As marcas da seca no Nordeste

Chegada das chuvas no semiárido pode interromper seis anos de escassez extrema. Com a falta de água, morte de animais, relatos de fome e sede voltaram à rotina da população rural do sertão.

Em Floresta, Pernambuco, água potável só chega com os caminhões-pipa.

Atrás da casa de José, de 64 anos, as covas rasas que guardam sementes de milho se destacam no terreno seco. Depois de seis anos de estiagem, as primeiras chuvas da estação no sertão de Pernambuco mobilizaram toda a família no preparo para o plantio.

“A gente espera que a seca acabe. A gente chegou a passar fome, eu mesmo até desmaiei”, conta, sobre os efeitos dos anos sem chuva regular no semiárido nordestino. A aposentadoria que recebe desde 2014, um salário mínimo, chegou a ser a única fonte de sustento para até 20 familiares.

Para que o milho cresça, a chuva precisa cair de dez em dez dias, explica José. Essa regularidade também ajuda a trazer água para o açude próximo, Poço da Cruz, onde a esposa dele, Maria Conceição, sempre pescou. “Os peixes morreram, ou ficaram tão magrinhos que a gente fica até com dó de pegar”, lamenta Maria.

Poço da Cruz, no município de Ibimirim, é o maior reservatório de Pernambuco. Entrou em 2018 praticamente seco, com 1,5% da sua capacidade. Com as chuvas recentes, o nível subiu para 6,2%, mas está longe de uma recuperação.

O projeto de transposição do rio São Francisco prevê transferência de água para o Poço da Cruz por meio do Eixo Leste, que corta Pernambuco até a Paraíba. No entanto, o volume extra ainda não chegou.

A esperança em 2018

Desde 2012, as chuvas no semiárido ficaram muito abaixo da média. Em algumas regiões, os problemas começaram em 2010, afirma Raul Fritz, da Funceme (Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos), que monitora a seca juntamente com outros institutos do Nordeste.

“A nossa esperança está toda depositada neste ano”, afirma Fritz. “A estação chuvosa pode durar até maio. Estamos prevendo uma categoria de chuvas acima da média para o norte do Nordeste”, complementa.

No Ceará, o acúmulo de água nesses seis anos também foi crítico. “As chuvas ainda não foram suficientes para trazer uma mudança significativa”, avalia Fritz. “É preciso que chova dois meses seguidos, com índices acima da média, para que o cenário comece a mudar”.

Dados do Instituto Nacional do Semiárido (Insa) apontam que o volume atual total em toda a região é de 12,7%. Dos 452 reservatórios monitorados, mais da metade está com menos de 10% da capacidade.

As covas rasas que guardam sementes de milho se destacam no terreno seco
As covas rasas que guardam sementes de milho se destacam no terreno seco

Elias, de 69 anos, morador da zona rural de Floresta, tinha 105 animais em 2012. Seis anos depois, apenas cinco sobreviveram. “Eles morreram de fome e de sede, e eu quase morro de desgosto”, contou. Sem as cabras e bodes da criação, a aposentadoria como trabalhador rural trouxe um pouco de comida para casa.

Água potável só chega com os caminhões-pipa. Até hoje, os moradores nunca sabem exatamente quando serão abastecidos: o serviço depende do convênio entre prefeitura e Exército. Faz anos que as centenas de comunidades rurais no município dependem do pipa. Quando a cisterna de 16 mil litros esvazia, os vizinhos se ajudam e “emprestam” água.

“Os impactos são duros. Dificultam ou inviabilizam a vida no semiárido”, comenta Naidison Baptista, da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), rede com mais de 3 mil organizações. “Há registro de perda de animais, de desestruturação de sistemas produtivos e de vidas”, analisa.

Segundo Baptista, a seca extrema provoca o aumento da pobreza na região. “Os programas sociais ajudam, mas não conseguem mexer com as perspectivas estruturantes”, afirma, fazendo referência ao Bolsa Família e ao Garantia Safra.

A família de Antônio vendeu tudo o que tinha para arrendar um pedaço de terra às margens do rio São Francisco. O terreno mais úmido ajudou a colher um pouco de feijão, milho e mandioca, que alimentaram a família ao longo dos seis anos.

“Tenho medo de comprar semente pra plantar aqui e perder tudo”, diz Antônio, em visita à comunidade próxima ao riacho do Navio, em Floresta, onde morava. “A gente não conhece mais a chuva. Está tudo diferente”, comenta, sobre as mudanças do regime hidrológico.

Emigrar ou não

Representantes da ASA afirmam que a crise levou muitos a buscar emprego fora, mas em menor número do que observado em eventos passados. “Existe migração, mas não como antes, quando víamos multidões imensas abandonando suas terras”, analisa Baptista.

As políticas públicas de sobrevivência no semiárido, construção de cisternas, a garantia de pelo menos uma refeição ao dia para as crianças, por meio da merenda escolar, são os principais fatores que evitaram um abandono massivo do espaço geográfico, pontua o representante da ASA.

“Desde os anos de 1990, trabalhamos muito com a cultura do estoque: mostramos às famílias que é preciso armazenar água e comida para enfrentar os anos de seca”, argumenta Baptista. “E está comprovado que a caatinga preservada ajuda a manter os animais de criação vivos.”

José, desta vez, decidiu enfrentar a estiagem. “Em 1993 eu me mudei pra São Paulo atrás de emprego. Morei na rua, passei fome, não adiantou nada. Quando essa seca veio, eu decidi ficar. Se for para passar fome lá, eu passo fome aqui mesmo”, contou o produtor rural, que estudou até a Quarta série.

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