As descobertas do relatório da Comissão da Verdade do Rio

Por Maria Carolina Bissoto. 

A CEV-Rio funcionou durante um período de dois anos e oito meses, sendo instituída por meio da Lei 6335 de 24 de outubro de 2012, sendo inicialmente composta por: Álvaro Caldas, Eny Moreira, Geraldo Cândido, João Ricardo Dornelles, Marcelo Cerqueira, Nadine Borges e Wadih Damous (a quem coube a presidência num primeiro momento), sendo que sua saída Rosa Cardoso da Cunha assumiu a presidência em julho de 2015. Em agosto de 2015, Vera Ligia Huebra Neto Saavedra Durão também se juntou à Comissão. Os trabalhos foram desenvolvidos por uma equipe de assessores e pesquisadores, constituído de servidores contratados para a CEV-Rio ou cedidos por outros órgãos da Administração Pública e contou também com pesquisadores contratados por meio do edital nº 38/2013 por meio do Programa “Apoio ao estudo de temas relacionados ao direito à memória, à verdade e à justiça relativas a violações de direitos humanos no período de 1946 a 1988” da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e pesquisadores colaboradores.

A CEV-Rio tinha como função acompanhar e subsidiar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade na apuração de violações aos direitos humanos ocorridas no período de 1946 a 1988, sendo que, assim como ocorreu com a comissão nacional se privilegiou o período após o golpe de 1964.

Procurou-se apurar as graves violações de direitos humanos, englobando-se nessa definição os seguintes crimes: prisões ilegais e arbitrárias, torturas, mortes (execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais) e desaparecimento forçado, entretanto, a CEV-Rio buscou também apurar outros tipos de violações de direitos humanos, como a perseguição ao movimento negro, a remoção forçada de moradores de favelas, a expropriação de terras de trabalhadores rurais, a discriminação contra mulheres e homossexuais e a restrição dos meios de subsistência e da qualidade de vida dos trabalhadores urbanos; temas que apesar de não serem conceituados como graves violações de direitos humanos atingiram milhares de vidas e estão ligados à prática de prisões, torturas, desaparecimentos forçados e execuções.

A CEV- Rio estabeleceu cinco frentes de trabalhos:

1) mortos e desaparecidos políticos (militantes políticos que nasceram ou morreram/desapareceram no Estado do Rio de Janeiro);

2) planos e atentados terroristas praticados por agentes do Estado;

3) financiamentos, estruturas e institucionalidade da repressão;

4) centros clandestinos e oficiais de repressão e lugares de resistência;

5) observatórios para a não-repetição.

Foram instituídos quatro grupos de trabalho para o subsídio da CEV-Rio. Esses grupos foram: GT DOPS; GT Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical; GT Testemunhos e GT Casa da Morte de Petrópolis.

A CEV-Rio realizou oitenta audiências públicas, sendo a maioria Testemunhos da Verdade e ouviu mais de duzentas pessoas.

São enumerados no capítulo 16 do relatório 163 mortos ou desaparecidos políticos, que nasceram ou morreram/desapareceram no Estado do Rio de Janeiro no período de 18 de setembro de 1946 a 05 de outubro de 1988, marco temporal sob competência da Comissão.

A Comissão identificou 21 locais de tortura, contabilizando os oficiais e os centros clandestinos.

Foram enumerados 181 agentes que comprovadamente são autores de graves violações aos direitos humanos. A lista acrescenta os nomes de José Paulo Boneschi, José Ribamar Zamith e Magno Cantarino Motta (Guarany), que não constavam no relatório da Comissão Nacional da Verdade.

A parte VI do relatório dedicou-se a análise das heranças da ditadura, sendo a violência uma delas. Torturas, execuções, desaparecimentos forçados, remoções forçadas, criminalização dos movimentos sociais continuam sendo uma marca da nossa democracia, atingindo, principalmente, aos negros, aos moradores de periferias e aos pobres.

O papel dos empresários no golpe e no financiamento da repressão

 No capítulo 4 do relatório (“A ditadura como implementação de um modelo de desenvolvimento”) procurou-se discutir o modelo econômico implantado pelo regime militar, que favoreceu e acelerou a concentração de capitais. O capítulo mostra a participação empresarial no golpe civil-militar, por meio do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que reuniu empresários e militares vindos da Escola Superior de Guerra (ESG), para promover cursos e seminários que formaram os quadros que ocuparam postos na administração pública do regime militar. É demonstrado também no capitulo o crescimento vertiginoso das empreiteiras e o massivo apoio que as Organizações Globo deram ao regime, o que propiciou o seu crescimento, embora ainda seja necessário um estudo mais aprofundado do papel que a emissora teve na ditadura.

Os empresários tiveram também um papel importante no financiamento dos órgãos de repressão. Apesar de geralmente o tema ser debatido em São Paulo, visto o funcionamento da Operação Bandeirantes (OBAN), financiada por meio de uma “caixinha” arrecada junto aos empresários, como um laboratório para a implantação dos DOI-Codis pelo país, o relatório da CEV-Rio aborda a participação de empresários no financiamento de locais de tortura como a Casa da Morte de Petrópolis e a Usina de Cambahyba em Campos de Goytacazes.

A repressão no campo

 A CEV-Rio mapeou 219 casos de violações ocorridas no campo, que envolvem assassinatos, prisões, desaparecimentos, torturas, agressão física e contratos forçados de parcerias e arrendamentos. São enumerados 48 camponeses atingidos pela repressão no Estado do Rio de Janeiro, sendo que 16 mortos e 1 desaparecido foram incluídos na lista de mortos e desaparecidos apresentada pela Comissão.

A ditadura nas favelas cariocas

 A violência nas favelas cariocas não começou durante a ditadura e nem terminou com o seu fim, até hoje ainda se vê resquícios da perseguição a população que vive nas favelas. No período da ditadura registrou-se que uma das grandes violações praticadas contra os moradores das favelas foi a remoção forçada, sendo registrado que somente entre os anos de 1964 a 1973 mais de cem mil pessoas foram atingidas por essa violação. É o caso, por exemplo, da remoção ocorrida na Favela do Esqueleto no bairro do Maracanã em dezembro de 1964.

Outra grande marca do cotidiano das favelas no período foi a sua militarização, argumentando-se, por um lado que os moradores estariam propensos a criminalidade e por outro, que a favela poderia atuar como base para uma revolução comunista.

Ditadura e racismo

Assim como ocorreu com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, a CEV-Rio também dedicou um capitulo a análise da perseguição aos negros. O mito da democracia racial foi utilizado pela ditadura como uma forma de controle ideológico e serviu para reforçar a violência praticada pelo regime. A prática policial de prisões arbitrárias, invasões domiciliares, torturas físicas e psicológicas, blitzes, grupos de extermínio a que os negros estão submetidos, principalmente quando vivem em favelas, ampliou-se durante a ditadura. Outra grande marca do regime foi a perseguição a grupos críticos ao racismo e à discriminação racial, que eram constantemente monitorados pelos órgãos de segurança.

A pesquisa “Testemunho como Janela: o Perfil dos Atingidos e a Estrutura Repressiva do Estado Ditatorial no Rio de Janeiro a partir de Testemunhos dados à Comissão de Reparação do Estado do Rio de Janeiro” realizada pela UFRJ, citada no capítulo, identificou que em 63 processos o atingido foi identificado como negro ou pardo, sendo que 43 casos envolviam tortura física ou psicológica.

O caso Rubens Paiva

O engenheiro Rubens Paiva foi sequestrado de sua casa no dia 20 de janeiro de 1971 por militares do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), sendo levado para o 3º Comando Aéreo e posteriormente para o DOI-Codi do I Exército, local onde foi barbaramente torturado, o que causou a sua morte, sendo que seu corpo encontra-se desaparecido até hoje. Durante muitos anos o Exército sustentou a versão de que Rubens Paiva teria sido sequestrado por militantes que abordaram o carro em que ele estava sendo conduzido  a uma diligência pelo coronel Raymundo Ronaldo Campos. Entretanto, em depoimento a CEV-Rio o coronel relatou que na madrugada do dia 21 para o dia 22 de janeiro o major Francisco Demiurgo Santos Cardoso, chefe do setor de operações do plantão, mandou que ele pegasse o carro de Rubens Paiva e levasse a um lugar bem longe e tacasse fogo para dizer que o carro havia sido interceptado por militantes, para que essa desculpa fosse utilizada para “justificar o desaparecimento de um prisioneiro”, que somente mais tarde o coronel Ronaldo Campos viria a saber se tratar de Rubens Paiva.

O coronel reformado do Exército, Paulo Malhães, em depoimento à CEV-Rio admitiu a sua participação no ocultamento do corpo de Rubens Paiva. Segundo Malhães o corpo primeiramente teria sido enterrado no Alto do Boa Vista, mas pouco tempo depois os militares do DOI perceberam que uma obra de calçamento da estrada poderia levar ao descobrimento do corpo, portanto, o corpo foi trasladado para a Barra da Tijuca. Malhães admitiu ter participado de um segundo desenterro na Barra, sendo que o corpo já em estado de putrefação foi transportado por sua equipe em um saco impermeável e jogado num rio na região de Itaipava.

O atentado à OAB

No dia 27 de agosto de 1980 uma carta-bomba endereçada ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Eduardo Seabra Fagundes, causou a morte de sua secretária Lyda Monteiro da Silva. O atentado foi praticado pelo grupo de extrema direita, Vanguarda de Caça aos Comunistas (VCC), que não concordava com a abertura do regime. Foi feito de tudo para que os autores não fossem identificados e punidos, manipulando, inclusive, um retrato falado feito pela única testemunha ocular. No dia 11 de setembro de 2015 a CEV-Rio apresentou um dossiê que comprova que o atentado à OAB foi obra de oficiais ligados ao Centro de Informação do Exército (CIE). Por meio dos depoimentos coletados apurou-se que o sargento Magno Cantarino Motta, que adotava o codinome “Guarany”, foi quem entregou a carta a Dona Lyda, sendo a ação comandada pelo coronel Freddie Perdigão Pereira e a bomba confeccionada pelo sargento Guilherme Pereira do Rosário, morto no atentado do Riocentro em maio de 1981 devido a bomba que carregava ter estourado em seu colo.

Recomendações

A CEV-Rio traz 40 recomendações divididas em: 1) medidas e reformas institucionais; 2) reformas constitucionais e legislativas; 3) políticas públicas de memória e de educação em direitos humanos; 4) medidas de seguimento das ações e recomendações da CEV-Rio.

Entre as medidas de reforma institucional podem ser citadas: a responsabilização dos agentes estatais perpetradores de violações aos direitos humanos; a reforma das polícias do Estado do Rio de Janeiro; a reforma do sistema prisional e a cassação de gratificações e honrarias concedidas a agentes públicos e particulares envolvidos na prática de violações aos direitos humanos.

Entre as reformas constitucionais e legislativas citam-se: a desmilitarização da polícia; extinção da Justiça Militar da União e dos Estados e a alteração da Lei 9140/05 para que permita a análise de casos de perseguição contra camponeses e indígenas, entre outros grupos.

Uma das recomendações relativa à questão da memória é a alteração de nomes de logradouros e instituições públicos que homenageiam agentes públicos e privados vinculados à prática de graves violações aos direitos humanos, garantindo a participação da sociedade local na deliberação do nome e processos de renomeação que levem em conta expressões de diversidade sexual, racial, social e de gênero. É também recomendado a ampla divulgação do relatório da CEV-Rio nas escolas e a inclusão do tema da ditadura militar e suas heranças nos currículos escolares.

Assim como ocorreu em outras comissões, recomenda-se a criação de um órgão permanente que leve adiante as investigações realizadas pela CEV-Rio e cumpra as suas recomendações.

Um relatório de uma Comissão da Verdade nunca é um ponto final, mas sim um ponto de partida. As lutas por uma sociedade mais justa, com respeito aos direitos humanos são constantes e a divulgação do relatório da CEV-Rio é mais uma etapa dessa luta.

 Maria Carolina Bissoto é advogada, Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, foi pesquisadora júnior da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cargo exercido junto à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.

Foto: Reprodução/Ponte

Fonte: Ponte

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