As agências de classificação de risco ‘fazem política’ no Brasil

É incrível a visibilidade que as agências de classificação de risco, com seus critérios pretensamente científicos, recebem nos noticiários brasileiros.

Por Felipe Calabrez.*

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Existem coisas que, de tão óbvias, são cotidianamente omitidas pelo discurso, ficam veladas. Quando ditas, parecem tão reveladoras que causam até certo espanto. Assim pode ser entendida a afirmação de Regina Nunes, presidente da Standard&Poor’s (S&P) no cone sul, em evento realizado no Rio de Janeiro em 2 de novembro. “Nossa obrigação é única e exclusivamente com o investidor” (Valor, 3/12/2013).

É conhecido o papel das agencias de rating, que dão notas às dívidas de países e produzem constantes relatórios avaliando a política econômica adotada por cada país. Suas avaliações nos vêm aos ouvidos diariamente através dos jornalistas de variedades, que costumam omitir aquilo que a presidente da S&P afirmou, e nos apresentam o alarde dos mercados como um perigo real que afetaria igualmente a tudo e todos. É claro que sabemos do importante papel do investimento produtivo e do capital financeiro, que deve cumprir o papel de financiador daquele investimento. Enquanto houver capitalismo, um sólido mercado de capitais é essencial, por mais atroz que sejam as injustiças de classe que essa divisão do trabalho produza. Ocorre, entretanto, que nem sempre o capital financeiro se presta a essa função. Não o faz quando a política macroeconômica torna mais atrativo o investimento em títulos públicos. Ocorre também que, nesse estado de coisas, o setor financeiro, além de parasitário, pretende-se descolado do mundo real, pretende-se o porta voz da totalidade. Senão vejamos: na mesma semana duas notícias econômicas foram divulgadas: 1ª) “Nova queda no índice de desemprego”; 2ª) “Pessimismo dos investidores estrangeiros atinge patamar recorde”. Alguém advinha qual delas o digníssimo Ali Kamel escolheu para dar o tom de seus telejornais?

Não custa enfatizar que a política econômica do governo Dilma tem, sim, deixado a desejar. Seja por qual razão for (não há consenso quanto a isso), suas medidas de estímulo fiscal e créditos subsidiados não aumentaram o tão importante PIB. O coro hegemônico, liberal, afirma que o problema foi o excesso de “intervenção estatal na economia” (um termo conceitualmente tão equivocado que já revela sua ideologia). Esse alegado intervencionismo tiraria a credibilidade do governo, desencorajando os empresários a investir. A palavra chave é credibilidade. E isso quem diz é uma das maiores agências de rating, a S&P, aquela que deu perspectiva positiva para o Lehman Brothers poucos dias antes de o Banco entrar em concordata, sob intervenção do Federal Reserve (FED).

Voltemos ao vínculo entre agências de classificação de risco e Estado. As agências avaliam a política macroeconomia, substancialmente, a partir de dois indicadores: Relação Dívida pública/PIB e superávit primário alcançado. Os governos devem atingir patamares aceitáveis para esses indicadores, e não é demais lembrar que quem tem ditado quais são os patamares aceitáveis é o próprio mercado. Diante disso, parece mesmo que aqueles critérios foram criados para garantir única e exclusivamente os interesses dos investidores, que podem ser resumidos em dois termos: credibilidade e rentabilidade. A política macroeconomia, avaliada periodicamente, deve satisfazer a esses critérios, e uma das principais estratégias retórica dos financistas é explorar o medo da volta da inflação, que atingiu níveis insuportáveis na década de 1980.

Assim, com um raciocínio assaz simplista, propaga-se o tempo todo a ideia de que cabe ao Banco Central (independente dos governo e eleitores, mas dependente do “mercado”) cuidar (exclusivamente) para que a inflação não volte, aumentando a Selic, que, não por acaso, é a taxa que remunera os títulos avaliados por aquelas agências, cujo compromisso é com a rentabilidade oferecida aos mercados. E estes, como sabemos, votam todos os dias. Para quem duvida desta afirmação, vejamos um exemplo recente: Na terça feira (03/12), o jornal Valor Econômico exibiu reportagem de capa denunciando o que chamou de “triangulação de recursos” entre a Caixa Econômica Federal, Eletrobras e Tesouro Nacional. A medida tratar-se-ia de uma oferta de crédito subsidiado, por parte da Caixa, para oito subsidiárias da Eletrobras: O objetivo; desonerar o Tesouro, que de outra maneira arcaria com esse custo, como vinha fazendo desde então. A finalidade de tal medida era, como não podia deixar de ser, facilitar o cumprimento da meta de superávit primário das contas públicas. No entanto, já na quarta-feira (04/12), o mesmo jornal noticia que, pressionado pelos juros futuros e pelo perigo de rebaixamento na nota de crédito do país, o governo voltou atrás com a medida. Ela foi lida pelos mercados como mais uma manobra contábil e, por conseguinte, imediatamente abandonada pelo governo. Este, em menos de 24 horas, tratou de tranquilizar os mercados e anunciou que voltará a emitir títulos públicos ainda esse ano, de onde tirará os recursos necessários.

A finalidade do exposto acima não é discutir ciclo orçamentário ou quais gastos devem ser incluídos nas despesas primárias e quais não devem. Em que pese a razoabilidade ou não de tal proposta, o que o fato nos revela pode ser desdobrado em três elementos interdependentes, quais sejam: i) O Estado possui restrita margem de manobra para operar sua política econômica, tanto fiscal quanto monetária; ii) Suas medidas são monitoradas diariamente, devem respeitar o humor dos mercados e satisfazer o critérios das agências de classificação de risco e, iii) Os beneficiados com a “política econômica correta” são aqueles que definem qual é a política econômica correta: o sistema financeiro, seus investidores e financistas, que encontram eco nos principais jornais do país.

É fundamental que se compreenda que as críticas à medida de “triangulação de recursos” que o governo ensaiou usualmente recorrem a ideias como “falta de transparência” no trato das finanças públicas, falta de responsabilidade com os recursos públicos e perigo de volta da inflação. Como toda boa mentira, essa também possui certa dose de verdade. Entretanto, a medida que o governo usou para acalmar os mercados foi a declaração de que, em lugar da “manobra contábil” que pretendia fazer, voltará atrás e financiará os crescentes custos mediante colocação de mais títulos públicos no mercado. Ufa, ganho garantido. Se lembrarmos também que os principais compradores dos novos títulos que serão lançados no mercado são clientes das tão credíveis agências de classificação de risco, fica mais fácil compreender como, sob a retórica de transparência e responsabilidade, termos palatáveis a qualquer cidadão, o que se pretende mesmo é a garantia de ganhos privados de natureza não-produtiva, para dizer o mínimo.

Diante desse quadro, onde a política econômica é apresentada como “ciência econômica”, cumpre resgatar a política. Eleger prioridades nacionais, definir pactos e alianças (não apenas no nível partidário, mas sócio-político) parecem ser medidas fundamentais. Mas, antes de tudo, o fundamental é redefinir os termos do debate. Sair da prostração em que se encontram as discussões políticas, rejeitar os pressupostos que sustentam o sagrado “tripé macroeconômico”, que nenhum partido com reais pretensões eleitorais ousa questionar, haja visto o declarado apoio do assessor econômico de Marina Silva ao modelo do 2º governo Cardoso, caracterizado pelo auge da sacralidade do tripé (metas da inflação, câmbio flutuante e superávit primário), e caracterizado também por taxas recordes de desemprego e pela necessidade da contração de um empréstimo de cerca de 30 Bilhões de dólares com o FMI ao final melancólico de seu segundo mandato.

A incrível visibilidade que as agências de classificação de risco, com seus critérios pretensamente científicos, recebem nos noticiários nos indica que os estragos que a década de 1990 fez ao pensamento crítico ainda se fazem ouvir fortemente por aqui. As lições que pregam ainda são as mesmas: reforma da previdência, desvinculação de receitas – elas seriam muito rígidas no Brasil, culpa da retrógrada Constituição de 1988, que, apesar de ter virado uma colcha de retalhos com o Plano Real, deveria passar por mais reformas. Essa retórica liberal parece eterna: Não deu certo? É porque faltaram reformas, faltou liberalismo. Cumpre, diante disso, mudar as cartas, não aceitar as que estão dadas. Um bom começo é clarificar que o sistema de previdência ou os gastos sociais não são problemas econômicos apenas, são questões sociais, e, portanto, políticas. A ultrajante fatia do orçamento que vai direto para o sistema financeiro também não é um problema meramente econômico, é político. Ter isso em conta é importante para lembrarmos que, apesar da reduzida margem de manobra, os implementadores de política econômica não são figuras passivas nesse perverso processo de endividamento estatal; eles são atores, que, portanto, apesar de representarem a instituição “Estado”, possuem seus interesses mais concretos e imediatos. E por falar em política e interesses, todo cuidado é pouco, pois, parafraseando um nobre deputado, “pior que tá, fica”; as eleições de 2014 se aproximam e os economistas tucanos, abrigados na Casa das Garças, já sobrevoam como abutres o Banco Central e o Ministério da Fazenda.

*Felipe Calabrez é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorando em Administração Pública e governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).

Fonte: Carta Maior

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