. 98, set/2015, p. 59.

[15] DRUMMOND, Carlos, “O risco forte de recessão”, Carta Capital, 1/2/2015, in <http://www.cartacapital.com.br/>

[16] Sujeito-povo: categoria empregada por alguns intelectuais latino-americanos, relacionada com o conceito gramsciano de bloco histórico, ou seja, sujeito-povo expressa não só a soma numérica de diversos setores sociais, mas também é portador de novos valores culturais e constitui uma alternativa de poder (cf., por exemplo, BIGNAMI, (2009: 23, 26, 28 e 107).

[17] “Informe de Balanço do CC ao VI Congresso (dez. 1967)” (PCB, 1980: 97; grifos meus).

[18] ALMEIDA, Antônio (pseudônimo de Prestes). “Carlos Marx e o marxismo”, Voz Operária, 1968, n. 41, p. 8.

[19] CASTRO RUZ, Fidel. Fidel en Chile. Textos completos de su diálogo con el pueblo. Santiago, Quimantú,1972, p. 90; apud BORON (2010: 74); grifos meus. (Tradução do espanhol para o português de PRESTES, A. L.).

[20] “Manifesto de Prestes” (29/10/1974), Voz Operária, suplemento, dez. 1974, n. 118; grifos meus.

[21] PRESTES, Luiz Carlos. “Intervenção em Seminário dedicado ao 90º aniversário natalício de Jorge

Dimitrov”, documento datilografado, 10 p., Sófia (Bulgária), 18/6/1972 (arquivo particular da autora).

[22] “Intervencion del delegado de Brasil”, documento datilografado, 17 p., jun. 1975 (arquivo particular da autora); grifos meus.

[23] “Informe Político” (discutido e aprovado na reunião do CC do PCB de dezembro de 1975), folheto mimeografado, 33 p. (arquivo particular da autora), pp. 32-33; grifos meus.

[24] “Projeto de Resolução Política” (ass. O Comitê Central do PCB, fev. 1977). Documento datilografado, 12 p. (arquivo particular da autora); grifos meus. [Este projeto foi rejeitado pela Comissão Executiva do CC do PCB.]

[25] “O Leopardo”, romance famoso de G.T. de Lampeduza, retrata a capacidade de adaptação da nobreza da Sicília, na Itália do final do sec. XIX, diante da ascensão de uma nova classe – a burguesia.

Imagem tomada de: averdade.org.br

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