As facções e a falácia da ausência do Estado

ilustracao_artigo_catarina_pedrosoPor Catarina Pedroso.

Diante do cenário acentuado de rebeliões e mortes no sistema prisional, sobressaiu a análise de que ocorre, no país, uma guerra de facções pelo mercado de drogas. Essa leitura, entretanto, parte de uma premissa enganosa que distingue tais organizações e o Estado como se fossem polos opostos de um mesmo processo.

A partir dessa perspectiva, a presença ou a ausência do Estado seriam decisivas para que as facções perdessem ou ganhassem força; como se, o Estado se retirando, estivesse colocado então o ambiente perfeito para a proliferação desses grupos. Como antídoto, bastaria o Estado se fazer presente para que se enfraquecessem.

Por muito tempo, governadores e membros do sistema de Justiça minimizaram a existência das facções como forma de esconder os bastidores da estabilidade do sistema prisional, sobretudo onde algumas destas são hegemônicas, como é o caso de São Paulo. Agora, já não é mais possível negar que tais organizações estão espalhadas por todo o território nacional e em clara ascensão. Tudo indica que, mais do que isso, está em andamento uma reorganização geopolítica das facções brasileiras, em disputa por rotas, mercados e territórios. A expansão do Primeiro Comando da Capital ao longo dos últimos anos para diversos estados não é mais segredo para ninguém, com a consequente proliferação de outros grupos rivais.

As recentes mortes nas unidades prisionais de Manaus, por sua vez, trouxeram para o debate público um fato já conhecido para quem lida com as temáticas de segurança pública e sistema prisional: há, neste Estado, uma disputa pela fronteira amazônica, com o crescimento do PCC na região, em franco confronto com a facção Família do Norte, até então hegemônica. Além disso, a fronteira com o Paraguai também vive uma situação de instabilidade após o assassinato de Jorge Rafaat, que deixou em aberto o domínio sobre esse território estratégico para a passagem de drogas entre os países. Não se pode deixar de mencionar, também, o recente rompimento entre o PCC e o Comando Vermelho, que desestabilizou os seus domínios territoriais, assim como as unidades prisionais onde seus membros estão custodiados.

Por muito tempo, governadores e membros do sistema de Justiça minimizaram a existência das facções como forma de esconder os bastidores da estabilidade do sistema prisional, sobretudo onde algumas destas são hegemônicas, como é o caso de São Paulo

Entretanto, ao contrário do que se pode pensar, o avanço e as disputas entre facções não se dão no vácuo estatal, ou seja, por uma ausência do Estado que, ao se retirar, abriria brecha para que tais organizações crescessem e se multiplicassem. Toda essa movimentação só é possível, justamente, pela política prisional que se desenhou no Brasil nas últimas décadas.

Nesse sentido, a ideia de controle do Estado sobre as unidades prisionais antes atrapalha do que serve para compreender os processos em andamento. Pois, para sustentar essa noção, é preciso conciliar duas ideias que se supõe opostas, mas que na verdade não o são: a forte presença do Estado e o domínio das unidades prisionais pelas facções, longe de se oporem, convivem em simbiose.

Isso porque, se em grande parte das unidades prisionais brasileiras são as organizações que ditam as regras de funcionamento – estabelecendo rotinas, procedimentos e chegando, em alguns casos, a ter a posse das chaves das galerias –, este não pode se dar sem a participação plena do Estado.

As prisões não são espaços alheios ao Estado, onde pessoas são mantidas às custas de forças extraoficiais; ao contrário, esses locais são fruto de decisões políticas de diversos níveis. Desde a aplicação de um conjunto de leis até a administração prisional, é o Estado que promove o encarceramento e que decide em que condições as pessoas serão mantidas. Mesmo quando o Estado repassa a gestão prisional para empresas privadas, não deixa de ser o responsável por essa escolha política e também pela custódia das pessoas. Trata-se de um processo de encarceramento em massa permanentemente implementado por forças estatais.

Se em grande parte das unidades prisionais brasileiras são as organizações que ditam as regras de funcionamento – estabelecendo rotinas, procedimentos e chegando, em alguns casos, a ter a posse das chaves das galerias –, este não pode se dar sem a participação plena do Estado

A recente explosão da massa carcerária se deve, em grande medida, à política de proibição e da chamada guerra às drogas, responsável pelo aprisionamento de aproximadamente 27% das pessoas que estão nos presídios. Ora, é, portanto, justamente o Estado que proíbe algumas drogas e que leva a cabo, por meio de suas polícias e do sistema de Justiça, uma política de repressão e encarceramento aos que usam ou comercializam tais substâncias.

Por meio de seu aparato jurídico formado por juízes, promotores e defensores públicos, o Estado julga e decide se a pessoa deve ser presa e por quanto tempo. A entrada e a saída de pessoas no sistema prisional dependem completamente, portanto, do papel decisivo desses agentes. Mais do que isso, o sistema de Justiça cumpre um papel-chave no encarceramento de uma população específica – notadamente preta e pobre, com um crescimento vertiginoso do público feminino. O perfil punitivista da Justiça brasileira é um dos maiores responsáveis pelo índice inacreditável de pessoas presas, o que resulta em prisões superlotadas e na necessidade de organização interna dos presos.

A construção de mais presídios é, por sua vez, fruto de decisões de governantes e gestores, sob o argumento de minimizar a superlotação das unidades. Tal justificativa esconde, no entanto, o fato de que a construção de novas unidades não apenas não dá conta de minimizar a superlotação, como ainda tem o efeito de aumentar o encarceramento e, assim, fortalecer as facções.

É o Estado, enfim, que define as condições materiais das unidades prisionais, espaços degradantes e torturantes, fruto de contratos superfaturados, de corrupção e da concepção de que presos devem ser maltratados.

A construção de novas unidades não apenas não dá conta de minimizar a superlotação, como ainda tem o efeito de aumentar o encarceramento e, assim, fortalecer as facções

Se não é possível dimensionar com precisão o tamanho e o número de membros das facções, isso se deve ao fato de que, em relação à massa carcerária, a participação ou não na organização é algo fluido e conjuntural. Ao mesmo tempo em que tais grupos possuem estrutura hierárquica, organizada, com divisão de papéis – incluídas, muito provavelmente, figuras de alto escalão, sem as quais os negócios não funcionariam –, elas tem em sua base uma imensidão de pessoas que são levadas a se batizar em função das condições das unidades prisionais.

Ademais, é evidente que a existência e a força das facções não pode se dar sem que o Estado negocie permanentemente com elas, seja financeiramente, seja por meio de combinados que garantam uma certa tranquilidade nas unidades. As organizações faccionais são, nesse sentido, uma saída que muito convém ao Estado, na medida em que ele pode repassar a gestão dos conflitos internos para as próprias pessoas presas. PCC, CV, FDN e tantas outras só se organizam, assim, graças às suas relações íntimas com o Estado.

Por se tratar de políticas muito lucrativas e úteis para a contenção de uma população específica – negra e pobre, não custa lembrar –, o Estado investe no crescimento e no incremento do aparato prisional. No entanto, tal aparato só pode se sustentar às custas da organização faccional. Estado e facção não são, portanto, polos opostos, senão dois elementos complementares na sustentação de um modelo falido, torturante e assassino de segurança pública e de sistema penal.

A existência de organizações faccionais deve ser compreendida, portanto, não como a ausência do poder estatal, mas como produto de uma somatória de políticas públicas e de decisões tomadas a cada dia por aqueles que ocupam posições no Judiciário, no Executivo e no Legislativo. As facções são, enfim, o efeito e, ao mesmo tempo, condição de existência de um modelo de gestão do conflito.

A existência e a força das facções não pode se dar sem que o Estado negocie permanentemente com elas, seja financeiramente, seja por meio de combinados que garantam uma certa tranquilidade nas unidades

É, no entanto, a partir do diagnóstico de guerra de facções que são apresentadas as soluções para a crise do sistema prisional, concretizadas por meio da entrada de Batalhões de Choque e do Exército nas unidades, assim como o envio da Força Nacional para alguns estados e a intensificação do combate ao tráfico. Assim, a ideia de perda de controle pelo Estado cria a falsa imagem de que, diante de um cenário sem leis, onde as organizações imperariam tranquila e impunemente, seria necessária uma intervenção dura e significativa, que pudesse trazer de volta a ordem às unidades prisionais. Vemos, portanto, a repetição de uma fórmula já bastante conhecida: cria-se alarde e medo, para, enfim, justificar a ampliação da participação de forças repressivas.

Além das medidas repressivas serem extremamente violadoras – uma vez que os agentes de segurança são formados para lidarem com as pessoas presas como inimigas –, elas terão como resultado a intensificação do processo de encarceramento e, portanto, de violações e mortes.

A ideia, portanto, de ausência de Estado é apenas uma falácia para justificar e legitimar a presença ainda mais severa e violadora de um Estado que não está preocupado com o cuidado com seus cidadãos, mas com a manutenção de uma máquina extremamente lucrativa.

* Catarina Pedroso é psicóloga e perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Este artigo reflete opiniões pessoais e não do órgão ao qual a autora é vinculada.

Fonte: Ponte.

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