As manifestações renovarão os mecanismos existentes ou criarão novos?

rodrigo-nunesAs manifestações que se iniciaram no país desde junho do ano passado relacionadas à “convergência de três tendências históricas”, das quais duas são “irreversíveis”: o uso das redes digitais, que gerou uma “autocomunicação de massa”, e a “queda vertiginosa dos custos de organização”, pontua Rodrigo Nunes, autor do livro The Organisation of the Organisationless: Organisation After Networks (A Organização dos Sem Organização: Organização Depois das Redes), que será publicado nos próximos meses. Por outro lado, assinala, a terceira “tendência histórica”, compreendida como a crise dos mecanismos de representação, não será solucionada rapidamente.

Para compreender o fenômeno que está ocorrendo, Nunes utiliza o conceito “sistema-rede”, a partir do qual se pode compreender como as manifestações nas ruas e nas redes estão conectadas. “Os sistemas-rede não são um mero agregado de indivíduos; são internamente diferenciados, com zonas mais esparsas e núcleos mais densos, mais orgânicos, mais organizados. Normalmente, são estes núcleos que têm o papel de convocar, definir protocolos, garantir um mínimo de estrutura, inclusive física, às ações”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Nunes também avalia as divergências e aproximações entre as novas manifestações e os movimentos sociais tradicionalmente organizados, surgidos durante a redemocratização do país. “Perguntar se um tipo de organização vai substituir o outro é como perguntar se o pires vai substituir o prato de sopa: são objetos semelhantes, mas que servem a fins distintos, e possuem uma forma adequada a sua finalidade. A organização é sempre uma resposta a uma situação específica”, esclarece. E acrescenta: “Não me parece que as organizações de massa tradicionais deixarão de existir, pelo menos no médio prazo. O que certamente muda é a ideia de que elas sejam o único modelo de organização viável, de que quem não se organiza como elas não está organizado. ‘Organizar-se’ deixa de ser sinônimo de ‘organizar-se assim’”.

Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. É colaborador de diversas publicações nacionais e internacionais, como Radical Philosophy, Mute, Le Monde Diplomatique, Serrote, The Guardian e Al Jazeera. Como organizador e educador popular, participou de diferentes iniciativas ativistas, como as primeiras edições do Fórum Social Mundial e a campanha Justice for Cleaners, em Londres. Além disso, foi membro do coletivo editorial de Turbulence, uma revista influente entre os movimentos sociais da Europa e da América do Norte na segunda metade da década passada.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor define os fenômenos que têm ocorrido no Brasil desde junho do ano passado, e em vários outros países nos últimos três anos, como “movimento de massa sem organizações de massa”. O que isso significa?

Rodrigo Nunes – Durante muito tempo, se acreditou que um movimento de massa de grande porte, mobilizando um grande número de pessoas em escala nacional, só poderia existir na condição de ser impulsionado por organizações com muitos membros, uma estrutura formal, uma liderança instituída.

Isso foi um motivo de grande crise para a esquerda mundial desde os anos 1980 e no Brasil desde a década de 1990, porque os sindicatos encolheram, os partidos e movimentos perderam capacidade de mobilização. Logo, grandes movimentos pareciam estar se tornando impossíveis. Foi também a crise dos partidos à esquerda do PT desde 2002, que tentaram, justamente, criar novas centrais sindicais, novos organismos de representação estudantil.

Os últimos três anos provaram que é possível que um movimento de massa se constitua na ausência deste tipo de organização. Pode-se discutir em que medida isso é bom ou ruim, mas o fato é inquestionável: no Brasil, o maior movimento de massa desde as Diretas Já aconteceu sem que as grandes organizações de massa tivessem um papel central.

IHU On-Line – O que mudou no modo de as pessoas se organizarem e quais são as razões dessas mudanças?

Rodrigo Nunes – Parece-me claro que estamos vivendo a convergência de três tendências históricas, pelo menos duas das quais são irreversíveis.

Primeiro, a generalização crescente do uso de redes digitais de diversos tipos (e-mail, Twitter, Facebook, Whatsapp, Reddit, etc.), o que cria a possibilidade daquilo que Manuel Castells chamou de “autocomunicação de massa”.

Segundo, como consequência direta, uma queda vertiginosa dos custos de organização: ações coletivas, que no passado seria impossível organizar sem estruturas formais, agora são tarefas relativamente simples. Manifestações sindicais com carros de som, camisetas, jingles, “showmícios”, às vezes até militantes pagos, são hoje menores que protestos convocados no Facebook. Estas duas tendências são, em princípio, irreversíveis.

A terceira é uma crise dos mecanismos de representação que tem caracterizado as sociedades modernas do século XVIII para cá: voto, parlamento, partidos, sindicatos. Fatalmente, ela respinga também nas instituições da esquerda. Mais óbvia e urgente em países como Egito e Tunísia, ela é sentida mesmo nas democracias mais antigas, que foram corroídas por dentro pelo financiamento privado de campanhas, os lobbies corporativos, a concentração da mídia e da riqueza. Não à toa, o “eles não nos representam” espanhol é um dos slogans que mais circulou nos últimos anos.

Note-se que apenas o terceiro ponto tem a ver com uma disposição subjetiva. Várias análises ficam apenas neste nível, frequentemente para lamentar que se tenha perdido a fé em projetos coletivos de grande escala, porque só a renovação das organizações de massa existentes seria capaz de resolver a crise da representação. Mas elas perdem de vista o fato de que a organização em rede não é uma escolha consciente, sem ser, antes, o próprio modo como a vida pessoal e profissional da maioria das pessoas se dá. As pessoas não se organizam politicamente em rede porque elas querem — embora muitas também conscientemente prefiram fazê-lo —, mas porque elas já estão organizadas assim. É de se esperar que, se as pessoas vivem e se percebem vivendo cada vez mais em rede, o modo como elas se expressam politicamente também tenha essa forma.

Uma das questões em aberto hoje é: estes movimentos que estão ocorrendo, para quem a crise da representação é um problema central, renovarão os mecanismos existentes, constituirão novos mecanismos, ou caminharemos para uma crise cada vez mais aguda da democracia?

IHU On-Line – O que diferencia estes movimentos dos movimentos sociais tradicionais?

Rodrigo Nunes – A própria categoria de “movimento” é problemática para falar do que estamos vendo. “Movimento”, mesmo que não necessariamente implique estruturas formais como aquelas dos movimentos sociais “tradicionais”, inevitavelmente sugere uma certa unidade de objetivos, práticas, identidade. Em contraste, alguns pesquisadores têm usado o conceito de “sistema-rede”. Eu tento defini-lo com clareza no livro que será publicado este ano.

O sistema-rede é um sistema com diversas camadas, cada uma das quais é uma rede: a rede de pessoas na rua, de perfis do Facebook, de contas do Twitter, de espaços físicos em que as pessoas se encontram. As camadas não são redutíveis uma a outra. Nem todo mundo está em todas, e a rede no Twitter é diferente daquela do Facebook, que é diferente daquela do mundo físico. Os laços são outros, os nós são outros. Mas elas pertencem todas ao mesmo sistema, ou seja, interagem todo o tempo.

Pensar nestes termos nos permite ver como coisas que não estão direta ou conscientemente ligadas se comunicam. Por exemplo, como os “rolezinhos”, cujos organizadores talvez não estivessem inicialmente pensando em política, foram rapidamente politizados; ou como o Bom Senso FC, cujos membros provavelmente não estiveram nas ruas em junho, foi influenciado pelos protestos. Permite, ainda, entender como diferentes grupos tomam a dianteira em diferentes lugares e momentos, ou como as pautas e reivindicações vão se conectando, se diferenciando, se transformando (das tarifas à Copa, da Aldeia Maracanã ao “Onde Está Amarildo?” e ao “Fora Cabral”, de volta às tarifas).

Ou seja, não estamos falando de um movimento, com base social claramente delimitada, liderança definida, processos claros de tomada de decisão, mas de um sistema complexo de interações contínuas, dentro do qual pode haver de tudo: movimentos tradicionais, partidos, sindicatos, pequenos coletivos, redes informais de amigos, indivíduos “soltos”. E, portanto, diferentes identidades, objetivos, práticas.

É a diferença entre analisar um indivíduo isolado e como ele interage com o ambiente (como um movimento se organiza, que estratégia, que táticas usa), por um lado, e um ecossistema, por outro. Você não consegue explicar o que ocorre num ecossistema apenas pela ação de um agente — digamos, o Movimento Passe Livre (MPL). Você precisa observar como todos agem sobre todos, direta e indiretamente. A segunda perspectiva não invalida a primeira, obviamente, mas a primeira está contida na segunda.

IHU On-Line – O senhor critica também a oposição que às vezes se faz entre “redes” e “ruas”.

Rodrigo Nunes – É uma dicotomia falsa. A maioria esmagadora dos manifestantes está em ambas, e a ação das duas se complementa, se comunica, se amplifica. São duas camadas distintas, mas pertencem ao mesmo sistema.

Imagine que ninguém daqueles que foram ao primeiro ato de junho de 2013, digamos mil pessoas, tivesse postado imagens e relatos no Facebook, no Youtube, no Twitter; o alcance teria sido bem menor, menos gente teria saído às ruas no ato seguinte. Mas como quem ia num ato usava as redes digitais para discuti-lo e comentá-lo, no próximo ia mais gente, que por sua vez fazia o mesmo e alcançava ainda mais gente, que também ia no próximo – até que as imagens e relatos de repressão fizeram a coisa explodir. Cria-se um efeito de retroalimentação, um feedback positivo. É assim que o meio digital permite ir muito além da capacidade imediata de mobilização de quem está convocando, ao mesmo tempo que expande esta capacidade.

Aliás, não é preciso estar na internet para estar exposto a seus efeitos: o seu amigo se indigna com o que leu no Facebook, a liderança do seu movimento muda de posição depois de um debate no Twitter, a TV muda a notícia por causa do vídeo no Youtube. Como diz um amigo, nem todo mundo está na internet, mas todo mundo que está na internet está no mundo. Não existe “a internet” e “o mundo real”: a internet está dentro do mundo e age dentro dele, respondendo ao que a cerca.

Imersos num fluxo contínuo

Nós vivemos em um ambiente cada vez mais mediatizado, tanto pela comunicação de massa como pela autocomunicação de massa. Este é um dos motivos pelos quais os custos de organização caíram. No tempo das Diretas, ainda sob a ditadura e com um bloqueio completo da mídia, você realmente precisava de organizações com estrutura nacional, de lideranças que viajassem pelo país, etc. Mas hoje estamos cada vez mais imersos num fluxo contínuo de informação e afetos que nos chegam por diferentes meios — do qual, ainda por cima, podemos participar, dando nossas opiniões, fazendo propostas, expressando sentimentos.

Isto não se dá “na rede”, nem “na rua”; se dá no movimento entre uma e outra. E quando processos de retroalimentação se estabelecem, determinadas informações, afetos, palavras e imagens passam a dominar as interações nas ruas, nas redes digitais, na mídia tradicional. E aí um ato de mil pessoas vira o assunto de todas as conversas no dia seguinte, uma decisão tomada por 50 pessoas consegue a adesão de milhares no Facebook, uma frase dita no Twitter é reproduzida em centenas de cartazes.

IHU On-Line – Os movimentos sociais tradicionais deixarão de existir, então?

Rodrigo Nunes – Se você observar bem, a organização mais “orgânica” não deixou de existir; mas é como se, assim como tudo mais nas últimas décadas, ela tivesse passado por um downsizing. É preciso uma boa dose de pensamento mágico para achar que o que temos são indivíduos isolados convergindo “do nada”. Os sistemas-rede não são um mero agregado de indivíduos; são internamente diferenciados, com zonas mais esparsas e núcleos mais densos, mais orgânicos, mais organizados. Normalmente, são estes núcleos que têm o papel de convocar, definir protocolos, garantir um mínimo de estrutura, inclusive física, às ações. Isto porque eles têm mais capacidade executiva, já têm um certo reconhecimento entre as pessoas, têm as assembleias mais cheias, administram as páginas mais frequentadas, as contas de Twitter mais seguidas.

Como a mediatização permite, mesmo a quem não tem muitos membros, alcançar e mobilizar um grande número de pessoas, uma organização relativamente pequena pode gerar efeitos antes só possíveis com uma grande estrutura. Com isso, estes grupos podem permanecer relativamente pequenos e, portanto, mais flexíveis, informais, “horizontais”. Mas são eles que tendem a ter maior peso na estruturação da ação coletiva do sistema-rede. É o caso do Movimento Passe Livre (em São Paulo e agora no Rio), do Bloco de Lutas (Porto Alegre), dos Comitês Populares da Copa.

Fins distintos

Agora, perguntar se um tipo de organização vai substituir o outro é como perguntar se o pires vai substituir o prato de sopa: são objetos semelhantes, mas que servem a fins distintos, e possuem uma forma adequada a sua finalidade. A organização é sempre uma resposta a uma situação específica. Trabalhadores rurais, numa grande dispersão geográfica e com pouco acesso à internet, não vão se organizar da mesma maneira que a juventude urbana, embora os dois grupos possam estar conectados de diferentes maneiras, e nenhuma forma de organização seja mais “real” que a outra. Ambas são reais, as realidades é que são diferentes. Os sindicatos, tal como existem hoje, não dão conta de um imenso setor não formal, flexível e precarizado, mas formas de ação coletiva adequadas a esta realidade precisam ser elaboradas.

Não me parece que as organizações de massa tradicionais deixarão de existir, pelo menos no médio prazo. O que certamente muda é a ideia de que elas sejam o único modelo de organização viável, de que quem não se organiza como elas não está organizado. “Organizar-se” deixa de ser sinônimo de “organizar-se assim”.

A esquerda e a visão do átomo isolado

Uma das razões do preconceito que a esquerda “tradicional” nutre contra os “não tradicionais” parece ser a ideia de que, fora das organizações de massa que as agrupariam, as pessoas existem apenas como átomos isolados. As pessoas que estão nas ruas seriam, então, meros indivíduos “expressando sua subjetividade”. Isto é evidentemente falso. Por mais atomizantes que sejam as condições de vida hoje, as pessoas existem sempre dentro de diferentes redes familiares, profissionais, afetivas, políticas. As pessoas estão sempre agindo coletivamente, em graus maiores ou menores de consistência ou formalização; e normalmente é de núcleos mais organizados que partem as principais iniciativas. É um cenário mais fragmentário e complexo, sem dúvida, mas nem por isso caótico.

IHU On-Line – Quais podem ser as desvantagens deste tipo de organização?

Rodrigo Nunes – Desvantagens e vantagens são faces da mesma moeda. Usa-se uma metáfora da informática para distinguir um ativismo de “código fechado” (identidade definida, bandeira, camiseta, lideranças, etc.) de um ativismo de “código aberto”, relativamente aberto a diferentes identidades, práticas, táticas, compreensões. Isto não quer dizer que código fechado e aberto se excluam: dentro de um sistema-rede de código aberto você tem zonas de código fechado, e abertura e fechamento são sempre relativos, existem em graus. É óbvio, porém, que o poder de mobilização do código aberto é muito maior, porque se comunica com muito mais temas, muito mais pessoas. O código fechado exige uma conversão, o código aberto, apenas conexão. Alguém duvida que, se os protestos de junho tivessem sido só dos movimentos tradicionais, teriam sido bem menores? Aliás, também teriam sido menores se tivessem sido “puro sangue”: muita gente que saiu às ruas não necessariamente se identificaria como “de esquerda”, embora possa defender pautas progressistas.

Contudo, abertura implica menor coesão, dificultando a definição de estratégias, diluindo mensagens no meio de muito ruído, expondo o sistema-rede ao risco de tentativas de apropriação, como se viu no Brasil.

A questão é: vale mais um ecossistema pequeno e homogêneo, ou um grande, heterogêneo e difícil de controlar? Não existe resposta certa, mas são escolhas que precisam ser feitas continuamente, e cada uma tem seu preço. Quando aconteceu a tentativa de ressignificar o que estava ocorrendo como um movimento “anticorrupção” e “antigoverno”, houve uma resposta clara no sentido de aumentar o “fechamento”: “coxinhas, fora das ruas, este é um movimento de esquerda”. Barrou-se a tentativa de apropriação, mas mandou-se para casa também muita gente que não era necessariamente “de direita”. Foi uma oportunidade perdida de dialogar com pessoas que estavam participando da política pela primeira vez.

Fluxo contínuo de interações

Há outros limites, também. Como a vontade coletiva vai se formando dentro de um fluxo contínuo de interações, o processo de tomada de decisões é mais dinâmico, não está concentrado em um lugar. Por outro lado, muito do que se faz corre o risco de ser de curto prazo, reativo, uma resposta mais ou menos automática não à conjuntura como um todo, mas àquela coisa que aconteceu ontem.

Mas não é impossível que um pensamento de mais largo prazo se desenvolva a partir das redes. Experiências como o Rolling Jubilee nos Estados Unidos, a Plataforma de los Afectados por la Hipoteca na Espanha e o UK Uncut na Inglaterra, o próprio Movimento Passe Livre (MPL) no Brasil, demonstram isso. E aí voltamos à questão da irreversibilidade: se é fato que a política cada vez mais terá a forma das redes, é preciso pensar a partir delas para desenvolver suas capacidades imanentes de autocompreensão e ação estratégica. Não adianta ficar se lamentando. Para quem acredita que o telos de toda ação coletiva é sempre a constituição de um partido, a resposta a dar é a seguinte: hoje, se for surgir um partido, será de dentro das redes. Como, aliás, é o caso de uma experiência interessantíssima como o Partido X na Espanha, que propõe uma inovação realmente original da forma partidária.

IHU On-Line – Qual o legado dos movimentos sociais tradicionais para as novas manifestações de massa? Em sua intervenção no Conexões Globais, o senhor falou em um “conflito de gerações políticas”.

Rodrigo Nunes – Quando falo de geração, não é no sentido de idade. Uma geração se forma em relação a um evento, ou eventos, aos quais ela responde. O PT, a CUT, o MST são projetos da geração do período da redemocratização, que chegou ao poder, produziu mudanças importantes, mas cuja energia de transformação se exauriu. Não sou eu que digo isso, é o Secretário-Geral da Presidência da República!

Parece-me que desde junho do ano passado se cristalizou uma nova geração política no país, gestada no período em que o projeto da geração anterior tanto se realizou quanto revelou seus limites. Ela se organiza de outras formas e é movida não só pelo tema da pobreza, mas também por preocupações que se tornaram secundárias para aquele projeto: meio ambiente, direitos indígenas, diversidade sexual, direito à cidade. Acima de tudo, ela experimenta a crise de representação “do lado de cá”: a geração anterior virou representante, a nova não se sente representada.

Se os “mais velhos” forem sinceros em relação ao slogan “Para o Brasil Continuar Mudando”, terão de reconhecer que, hoje, a energia para a mudança vem da mais nova. Os protagonistas da política das ruas — e um compromisso com a política das ruas era uma das características da geração formada na redemocratização — são essa nova geração.

Essa clivagem geracional, aliás, passa por dentro das ruas também. Há muita gente de partidos ou movimentos mais tradicionais que está nas ruas, vivendo o choque. Por isso, há alguns meses, eu dizia: o antagonismo principal não é entre esquerda institucional e ruas, mas entre quem reconhece que algo de novo se passou de junho para cá e quem não reconhece. A condição para o diálogo é que se reconheça que há algo novo, fora das coordenadas que definiram a política brasileira da redemocratização até aqui. Com quem acha que junho não muda nada, não há conversa possível.

Qual é o legado importante da geração da redemocratização, que se exprime ou exprimiu nas organizações de massa que ela construiu? Além de um conceito específico de organização de massa, ao qual ela atribuía centralidade, aquela geração foi guiada pela ideia de que a população mais pobre deve se tornar protagonista da política. Trata-se de uma certa noção do “popular”, da importância do trabalho de base, da formação de lideranças, que tem sua origem nas Comunidades Eclesiais de Base da Teologia da Libertação.

Isto é, aliás, a origem de uma confusão (ou chantagem) comum, porque as organizações de massa criadas na década de 1980 tinham base popular; faz-se uma oposição entre “quem está nas ruas” (subentenda-se: a classe média) e as “organizações populares”. Em muitos casos, porém, isto é uma miragem. É olhar para as organizações tais como elas são hoje e enxergá-las como elas eram na década de 1980. Vá para um comício sindical, vá para o meio do Black Bloc, aí me diga, sem entrar em nenhum outro mérito: qual é o mais “popular”? Sem falar que, desde junho, temos visto muito mais mobilização nas favelas e nas periferias. Pode-se responder que são fenômenos pontuais que, se não forem organizados, não vão resultar em nada. É verdade. Mas, de novo, a organização pode tomar diferentes formas, e estes processos ainda estão muito no início. As classes populares não são monopólio das “organizações populares” formadas décadas atrás — e estas organizações, aliás, deveriam estar se perguntando por que perderam a penetração que um dia tiveram.

Embora muitos na esquerda tradicional os critiquem como pequeno-burgueses, “coxinhas de esquerda”, etc., grande parte de quem está nas ruas não me parece alheia à questão de como envolver a população mais pobre como agente da política. Podem ainda não ter ideias claras de como resolvê-la, mas o problema está posto, inclusive na prática de vários grupos: o MPL de São Paulo e vários Comitês da Copa têm base popular, há grupos que trabalham com os sem-teto ou moradores de favelas, o Bloco de Lutas dialoga com a base do Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre.

IHU On-Line – Os novos manifestantes recebem críticas por não apresentarem uma liderança ou direção tal qual a dos antigos movimentos. Qual é o significado dessa “horizontalidade” e da ausência de estruturas formais?

Rodrigo Nunes – Em primeiro lugar, é bom notar que você não tem um único movimento marchando sozinho, mas vários grupos de tamanho médio ou pequeno e um grande número de indivíduos soltos. Alguns grupos têm mais autoridade moral, mais experiência, mas nenhum conseguiria se impor sobre os demais. As pessoas não atentam para essa diferença e ficam cobrando uma “direção” que é objetivamente impossível, como se não tê-la fosse apenas uma opção subjetiva.

Em segundo lugar, ao invés de “movimentos horizontais”, prefiro falar em “movimentos distribuídos”. O “horizontalismo” é uma ideologia, segundo a qual seria possível eliminar completamente todos os diferenciais de poder; mas basta estudar as redes um pouco para ver que nunca são totalmente planas ou igualitárias. A horizontalidade tem valor como “ideia regulativa” no sentido kantiano: algo que você sabe que nunca vai conseguir realizar, mas ainda assim serve e orienta suas escolhas práticas. Mas movimentos distribuídos se caracterizam não por serem plenamente horizontais, mas por possuírem liderança distribuída. Como eles são mais informais e flexíveis, as funções de liderança estão distribuídas no tempo e no espaço e podem ser assumidas em diferentes momentos por diferentes grupos, indivíduos, etc. Neste sentido, não seriam movimentos “sem líderes”, mas o contrário: com muitos líderes, atuais e potenciais. A função de liderança está disseminada e circula, podendo ser ocupada, em princípio, por qualquer um.

Ação coletiva

Neste caso, “direção” é quem dirige, no momento em que dirige; quem consegue canalizar e estruturar a atenção e a ação coletiva para uma tarefa determinada num instante determinado. A direção existe em ato, dentro de um processo contínuo de formação de vontade coletiva e tomada de decisão. Pelos motivos práticos que vimos acima, é mais provável que núcleos mais organizados assumam essa função a maior parte do tempo. Mas isto é diferente de você ter uma estrutura formalmente designada como “representante” ou como “direção”, que será reconhecida como tal mesmo quando não estiver dirigindo nada.

O descompasso entre uma concepção e outra ficou patente em junho. Há uma maioria de jovens estudantes nas ruas, logo o governo chama a União Nacional dos Estudantes para conversar; mas eles não têm nenhum papel efetivo nos protestos, portanto não têm nada para negociar com o governo. Eis a crise da representação em um capítulo: o sistema político aloca a determinadas organizações a função de representar determinados segmentos, mas o segmento está se organizando completamente à revelia de seu “representante”. Então, você vai concluir que a culpa é da realidade, que não está conforme o sistema? Não, a culpa é do sistema, que está claramente em defasagem com a realidade. A rua não mente, não porque tenha sempre razão, mas porque é sintoma de alguma coisa real.

Na verdade, muitos ataques à falta de “direção” provêm justamente da recusa de setores da esquerda institucional em aceitar que a crise da representação afeta também as instituições da esquerda. A única direção legítima para um movimento de massa teria de vir das organizações de massa constituídas, dos partidos? Então por que eles não fizeram este movimento antes?

IHU On-Line – Diante deste quadro de “horizontalização” e “liderança distribuída”, como vislumbrar negociações ou mudanças no campo político?

Rodrigo Nunes – Há três questões a distinguir aí: a capacidade de implementar mudanças, os tempos e escalas das mudanças, a elaboração e negociação de programas positivos.

Começo do início. Embora se ouça uma retórica anarquista difusa, é evidente que reivindicações como passe livre e desmilitarização da polícia são dirigidas ao Estado e, portanto, exigem mediações institucionais. Porém, se é verdade que você dependerá do Estado para implementar certas transformações, não é o caso que você precise virar Estado para fazê-lo. Um exemplo? A redução das tarifas foi imposta pelas ruas aos governos. Por enquanto, é uma vitória pontual, impede que se faça algo, mas não cria nada novo. Mas digamos que pelos próximos três anos a pressão popular consiga barrar os aumentos; inevitavelmente, então, será preciso discutir as outras questões levantadas em 2013, que os prefeitos até aqui preferiram ignorar: o lucro das empresas, o financiamento do sistema de transporte, o passe livre universal. Aí se entra numa outra fase, em que será preciso combinar mobilização nas ruas, propostas concretas e agentes capazes de fazer a mediação. Isto é mais complicado, porque é muito mais fácil criar um consenso negativo (“não aos aumentos”) que um consenso positivo (“como financiar o transporte público”).

O que é pouco provável é que os movimentos atuais ponham todas as fichas na institucionalização. Não porque sejam “pós-modernos” ou tenham lido muito John Holloway, mas porque não crêem que o sistema político tal como é possa responder a suas demandas mais radicais. Não é que as pessoas acreditem que é possível mudar o mundo sem tomar o poder; elas duvidam que seja possível mudar o mundo tomando o poder! Se você sai das ruas e vira Estado, perde a alavancagem que permitiria fazer com que o sistema político saia do próprio eixo, pare de girar em falso.

Potenciais

Aí entra a questão dos tempos e escalas. Em virtude da convergência de crises mundiais (capitalista, ecológica, da representação) e do crescimento da mobilização, há um sentimento bastante compartilhado hoje de que é possível e necessário lutar não somente na curta, mas também na longa escala. Não só reduzir as passagens, mas transformar o sistema de transporte público; não só punir abusos, mas transformar a polícia; não só eleger representantes, mas transformar a política. Há tempos não havia um período tão perigoso, mas também tão rico em potenciais.

Inevitavelmente, porém, a longa escala envolve altos e baixos, vitórias e derrotas, avanços e recuos. Ela nem é linear nem se mede pelos tempos curtos dos ciclos eleitorais. Pelo contrário: se você sempre submete o objetivo de longo prazo às circunstâncias da próxima eleição, está apenas se iludindo que ainda o persegue. Há quem diga: “olhem o Egito, eles acabaram com uma ditadura; olhem a Espanha, a direita se elegeu”.

Em primeiro lugar, isso é esquecer que o Egito antes tinha uma ditadura, que a esquerda espanhola há anos fazia governos de direita. As pessoas deveriam ter ficado quietas, então?

Em segundo lugar, lá os movimentos estão falando de algo mais profundo que uma troca de governo; e você não pode julgar um jogo longo na segunda rodada. É como estar na Rússia em julho de 1917 e dizer: “está vendo? Só o que os bolcheviques fizeram foi substituir o Czar por um governo burguês!”. Aliás, era o que o Partidão dizia para os fundadores do PT: “Parem de agitar! Vocês vão fazer com que a ditadura endureça de novo!”.

Fazer política é correr riscos, e os ganhos são proporcionais aos riscos que se corre. Por outro lado, quanto mais ambicioso, mais um movimento deve ter maturidade, estratégia, saber construir apoios, diversificar suas táticas. E isto inclui saber criar suas próprias mediações institucionais.

Organização do sistema-rede

Entramos, então, na questão da elaboração e negociação de programas. Se você tem um ecossistema complexo, parcialmente estruturado, mas não hegemonizado por núcleos mais organizados, como isso ocorre? Neste ponto, os movimentos tradicionais parecem realmente levar vantagem: eles constroem agendas, preparam quadros, fazem formação política, mobilizam as bases, botam as lideranças para negociar.

Mas é impossível que isto ocorra dentro de um sistema-rede? Não creio. Os grupos “especializados” já têm muita apropriação sobre seu tema. O MPL tem um debate sofisticado sobre o transporte público, e a Articulação Nacional dos Comitês da Copa, sobre a questão urbana. Nestas e em outras áreas, é preciso saber criar os fóruns onde propostas e estratégias possam ser discutidas. Não grandes assembleias, que dificilmente funcionam para estes fins, mas diferentes espaços que se comuniquem e se construam um sobre a base do outro: debates com especialistas, entre os movimentos, aulas públicas, audiências públicas. Quem está na academia pode ter um papel importante aí, caso se ponha à disposição. À medida que as ideias vão se formando, é possível testar sua recepção online, em assembleias, ver como as pessoas respondem, ir reformulando-as, conquistando adesão. Lembremos que, aqui no Brasil, a reforma do direito autoral e o Marco Civil da internet foram parcialmente construídos em processos assim. Pode não ser perfeito, mas nenhum processo é.

Mas e quem seriam os mediadores? A liderança distribuída é um cenário propício para o “oportunismo”, mas oportunismo não é necessariamente uma coisa má, significa apenas saber tirar o melhor de oportunidades. Neste sentido, é a essência da ação prática. Se alguém conseguir se posicionar como mediador, e logo ficar claro que está negociando em seu próprio interesse, acabará rapidamente desconstituído. O “oportunista do mal”, que explora as oportunidades para seus próprios fins, também é um “mau oportunista”, não vai durar. Mas não é impossível que quem assuma este papel — uma organização, um grupo, indivíduos — o faça bem. A posição de representante numa situação como a que atravessamos é, na verdade, extremamente ingrata, porque a legitimidade está no fio da navalha todo o tempo. Manter-se legítimo implica entender que os limites da legitimidade são muito estreitos, que é preciso escutar mais que falar, colocar-se na posição de veículo ao invés de protagonista. Como diria Maquiavel, ao “oportunista virtuoso” não basta a Fortuna, é preciso virtù.

João Pedro Stédile declarou recentemente: a mobilização “da juventude” é legítima, porque é sintoma de problemas estruturais latentes, mas quem tem que apresentar um “programa de mudanças” são os “movimentos sociais organizados”. Note-se a equivocidade desta expressão: ela se refere a qualquer tipo de organização, a organizações nos moldes tradicionais, ou especificamente àquelas constituídas nos anos 1980, já reconhecidas como tal? Ainda parece haver aí uma certa resistência ao novo protagonismo, mesmo que misturada com o reconhecimento explícito de que os protestos também abrem oportunidades políticas para o MST. É óbvio que estes novos movimentos terão que desenvolver suas próprias mediações com o tempo; mas digamos que movimentos como o MST queiram também tentar ocupar este espaço e o façam da maneira certa — escutando mais que falando, atentando para o terreno em que se movem, respeitando as diferenças. Quem diz que não poderíamos ter resultados interessantes?

Fonte: Instituto Humanitas.

Foto: Conexões Globais

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