As negações de Inaiê e da deusa Hera. Por Carlos Weinman.

Imagem: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

Um menino desce aos tombos do monte do Olimpo, empurrado por sua mãe, a grande senhora dos deuses, a deusa Hera, poderosa e, por esse motivo, incapaz de aceitar o ser que saíra do seu ventre, em seu julgamento a divindade concluíra que tal ser seria uma vergonha para os majestosos e poderosos deuses Hera e Zeus, mas o menino sobreviveu, quebrou uma perna e foi marcado por toda sua vida, seu nome na mitologia ficou conhecido como Hefesto, cuja trajetória perpassa pela mitologia, ganhando várias formas, demonstrando a capacidade humana de afastar aqueles que são considerados diferentes, quanto mais poderosos são os seres, como no caso dos deuses gregos, que eram semelhantes nos defeitos e qualidades dos humanos, maior é a capacidade de repudiar e agir com violência contra o que é visto com estranheza. No caso da deusa Hera, o filho era sadio, o que traz a questão: qual motivo de jogar seu filho do monte do Olimpo? A sua exclusão foi justificada por ser dotado de uma feiura sem comparação. Entretanto, qual o critério para definir algo ou pessoa como bonita ou feia? A qualificação pode ser vista como uma forma de violência? O enxotar do monte do Olimpo seria uma forma simbólica de repudiar aqueles que não cabem em nossos conceitos?

A deusa Hera, ao jogar seu filho do Olimpo, não percebeu que ele já fazia parte do seu ser, inclusive a definia. Dessa maneira, ao repudiar o ser que se apresentava, negligenciou uma vida ligada a sua. O menino que no aspecto físico não a agradava, demonstrou uma capacidade inventiva e criativa enorme, com a habilidade de forjar, promovia várias criações, tornou-se o deus da indústria, o deus ferreiro, procurado por todos os outros deuses.

O ser humano, do mesmo modo como a deusa Hera, tem o poder de negar, de repudiar, o que gera consequências nefastas, já que ao repelir os outros, o indivíduo perde algo de si, caso as negações passam ser costumeiras e intensas, o humano perde o seu lugar, restando apenas um corpo vivente, desprovido do espírito que caracteriza a humanidade.

O mito de Hefesto pode levar a reflexão sobre a construção dos conceitos e como agimos através deles. Não obstante, antes dos conceitos que um ser humano recebe durante a vida, temos as sensações, ligadas a capacidade de sentir, de perceber, através do nosso espírito, o modo como o mundo em nossa volta se apresenta, misturado com a interioridade, dado que o ser humano tem a percepção de dois mundos, ou melhor, a interioridade e o mundo externo. É fato que as sensações e sentimentos tem uma causa, um princípio, já o discernimento ou clareza sobre esse fenômeno não é evidente. Para o entendimento há necessidade de um exercício reflexivo, que pode ser comprometido pela intensidade causada ao espírito humano, havendo a necessidade da ajuda de outros.

Todavia, sair do esconderijo da pequenez do ser é difícil, obstáculos constituídos por conceitos, que se apresentam como grandes muralhas, atrapalham o julgamento e a clareza de pensamento. O sentir se mistura com uma racionalidade calculista. Por esse motivo, não é raro um ser humano acusar o outro pelo absurdo, pelo preconceito, mas como a contradição é um privilégio dos humanos, dotados da linguagem, o preconceito pode não estar nos outros, apenas envolvido na pequenez do ser, o que leva a uma situação de acusação e intensas batalhas.

As histórias da negação se apresentam no cotidiano das pessoas e não estão apenas ligadas a grandes personalidades, como é o caso da deusa Hera para os antigos gregos. Um exemplo disso está na negação presente na história dos viajantes da ferrugem dos esperançosos. Visto que quando a Combi foi levada até a oficina, que ficava em uma cidade pequena de Mato Grosso, próxima de Cuiabá, a capital do Estado, Inaiê olhou para a responsável da oficina e teve uma sensação, uma desconfiança, falou no ouvido de Ulisses:

– Você tem certeza de que podemos deixar a combi aqui para os reparos, você confia nela?

Ulisses estranhou a atitude da irmã e perguntou:

– Qual o motivo de você estar desconfiada dessa pessoa em particular?

Inaiê respondeu:

– Não sei direito, mas estou com pressentimento, uma sensação ruim.

Enquanto caminhavam em direção ao hotel, que ficariam hospedados até o conserto da combi, Ulisses demostrou que ficou muito decepcionado com a irmã e voltou a questionar:

Inaiê você está cometendo um grave erro, como pode fazer um julgamento sobre uma pessoa que você não conhece, estás estabelecendo que ela não é de confiança, logo você que faz parte do mundo dos estranhos?

Inaiê diferente de outros momentos não pensou duas vezes e respondeu imediatamente:

 – Justamente por isso, faço parte do mundo dos estranhos, já sofri muitas consequências, aprendi que em determinadas pessoas não podemos confiar.

Nesse momento, Roberto falou:

Qual foi o critério que você estabeleceu que poderia confiar em mim?

Inaiê ficou quieta por alguns segundos, estava imbuída em mostrar que tinha razão, seu semblante estava alterado, falou mais alto do que normal:

A sua aparência gera confiança, eu e Ulisses nos identificamos contigo. Ela, por sua vez, deve ter muitos preconceitos, olha a roupa que ela estava vestindo!

Nesse momento, Ulisses interrompeu a irmã:

 – Como podemos julgar pela aparência? Qualquer um poderia questionar o nosso modo de vestir! Você deduziu que ela é preconceituosa por esse motivo? Você sabia que sua irmã era muito parecida com ela? Ela tem o mesmo jeito de andar, vestir, levei um susto quando a vi! Sei que foi apenas uma impressão, pois nossos irmãos estão no Sul do país. Agora, as pessoas não podem ser julgadas pelas aparências!

Inaiê percebeu que estava errada e falou:

Vocês estão certos, levei os meus sentimentos, minhas sensações e impressões como verdades. Ainda bem que vocês “me chacoalharam”! Aliás, estava buscando várias formas para mostrar que estava certa, as minhas sensações estavam erradas, muitas vezes a razão está a serviço da sensação e da emoção. Essas nem sempre estão equivocadas, mas quando estão podem levar ao erro, reduzimos a nossa percepção de mundo ao nosso “pequeno mundinho”, mergulhamos no simplório por ignorar os outros.

Os três riram e foram ao hotel. No dia seguinte, os três foram acompanhar o conserto da ferrugem dos esperançosos. Inaiê começou a conversar com a responsável da oficina. Essa se apresentou para Inaiê dizendo:

Oi, sou Deméter! Vamos levar uns dois dias para terminar a combi, mas enquanto o pessoal trabalha no veículo, podemos conversar um pouco. Vocês três são irmãos? Vocês são de que lugar?

Roberto respondeu:

Ulisses e Inaiê são, eu sou amigo dos dois. Somos viajantes do mundo, sem lugar definido. Os dois irmãos estão buscando a família no Sul.

Nesse momento Deméter falou:

Será? Você Ulisses tem muita semelhança com um dos meus irmãos, que a muito tempo não vejo. Por sinal, meu pai gostava de muitos nomes da mitologia e da história antiga grega, igual ao seu. A última vez que vi minha família foi quando fui parar no abrigo, diante da perda de meus pais.

Com o coração batendo muito forte, Ulisses perguntou:

– Qual era o nome e sobrenome do seus pais?

Deméter rapidamente respondeu, tendo a sensação de que encontrara um membro da família:

– Minha mãe era Iara e o meu Pai Abdul Whamurai.

Assim que Deméter terminou de falar, Ulisses a abraçou, chorando disse:

Nós somos irmãos, nunca imaginei que a encontraria!

Os quatro começaram a conversar, Inaiê percebeu que agiu com preconceito e negação com sua irmã, não reconheceu no seu semblante as marcas da estranheza, pois as histórias das pessoas não estão estampadas, para conhecer o outro o diálogo é necessário, para isso é importante se despir de todos os preconceitos. Enquanto conversavam, Deméter tomou a decisão de partir junto com seus irmãos.

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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

 

 

 

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