“As mulheres só serão livres se acabarmos com o capitalismo”, diz militante feminista

Maria Júlia Montero, da Marcha Mundial das Mulheres, fala sobre as mobilizações previstas para o próximo 8 de março

Feminismo anti-capitalista | No próximo 8 de março, a Marcha Mundial das Mulheres completa 20 anos – Foto: Flickr/MMM.

Por Lu Sudré.

Em meio a um aumento da violência contra as mulheres e de casos de feminicídio, agravadas pelas constantes declarações machistas do governo Bolsonaro, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) se organiza para o 8 de março, Dia Internacional de Luta da Mulher. A data marca os 20 anos de criação da organização feminista. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, Maria Júlia Montero, militante da MMM, explica que a Marcha ocupará as ruas no próximo domingo (8) com a palavra de ordem “Fora Bolsonaro”, em defesa do trabalho digno, da democracia e da justiça por Marielle Franco, vereadora assassinada brutalmente há quase dois anos.

“Uma pauta central neste 8 de março é o ‘Fora Bolsonaro’. Não é só contra ministro X ou Y, ‘Fora Guedes’ ou ‘Fora Damares’. Queremos esse governo todo fora, não tem salvação. Esse governo inteiro é um retrocesso para as mulheres. Já vínhamos afirmando e isso se torna cada vez mais claro. É um governo fascista”, analisa Montero.

Segundo a militante feminista, as condições de trabalho das mulheres estão cada vez mais precárias, resultado do machismo estrutural e de uma política neoliberal que vem sendo adotada no país nos últimos anos.

A precarização do trabalho doméstico das mulheres também está cada vez pior. Segundo relatório recente da Oxfam, mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado. Se fossem remuneradas, isso significaria uma contribuição de, pelo menos, US$ 10,8 trilhões por ano para a economia global, o triplo do valor gerado pela indústria tecnológica, por exemplo.

Em razão dos 20 anos da Marcha, Maria Júlia destaca que a grande contribuição da organização é a articulação de um movimento feminista anticapitalista e internacional, que quer uma mudança radical e total da sociedade.

“Sabemos que as mulheres só serão realmente livres se acabarmos com o sistema capitalista, com o patriarcado e com o racismo. Na nossa visão, esses três sistemas atuam como um só: O capitalismo é patriarcal e racista. Só temos como acabar de fato com o patriarcado e com o racismo, se acabamos com o capitalismo. Só temos como acabar com o capitalismo se também fizermos esse movimento inverso de pautar a destruição do patriarcado”, defende Montero.

Em nível internacional, a Marcha também pautará a atuação das empresas transnacionais capitalistas e seus impactos negativos na vida das mulheres. A organização feminista também se prepara para sua 5ª Ação Internacional, a ser realizada em maio junto com a jornada anti-imperialista, com o tema “Resistimos para viver, marchamos para transformar”.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato – Qual mote a Marcha Mundial das Mulheres levará para o 8 de março este ano?

Maria Júlia Montero – Temos um mote internacional que é a chamada para a nossa 5ª Ação Internacional: “Resistimos para viver, marchamos para transformar”. Nesse sentido, estamos apontando o que somos contra, contra o que resistimos, mas também falamos sobre as nossas alternativas, sobre nossas possibilidades de transformação.

Aqui no Brasil, especificamente, estamos puxando o Fora Bolsonaro, exigindo trabalho digno, liberdade e democracia, para além de justiça para Marielle. Mas com centralidade no Fora Bolsonaro.

E em nível internacional, o que está sendo articulado?

Basicamente temos muito forte o tema da violência contra as mulheres. Esse ano, temos trazido também a questão das transnacionais. Considerando que elas são agentes diretas do capital, que se aliam às elites e acabam controlando os estados nacionais. Avançam sobre os territórios, aumentando, inclusive, a violência contra as mulheres. Aumentam o processo de privatização da terra, de mercantilização da natureza, das próprias mulheres que estão no território e tem seus corpos mercantilizados.

As transnacionais são agentes que também estão por trás do processo de crescimento da extrema direita, porque interessa para as transnacionais, para as grandes elites, que os países tenham governos extremamente reacionários, justamente para conseguir explorar mais a classe trabalhadora e especificamente as mulheres. Seja explorando a força de trabalho ou mesmo o corpo das mulheres, sexualmente, por meio da prostituição, por exemplo.

Quais são os exemplos mais diretos do impacto da atuação das transnacionais aqui no Brasil?

Quando o capital atinge os territórios, temos a questão das mulheres indígenas, quilombolas. Mulheres do campo de forma geral, que muitas vezes não tem seu trabalho reconhecido ou são mais exploradas para ter a produção.

Também são as mulheres que geralmente estão na linha de frente da defesa dos territórios. Quando o capital avança sobre esses territórios, são elas que sofrem primeiro essa violência, porque são responsáveis pelo cuidado desse território.

A Marcha Mundial das Mulheres atua em defesa dos direitos das mulheres em diversos países / Elaine Santos/Flickr MMM

Mas, de maneira geral, com relação às mulheres, temos dois processos. Um é a piora considerável da qualidade de vida das mulheres, principalmente em relação ao trabalho. Temos um processo de precarização, de diminuição do salário, que está muito ligado, inclusive, com essa campanha ideológica de colocar as mulheres apenas como mães, como se a única tarefa das mulheres fosse ser mãe e atender aos homens, estar no lar. Se “essa é a tarefa primordial das mulheres”, o trabalho fora de casa não é prioridade. Então é menos valorizado. E há também um aumento do trabalho dentro de casa.

Há um processo de retirada de direitos, privatização de serviços públicos, como creches e educação infantil de forma geral, ou mesmo políticas de saúde. Com o cortes de vagas em hospital, com menos investimento, todo o trabalho de cuidado acaba sendo jogado nas costas das mulheres.

São elas que vão cuidar de suas próprias família, das crianças, idosos e doentes, ou que vão trabalhar de forma precarizada na casa de outras pessoas, também realizando o trabalho de cuidado. E, no caso, falamos principalmente das mulheres negras e trabalhadoras domésticas.

Existe um acúmulo de funções. Elas podem trabalhar como domésticas, cuidadoras, tudo em uma pessoa só. Um trabalho extremamente precarizado que tende a aumentar, seja na casa de outras pessoas ou na própria casa, dando conta do trabalho doméstico de cuidados. Um trabalho que não é reconhecido como trabalho.

Também não se reconhece que, na ausência do Estado, são as mulheres que realizam esse trabalho. Cuidam da educação, do cuidado dos idosos e doentes, suprimindo a falta do serviço do Estado. Quando a pessoa tem dinheiro, ela procura um cuidador particular, uma escola particular. São as mulheres da classe trabalhadora que tem esse aumento considerável da carga de trabalho. Seja em suas próprias casas ou nas casas de outras pessoas.

Esse 8 de março marca também os vinte anos de criação da Marcha Mundial das Mulheres. Qual o legado que esse movimento tem construído?

No movimento feminista existe uma disputa, como em qualquer movimento, de ser um movimento mais de cunho liberal, capturado pelas instituições, ou ser um movimento mais militante, de rua. Acho que a principal contribuição da Marcha é conseguir organizar, inclusive junto a setores mais amplos, um feminismo militante. Que leva a batucada para a rua, que faz reivindicação. Um feminismo que não pensa só em adquirir direitos por dentro do sistema, mas um feminismo que pauta uma mudança de sistema.

Maria Julia Monteiro, militante da Marcha Mundial das Mulheres / Reprodução/Arquivo Pessoal

Claro que defendemos nossos direitos, mas queremos essa mudança. Sabemos que as mulheres só serão realmente livres se acabarmos com o sistema capitalista, com o patriarcado e com o racismo. Na nossa visão, esses três sistemas atuam como um só: o capitalismo é patriarcal e racista. Só temos como acabar de fato com o patriarcado e com o racismo, se acabamos com o capitalismo. Só temos como acabar com o capitalismo se também fizermos esse movimento inverso de pautar a destruição do patriarcado.

A grande contribuição da Marcha é este feminismo militante, de não ser institucional, um feminismo que vai para as ruas, autônomo, construído pelas mulheres a partir da base. Um feminismo que pensa numa mudança radical e total da sociedade. Queremos direitos, mas sabemos que só teremos plenos direitos mudando esse sistema de forma radical.

Os números de violência contra a mulher crescem cada vez mais no Brasil. Qual a importância de trazer esse feminismo anticapitalista para esse 8 de março, neste contexto?

O aumento da violência vem como forma de controle das mulheres. O que é a violência contra a mulher? É possível fazer um paralelo, inclusive, com a violência contra a população negra. É uma violência preventiva. A mulher que sofre violência não precisa ter feito nada, basta ser mulher. Assim como basta ser um jovem negro para ter um aumento enorme de chances de ser abordado ou assassinado pela polícia.

Justamente porque esse tipo de violência tem como objetivo manter o controle de determinados sujeitos para que nem pensem em se libertar. Se temos um contexto de aumento da misoginia e precarização, o trabalho não vale nada e a mulher só serve para ter o corpo explorado, seja dentro de casa, com maridos e namorados, seja nas ruas por meio da prostituição.

Há uma construção mais forte de uma inferioridade da mulher e isso, inevitavelmente, resulta em violência. Se pensam que a mulher é um ser menor, cujo trabalho vale menos, ela é um ser que pode sofrer violência. Há uma objetificação que justifica a violência.

É importante trazer isso para o 8 de março relacionando essas ideias anti-sistema e com o combate mais amplo a esse governo. É um governo que tem colocado em prática políticas econômicas neoliberais que tem impacto direto no trabalho das mulheres, na violência contra as mulheres, e que tem relação com essa campanha ideológica misógina contra as mulheres.

Não enxergamos a violência como algo separado da exploração capitalista e patriarcal de forma geral. Essa é a importância de debatermos a violência aliado a esse tema mais amplo de transformação da sociedade. A violência é uma arma do patriarcado para nos manter sob controle.

E se o capitalismo e o patriarcado nos mantém sob controle, podem fazer o que quiserem com a gente. Podem usar nossos corpos para o prazer dos homens. Podem usar nosso trabalho da maneira que bem entenderem. A violência está relacionada com isso tudo. Não podemos debatê-la de forma separada. Se não, não conseguimos pensar quais as razões dessa violência. Por que se instiga a violência contra as mulheres.

Como, por exemplo, essa campanha de abstinência sexual da Damares. Que é especificamente para adolescentes mas também as posições da Damares de forma geral, que coloca as mulheres como submissas. Tudo isso justifica a violência. Se as mulheres têm que ser submissas, seja ao marido ou ao patrão, elas podem sofrer violência para continuar sendo submissas.

O que o governo Bolsonaro e seus ministros representam para as mulheres?

É um retrocesso total. Quando pensamos nos retrocessos das políticas educacionais, estamos pensando não só em mulheres que vão ficar fora das universidade, por exemplo. No governo Lula e Dilma tivemos um aumento das mulheres da classe trabalhadora, principalmente mulheres negras, na universidade. Com relação à educação, esse seria um primeiro impacto.

Se há cortes na educação infantil, há aumento no trabalho das mulheres que não terão onde deixar seus filhos para ir trabalhar. No tema do meio ambiente, temos avanços sobre os territórios que as mulheres cuidam e são responsáveis pela produção agroecológica. Falamos tanto de orgânicos e na grande maioria são as mulheres que estão nessa produção.

Não é um impacto de um ministro ou de outro, é de um governo como um todo. Temos a Damares que tem uma atuação mais relacionada, ministra das Mulheres, mais focada com o objetivo de passar a imagem que as mulheres têm que ser submissas, calmas, que não podem ter prazer, que não podem conhecer o próprio corpo. Tanto para dizer não para uma relação sexual, quanto para dizer sim.

Mas o governo como um todo ataca as mulheres. Quando temos uma reforma da Previdência ou uma reforma trabalhista, ou qualquer ataque aos direitos trabalhistas, são as mulheres que sentem primeiro esses ataques.

De forma geral, esse governo e seus ministros são um retrocesso para as mulheres, atacam seus direitos. Por isso que para nós, da Marcha, uma pauta central neste 8 de março é o ‘Fora Bolsonaro’. Não é só contra ministro X ou Y, ‘Fora Guedes’ ou ‘Fora Damares’. Queremos esse governo todo fora, não tem nenhuma salvação. Esse governo inteiro é um retrocesso para as mulheres. Já vínhamos afirmando e isso se torna cada vez mais claro, que é um governo fascistas. Suas afirmações são fascistas, as declarações sobre as mulheres também podem ser sim reconhecidas como fascistas.

Marcha Mundial das Mulheres ocupará as ruas com a palavra de ordem “Fora Bolsonaro” / Foto: Flickr/MMM

Quais outras ações a Marcha está puxando para além do 8 de março? O que a 5ª Ação Internacional envolve?

Estamos com várias atividades de preparação para a ação internacional, que vai ser em maio. Teremos uma ação que será em Natal, no Rio Grande do Norte. Vamos mobilizar todas as nossas mulheres para lá. Nossa ação será em conjunto com a semana anti-imperialista, uma semana de lutas colocando o tema do internacionalismo. Por isso também decidimos por essa data, para juntarmos com essa outra mobilização internacional que acontecerá esse ano.

Entre as atividades preparatórias, no dia 24 de abril, por exemplo, temos as 24h de ação feminista em todos os países que a Marcha existe, que vai seguindo o curso do sol, uma hora em cada país. Por isso 24h de ação feminista.

Vamos pautar principalmente a questão das transnacionais, do avanço da direita nos nossos países. Temos as pautas locais, mas elas são conectadas internacionalmente entre os vários países que constroem a Marcha.

Edição: Larissa Gould.

 

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