As duas faces da Austrália sobre a violência contra mulher

Por Gemima Harvey.

Uma mulher solicitante de asilo na ilha de Nauru é igualmente digna de suporte quanto uma mulher que vive em Sydney ou Darwin, e precisa de ajuda para abandonar uma situação violenta.

A Austrália alega manter um forte compromisso em acabar com a violência contra as mulheres, mas os seus esforços parecem ser geograficamente restritos. Quando se trata de violência contra mulheres requerentes de asilo e refugiadas em Nauru [onde o país mantém um centro de processamento de pedidos de asilo], o governo aparenta fechar os olhos.

Em 2015, o primeiro-ministro da Austrália, Malcolm Turnbull, prometeu 100 milhões de dólares australianos para prevenir e combater a violência doméstica em todo o país. Ele também lançou uma campanha nacional na mídia visando a intervenção precoce. “Desrespeitar as mulheres nem sempre resulta em violência contra as mulheres”, disse Turnbull, “mas toda a violência contra as mulheres começa com o desrespeito às mulheres.”

A australiana do ano e ativista dos direitos das mulheres, Rosie Batty chamou a atenção para a hipocrisia do governo devido ao desprezo das autoridades em relação às mulheres solicitantes de asilo expostas à violência em centros de detenção australianos em Nauru em uma carta aberta dos Researchers Against Pacific Black Sites, uma organização que visa expor casos de violação de direitos humanos em unidades de processamento que Canberra mantém no Oceano Pacífico. Batty escreveu que “aqueles que se preocupam com a violência contra as mulheres, crianças e outras pessoas vulneráveis em casa precisam se preocupar com o que acontece com essas mesmas pessoas em outros lugares que estão sob nossos cuidados”. Batty também chamou os centros de detenção no exterior (em Nauru e nas Ilha Manus, na Papua-Nova Guiné) de “lugares inseguros e perigosos”.

Agravando a negligência do governo australiano quanto a mulheres solicitantes de asilo, pedidos da imprensa internacional para visitar Nauru são rotineiramente rejeitados pelo governo daquela ilha, com apenas dois meios de comunicação tendo obtido acesso desde 2013. As vozes de solicitantes de asilo e refugiados que vivem em Nauru, incluindo mulheres que sofreram violência e abuso, contudo, continuam a alcançar o mundo.

Mina, por exemplo, fugiu dos abusos sexual e físico cometidos por membros de sua família no Irã, e buscou proteção na Austrália. “Eu ansiava por justiça em um país que alega garantir os direitos das mulheres, mas tudo o que experimentei foi apreensão e pânico.” Mina também descreveu ter vivido por três anos em Nauru em uma tenda “protegida apenas por uma porta de plástico”, e como descobriu que os guardas que deveriam “nos proteger” apenas “nos torturariam e se comportariam como se fôssemos seus escravos”. Então, Mina compartilhou uma experiência de assédio sexual. “Na semana passada, um deles olhou para mim e segurou seu pênis e fingiu que estava fazendo sexo comigo. Pedi a um outro oficial para checar as imagens de segurança e ver como o guarda havia me assediado, mas ele alegou que as gravações da câmera não são mantidas”.

Os “arquivos de Nauru”, uma coleção vazada de dois mil relatórios de incidentes publicadas pelo jornal britânico The Guardian em agosto, expõe a extensão do abuso, agressões e auto-mutilação que ocorreram no centro de processamento de refugiados na ilha. Metade dos relatórios envolve crianças. Alegações de assédio sexual e agressão contra mulheres também aparecem com frequência nos arquivos. Um relatório detalha a alegação de uma mulher de que um motorista de ônibus tirou fotos suas para se masturbar.

Em julho deste ano, o Guardian divulgou que ao menos 29 incidentes de estupro e agressão sexual contra requerentes de asilo e refugiados – incluindo contra as crianças – foram apresentadas na polícia de Nauru, mas nenhuma pessoa foi acusada.

Em agosto de 2015, uma investigação sobre acusações de abuso físico e sexual contra solicitantes de asilo identificou a subnotificação destes tipos de agressões em Nauru, atribuindo isso a motivos familiares ou culturais das vítimas, preocupação com o impacto nos pedidos de asilo, e uma falta de confiança de que medidas seriam tomadas para lidar com as queixas. A campanha Women in Support of Women on Nauru afirmou em um relatório que um grupo de apoio a solicitantes de asilo recebeu uma “alta dramática nos relatos de abuso sexual e físico” em Nauru após a publicação dos resultados da investigação, porque os detentos sentiram que suas reclamações seriam ouvidas e que eles seriam “protegidos de novos perigos”.

Foto: Louise Coghill / Creative Commons / Flickr
Foto: Louise Coghill / Creative Commons / Flickr

Um inquérito do Senado realizado no mesmo mês destacou “temores por segurança generalizados” em Nauru, sendo que “particularmente mulheres” tinham “medo de assédio sexual e violência sexual”. O pavor se estendia até ao simples ato de ir ao banheiro de noite. As instalações sanitárias ficavam “entre 30 e 120 metros de distância” das tendas onde as pessoas vivem e dormem, David Isaacs, professor de Doenças Pediátricas Infecciosas na Universidade de Sydneyobservou em sua apresentação. Isso exigiria “cruzar uma área escura e aberta, muitas vezes sob o olhar de guardas homens”. O professor disse no inquérito que uma mãe confidenciou-lhe que um faxineiro a havia estuprado quando ela foi ao banheiro à noite, mas ela não o havia denunciado por medo de represálias. O Centro de Recursos para Solicitantes de Asilo também destacou esse medo na sua apresentação, escrevendo que mulheres e crianças urinavam em suas camas, usavam absorventes ou agachavam-se do lado de fora de suas tendas para evitarem o risco da violência associada a ir ao banheiro.

O inquérito concluiu que o centro de detenção de Nauru “não é um ambiente seguro para solicitantes de asilo”, afirmando que “esta avaliação é particularmente perspicaz em relação a mulheres, crianças e outras pessoas vulneráveis”.

Uma professora que mantém contato com ex-alunos e seus pais em Nauru, que deseja permanecer anônima, afirma que pouco foi feito para lidar com as preocupações de segurança. “Ninguém jamais foi acusado, há menos pessoas para se protegerem mutualmente e mais lugares para se esconder (por exemplo, tendas em desuso), e as pessoas estão tão desestabilizadas, deprimidas e oprimidas que perderam a vontade de lutar e não são mais tão vigilantes”, diz.

Apesar dos esforços para fugir de suas responsabilidades, os fatos são que o governo australiano instigou a reabertura do centro de Nauru, escolheu a sua administração e financia sua operação. O primeiro-ministro Turnbull está correto: toda violência contra as mulheres começa com as mulheres sendo desrespeitadas. Então, paremos de desrespeitar as mulheres que buscam proteção em nosso país.

Este artigo foi originalmente publicado em inglês, em Rights in Exile Programme.

Fonte: Carta Capital.

Gemima Harvey é mestranda em Proteção de Refugiados e Migração Forçada pela Universidade de Londres. Ele também é jornalista e fotógrafa.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.