As Guerras do Brasil

Por Celso Martins.

Muitas foram as guerras no Brasil. Muitas.

Nas escolas só nos contam da Guerra do Paraguai porque foi das poucas em que o Exército Brasileiro lutou ao lado do povo. Das poucas em que condes e duques, generais e marechais, unidos a índios, negros, nordestinos e ao cidadão comum brasileiro, realmente lutou pela pátria. Mas muito maiores foram as guerras do Brasil que não são contadas nas escolas para não decepcionar as crianças. Crianças brasileiras, como as de qualquer outro país, querem acreditar que a função dos exércitos seja defender a pátria.

E quem é a pátria? Até as crianças sabem que a pátria não é apenas um mapa e uma bandeira. Inclusive as crianças sabem que a pátria é o povo. Como contar para as crianças da Revolta dos Malês, negros mulçumanos e alfabetizados que não se sujeitaram a ser escravos de portugueses analfabetos? Como contar do “heroico” bandeirante que para vencer os negros de Palmares, covardemente disseminou doenças entre mulheres e crianças distribuindo roupas contaminadas? Como contar que em Canudos sertanejos miseráveis derrotaram 3 expedições do exercito republicano brasileiro, sob as ordens de seus mais importantes comandantes, inclusive o “Corta Cabeças”, coronel Moreira César que matou mais de 100 pessoas na Revolução Federalista de Santa Catarina?

Como contar que o primeiro bombardeio aéreo promovido pelas Forças Armadas Brasileiras ocorreu em 1937 no Caldeirão de Santa Cruz do Deserto no sertão do Ceará, e deixou um saldo de 400 mortos? Todos brasileiros e pobres.

Como contar que o exército brasileiro fugiu de medo quando um filho de escravos se rebelou contra a ignomínia da chibata aplicada pelos oficiais da Marinha como castigo aos subalternos? Como contar que a Marinha faltou com a honra e ao invés da anistia prometida a João Cândido o encarceram com seus 16 companheiros assassinados por asfixia? E que como único sobrevivente o Navegante Negro foi perseguido até sua morte em 1969 e em 2008, postumamente, recebeu a anistia prometida em 2010 se tornando Herói e Patrono dos Direitos Humanos no Brasil?

O que iriam pensar as crianças brasileiras?

No entanto, o historiador e oficial militar Nelson Werneck Sodré insistia que uma pátria é a verdadeira história de seu povo e de suas instituições, inclusive as Forças Armadas. Os livros de Werneck Sodré foram queimados e ele foi perseguido por seus companheiros de farda por ser nacionalista como o Tenente Leônidas Cardoso, pai do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Num recente e muito oportuno texto, “O que é ser brasileiro”, o jornalista mineiro Mauro Santayana apesar de reconhecer a importância do governo Lula para a democratização e a redução das desigualdades sociais, lamenta que dentro das circunstâncias em que governou não ter sido possível ao ex-presidente desfazer o produzido pela subserviência de Fernando Henrique aos ditames de Washington, traindo ao próprio pai e a Constituição Brasileira através de emendas que alijaram nossa economia da segurança planejada pela Constituinte de 1988.

Santayana enaltece a percepção da Presidenta Dilma Rousseff ao se pronunciar preocupada com as brechas daquelas emendas que tem permitido abusos de capitalistas estrangeiros que nos últimos anos aqui têm estabelecido gigantes latifúndios. O jornalista alerta para urgentes providências se reportando a mais uma das tantas guerras omitidas do Brasil.

Mais uma guerra dos traidores da pátria contra o povo brasileiro, conforme se atesta neste parágrafo de Santayana:

“Na segunda década do século passado, em uma imensa serraria de propriedade de Percival Farquhar, a Southern Brazil Lumber & Colonization Corporation, em Três Barras, no território então contestado entre o Paraná e Santa Catarina, a bandeira norte-americana era hasteada todas as manhãs e recolhida ao por do sol. À cerimônia deviam assistir, em postura respeitosa, os trabalhadores brasileiros. Essa insolência ianque, entre outras causas, levou os caboclos da região a uma guerra que durou quatro anos e foi derrotada a ferro e fogo pelas tropas federais. É necessário evitar que sejamos levados a situação semelhante no futuro.”

Num minucioso trabalho de pesquisa, Celso Martins, jornalista e historiador catarinense, resgatou mais esta história omitida. Na região onde se deram os fatos comentados por Mauro Santayana, Celso levantou documentos inéditos e recompôs os detalhes dos motivos que moveram os líderes populares da Guerra do Contestado e os sortilégios empregados pelas forças oficiais em mais esse combate ao povo.

Em curtas crônicas a serem periodicamente distribuídas pela internet, Celso disponibilizará um resumo de como brasileiros lutaram pela soberania nacional e foram massacrados por aqueles dos quais qualquer criança imagina proteção e defesa ao que constitui uma pátria.

Importante acompanhar a série de crônicas do Celso sobre a Guerra do Contestado para que, cientes de nossa história como recomendava Werneck Sodré, possamos requerer da atual Presidenta e dos futuros dirigentes do país o que recomenda Santayana: uma reformulação urgente das emendas e leis criadas por aqueles que nos traíram no passado ainda recente.

  Raul Longo

Crônica 1

* Fotos: Celso Martins (Irani, novembro de 2011). Cemitério do Contestado no Irani. Pinheiros com neblina.

Celso Martins da Silveira Júnior, Laguna-SC, 23.11.1955. Jornalista (desde 1976) e historiador (2003-2007, Udesc). Autor de “Os Comunas – Álvaro Ventura e o PCB Catarinense” (1995), “Farol de Santa Marta – A esquina do Atlântico”, (1997), “Aninha virou Anita” (1999), “Tabuleiro das Águas” (2001), “Os quatro cantos do Sol – Operação Barriga Verde” (2006) e  “O mato do tigre e o campo do gato – José Fabrício das Neves e o Combate do Irani” (2007), entre outros. Atuou nos seguintes veículos: jornais O EstadoA NotíciaJornal de Santa CatarinaA GazetaBom Dia DomingoDiário Catarinense (Diários Associados) em Florianópolis e diário Extra de Joinville; revista Mural; rádio Guarujá; TV Barriga Verde. Contato: [email protected].
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Crônicas do Irani (1)

Motivações de um combate

Ao longo do ano permanecem discretas, com suas folhas alongadas e pontudas, mas quando chega a Primavera e se aproxima o dia de Finados, as flores brotam com uma singela exuberância, enfeitando o Cemitério do Contestado, no município do Irani, região do meio-oeste catarinense. Ao lado existe um museu e, mais adiante, o local do combate de 22 de outubro de 1912, estabelecido pela historiografia como o marco inicial da Guerra do Contestado.

O lugar é conhecido como Banhado Grande do Irani, Faxinal dos Fabrício, símbolo da presença das famílias vindas da região de Passo Fundo-RS, entre fins do século 19 e início do século 20, área indicada a eles por um “monge” – entre os rios do Peixe, Iguaçu e Uruguai. Quase todos estiveram envolvidos nas lutas ocorridas no Sul do Brasil entre os anos de 1893 e 1895, episódio conhecido como Revolução Federalista.

Eram quase todos, maragatos ou federalistas, antigos liberais no Império, muitos dos quais pegaram em armas contra o domínio de Júlio de Castilhos. Derrotados e perseguidos de alguma forma no pós-conflito, buscaram refúgio nos campos do Irani, entre Concórdia-SC e Palmas-PR, dedicando-se ao plantio de milho associado à criação de porcos, à pecuária, à extração da erva-mate e a coleta do nó-de-pinho. Adotavam a antiga religiosidade católica simbolizada pelo culto a São João e ao Divino Espírito Santo.

A prosperidade e a paz iniciais foram quebradas por um fenômeno chamado capitalismo, momento em que a terra que tinha valor de uso passa a ter valor de mercado. As mesmas terras que antes pertenciam à União (Império), com a República passam às mãos dos estados e rapidamente repassadas a empresas interessadas na colonização e na exploração das riquezas naturais, sobretudo a madeira, os pinheirais.

Os antigos habitantes da região, brasileiros outrora estimulados pela política oficial do uti possidetis, ou a posse como garantia de ocupação e conquista de territórios reivindicados pela Argentina, tiveram seu modo de vida desestruturado, as relações sociais como as de compadrio abaladas ou mesmo rompidas em muitos casos. O caboclo que garantiu aquelas terras para a Nação, fonte de fartura alimentar, vestuário e moradia, se vê ameaçado em seu presente e futuro.

Não são apenas os ecos da modernidade que chegam aos sertões. As bases desta mesma modernidade, ou do capitalismo nascente, se transferem para estas áreas anteriormente “esquecidas” pelo poder público e pela própria Nação. É o fermento da revolta. João Maria anunciara o Apocalipse próximo em suas peregrinações, fizera profecias do que estaria por vir – a ferrovia, a extração mecânica de uma quantidade descomunal de pinheiros e outras árvores nobres, o cercamento e a demarcação das terras e sua venda a famílias vindas do Rio Grande do Sul.

Momento em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, como dizia Marx, ou seja, quando nada do que foi será, o prolongado instante de transformação da paisagem, dos hábitos e costumes, das relações familiares, religiosas, sociais e econômicas.

Com os homens e mulheres do Irani as coisas não foram diferentes. Fazendeiros de Palmas, então a região mais importante do interior do Paraná, escrituram as terras dos campos de Palmas até o rio Uruguai. Entre estes “posseiros” estão os Fabrício das Neves, sobretudo José, parceiro de José Maria de Castro Agostinho. Ao contrário do que a historiografia e as más-línguas tentam impor, José Maria não era nenhum desequilibrado, não existem provas de ser desertor, nem de defloramento em Palmas.

“Invasão”

O que temos são relatos como os de Antônio Martins Fabrício das Neves, confirmando a presença de José Maria entre os moradores do Irani. Também existem registros de sua presença em Palmas e outras cidades do Paraná. Outros relatos situam o monge como amigo do coronel Miguel Fragoso, na região de Engenho Velho, atual Concórdia. Sua presença em Campos Novos se dá apenas em fins de 1911, depois vai a Taquaruçu (Curitibanos), onde fica até setembro, quando volta ao Irani.

José Fabrício estava com ele e oferece hospedagem ao grupo de 40 pessoas, aproximadamente. Em seguida todos se estabelecem na casa de Thomaz Fabrício das Neves (irmão de José Fabrício), seguindo por último para a residência de  um tio de ambos, Miguel Fabrício das Neves, onde se estabelece o reduto.

A chegada de José Maria no Irani, disposto a resistir às ameaças de expulsão das famílias ali estabelecidas, foi a senha para que os fazendeiros de Palmas entupissem os jornais de Curitiba alarmando a população: tratava-se de uma invasão de catarinenses ao território paranaense visando forçar o cumprimento de sentenças judiciais entregando a região ao estado vizinho, Santa Catarina. Criou-se um estado de comoção. Estudos realizados no Paraná indicam a intensidade da campanha desenvolvida a partir de Palmas.

A partida da força policial do Paraná para a região do Irani, sob o comando do coronel João Gualberto, oficial ilustre e de largo preparo militar, representou a oportunidade para os fazendeiros de Palmas se verem livres dos “posseiros” dos campos do Irani. A antiga Questão de Limites foi usada com habilidade para a consecução de objetivos escusos. O coronelismo nascente e dominante na Primeira República dava as cartas, como deu as cartas em todo o episódio do Contestado, envolvendo os militares na carnificina e, mais recentemente, culpando a ferrovia por tudo que aconteceu na região.

As flores que anualmente inundam de branco o Cemitério do Contestado no Irani, lançam os primeiros brotos por volta do dia 22 de outubro, como a homenagear os combatentes mortos há 99 anos. As pontas das folhas que terminam em espinhos abdicam do aspecto ameaçador exatamente nesse período em que lembra os mortos. A vida celebrando aquele que deu a vida na defesa de seu chão.  (Por Celso Martins, outubro de 2011)

Fonte

MARTINS, Celso. O mato do tigre e o campo do gato. José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007.

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