As negras do quintal

Existe trabalho doméstico ou estamos perante situações de escravidão doméstica?

As negras do quintal eram as mulheres que no séc. XIX/ XX viviam em situação de escravidão doméstica “voluntária” trabalhando sem remuneração, em troca de refúgio e um prato de comida.

Estas mulheres, muitas vezes ainda meninas, eram entregues a famílias abastadas devido às situações precárias dos próprios pais, que sem condições para criá-las, deixavam-nas à mercê da sorte (ou azar) vivendo num canto qualquer do quintal de um casarão.

Como escravas trabalhavam toda a vida com a sua identidade alienada, sem espaço para desenvolver vontade própria ou definir objetivos pessoais. Para além de trabalharem nas tais casas, os seus “patrões” podiam ceder algumas horas do seu tempo a outras famílias e assim fazer dinheiro com a mão-de-obra das suas negras, como se de um aluguer se tratasse. Isso permitia que os patrões tivessem algum “retorno” do investimento tido no sustento e “treino”da sua funcionária.

Avançamos para o séc. XXI e olhando ao nosso redor vemos uma nova versão dessas negras do quintal nos nossos prédios, nos nossos bairros; nos quartinhos de fundo ou mesmo no chão da sala.

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O trabalho doméstico tem origem escravagista (Fonte: Nã0 Me Kahlo)

Durante a época colonial ter empregados domésticos era um sinal de prestígio por ser um privilégio de poucos. E para os empregados era uma oportunidade para aprenderem e viverem como cidadãos dignos, aproximando-se ao ideal de “colonizado domesticado”, que apesar de explorado tece uma admiração profunda pelo seu colonizador, uma situação complicada que nos remete à Síndrome de Estocolmo.

Para as vilas e cidades, onde vivia a maior parte das famílias privilegiadas, afluíam sobretudo jovens migrantes do meio rural, em troca de abrigo e comida na esperança de alguma ascensão social. Alguns deles puderam se assimilar, ou se não eles, os seus filhos.

Depois da independência, com a urbanização das vilas e o crescimento das cidades, novamente do meio rural saíam jovens à procura de uma atividade assalariada e muitos a encontraram na forma de trabalho doméstico.

O trabalho braçal sempre esteve a cargo das camadas mais pobres e vulneráveis da população e por isso é visto como inferior. Por esse motivo, o trabalho doméstico é não só desvalorizado, mas menosprezado, evidente pela arbitrariedade na remuneração demasiado baixa; ilegalidades na contratação, jornadas de trabalho longas; assédio moral; abuso sexual e psicológico; entre outros.

Em Moçambique mais de um milhão de crianças são vítimas de trabalho infantil (Foto: Jornal Notícias )
Em Moçambique mais de um milhão de crianças são vítimas de trabalho infantil (Fonte: Jornal Notícias )

Não é por acaso que a esmagadora maioria das pessoas que exercem tais funções são mulheres negras provenientes de zonas rurais. Para muitas delas não foi uma escolha, mas sim uma necessidade que as levou a sair do seu local de origem.

Num contexto em que muitos jovens homens migram para outros países, como por exemplo a África do Sul, para trabalharem nas minas e raramente enviam o suficiente para a família, as mulheres vêem-se obrigadas a procurar alternativas para sair da situação de precariedade em que se encontram.

Isto, aliado ao fato de vivermos numa sociedade em que há tão poucas oportunidades de crescimento e desenvolvimento para as mulheres rurais, a possibilidade de garantirem a sua sobrevivência e dos seus filhos pode representar a única opção válida.

Estas mulheres desconhecem os seus direitos elementares, como privacidade e respeito e por isso facilmente aceitam as condições “oferecidas” pelos patrões na cidade. Outras, não têm voz na decisão pois tudo é negociado com os pais, sobre a desculpa de “ajudar a criar”. Assim, desde cedo começam a trabalhar se expondo a todos os tipos de violência, sem direito a educação nem acesso a serviços de saúde.

Enquanto isso os seus filhos continuam sem condições para sair da pobreza extrema em que se encontram, pois são criados na ausência dos pais, num meio em que a sua educação é negligenciada e não têm apoio emocional e psicológico para sequer sonhar.

A emancipação da trabalhadora doméstica segundo a artista Mary Sibande. Fonte: The Guardian
A emancipação da trabalhadora doméstica segundo a artista Mary Sibande (Fonte: The Guardian)

É possível ver como a lógica colonial se perpetuou até hoje, em tempos em que famílias de quatro ou mesmo três pessoas se dão ao luxo de ter duas empregadas ao seu dispor.

É comum agora vermos em restaurantes e mesmo festas e convívios familiares casais com as suas crianças e as respectivas babás, muitas vezes uniformizadas ou extremamente mal vestidas, destoando totalmente do ambiente para evidenciar que elas pertencem a outro espaço que não aquele.

Até nos domingos e feriados, para muitos pais os únicos dias que podem passar com os filhos, não conseguem dispensar a sua empregada para ela também gozar de um dia de descanso quiçá também ao lado dos filhos dela.

Os abusos são vários.

Quando viajam também levam consigo as empregadas e raramente pagam aquilo que deviam por isso. É normal em qualquer outro emprego receber-se um valor per diem que cobre pelo menos o dinheiro para a alimentação, estadia e transporte, contudo sabemos que para as empregadas domésticas não é assim, elas raramente sequer escolhem o que vão almoçar.

Se forem empregadas domésticas que dormem no local de serviço, é esperado que elas estejam disponíveis 24h por dia, muitas vezes sem um horário fixo. Porquê? Um engenheiro a trabalhar numa estação petrolífera segue um horário, o mesmo para um marinheiro em alto mar.

E mais, haverá de fato necessidade de ela dormir no local de emprego? Que tarefas precisam de ser feitas à noite que os pais não podem fazer? Será que ela não precisa de estar com a própria família?

O trabalho doméstico é onde sexismo e classismo se convergem (Fonte: Miss Milli B)
O trabalho doméstico é onde sexismo e classismo se convergem (Fonte: Miss Milli B)

As negras do quintal mudaram de nome, mas continuam aqui. São as empregadas domésticas, as babás, as secretárias do lar; as ajudantes; etc. São as mulheres que oprimimos em nome da nossa própria ascensão social.

São as mulheres que “são como se fossem da família”, mas a quem privamos de ter uma vida social saudável, manter relações românticas, buscar uma carreira ou prosseguir os estudos. São as mulheres que desde cedo vivem conosco, mas em locais pequenos, pouco arejados e menos confortáveis; vestem as nossas roupas velhas e comem somente aquilo que nós deixamos. São as mulheres que recebem o nosso mau humor de braços abertos, trabalham horas extras sem reclamar e ainda nos põem os filhos para dormir.

Mesmo de forma disfarçada, a verdade é que estas mulheres têm os seus direitos básicos sistematicamente vedados. É uma opressão disfarçada em laços afetivos, já que tratamos o trabalho que fazem com demasiada informalidade e pintado num discurso de caridade e familiaridade.

Estas mulheres, as “negras do quintal”, são invisíveis à nossa vivência burguesa que consegue pagar viagens mas não paga salários dignos. 

Fonte: Escreve Eliane, Escreve.

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