Após abolição, a população negra da cidade de SP foi excluída do mercado de trabalho

Lei Municipal de 1886 proibia escravos do exercício de algumas profissões
Lei Municipal de 1886 proibia escravos do exercício de algumas profissões

 Por Valéria Dias.

Agência USP de Notícias

Leis excludentes, perda de postos de trabalho e discurso das elites deixaram os negros à margem da sociedade

Entre 1912 e 1920, a população negra da cidade de São Paulo perdeu postos de trabalho, foi prejudicada por leis municipais que de forma explicita ou não a proibiam de exercer certas profissões, além de ter sido retirada de terras onde desenvolviam a agricultura de subsistência. “Esses fatores podem ser considerados indícios de que houve uma construção ideológica gestada pelas elites que visava a exclusão do negro da sociedade brasileira”, aponta o pesquisador Ramatis Jacino, professor do ensino médio, em sua tese de doutorado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Jacino analisou cerca de 43 mil boletins de ocorrência emitidos na cidade na segunda década após a abolição da escravatura, entre 1912 e 1920. “Com o fim da escravidão, os únicos documentos oficiais que mencionavam a cor da pele e a profissão exercida eram os boletins de ocorrência da polícia”, explica. O pesquisador também analisou anúncios de jornais da época e alguns processos criminais.

No mestrado, que abordou o mesmo tema, a análise esteve focada na população negra que vivenciou o período pré e pós abolição. Jacino pesquisou os anos de 1872 e 1890 (datas em que houve recenseamento na cidade) e pode verificar quais profissões os negros exerciam na época. A maioria eram ligadas à baixa qualificação e mal remuneradas: trabalhadores domésticos, criados, ama-secas, jornaleiros, carregadores, operários da construção civil, artíficies, parteiras, etc, mas havia também alguns jornalistas, professores e intelectuais.

Já no doutorado, sob a orientação da professora Vera Lúcio Amaral Ferlini, da FFLCH, o foco foi a primeira geração de negros que nasceu após a abolição. O pesquisador comparou os dois períodos e ficou surpreso ao perceber que, de 1912 a 1920, com a industrialização da cidade, os negros haviam perdido as ocupações que antes exercia. Profissões de ama-seca, domésticas e criados começaram a ser exercidas por imigrantes. Isso levou a um processo de marginalização da população negra.

Exclusão legalizada

Para o pesquisador, esse processo de exclusão ocorreu devido a três fatores. O primeiro foi a promulgação de uma série de leis que proibia, de forma implícita ou explícita, que escravos exercessem certas profissões. “Em 1886, por exemplo, uma lei municipal determinava que as profissões de cocheiros, aguadeiros [que carregavam baldes d’água], caixeiros viajantes e guarda-livros [contadores] não poderiam ser exercidas por escravos”, explica.

O segundo motivo é que muitos escravos libertos, antes da abolição, se dedicavam à pecuária e à agricultura familiar de subsistência em lotes de terra pela cidade. Porém, o poder público determinou que esses lotes deveriam ser concedidos aos chamados “homens bons”, ou seja: brancos, cristãos e pais de família. Os negros – todos excluídos desse critério – foram obrigados a abandonar as terras e a se mudar para outras regiões: as mais remotas da cidade.

O terceiro motivo é que uma série de leis gerais acabaram por marginalizar os negros. A Lei de Terras, de 1850, determinava que a posse da terra seria feita mediante a compra. No Império, as terras eram divididas por meio de sesmarias e muitos posseiros eram brancos pobres, índios, caboclos e negros. Com a Lei de Terras, a maioria teve dificuldade em comprar os lotes.

Segundo o pesquisador, muitos empregadores publicavam em jornais anúncios de oferta de emprego. Na maioria, explicitavam a necessidade de o candidato ser branco e imigrante (italiano, alemão), etc. “Em anúncios de grandes empresas da cidade, não encontrei um texto explícito sobre a cor do candidato. Entretanto, na composição do quadro de funcionários, a maioria era estrangeiro e havia pouquíssimos negros”, comenta.

Mito fundador

Durante o Império (1822-1889), diz Jacino, o mito fundador do Brasil era representado pela união de brancos, negros e índios na luta contra os invasores holandeses, nas figuras de Antonio Felipe e Clara Camarão (índios), Henrique Dias (negro) e Matias de Albuquerque (português).

Já na República, proclamada em 1889, esse mito foi alterado pelas elites e a formação do Brasil passou a ser associada à índia Bartira e ao português João Ramalho. “É mais um indício de que a intenção das elites era excluir a figura dos negros da história da fundação do país. O índio era considerado como o “bom selvagem”; já o negro era o “mau selvagem” “, diz.

Na transição do trabalho escravo para o assalariado, intelectuais da Faculdade de Direito de São Paulo, da Faculdade de Direito do Recife, da Escola de Medicina na Bahia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foram construindo um discurso ideológico que foi apropriado pelas oligarquias de que a população negra não era adequada para o trabalho assalariado; que a miscigenação levava à doenças; e que os negros tinham problemas de caráter e que sua idade mental era inferior a dos brancos. “A meu ver, esse discurso tinha a intenção de branquear a sociedade. Para as elites, a sociedade moderna e capitalista que eles almejavam precisava ser branca”, finaliza.

Imagem: Wikimedia Commons

FonteEcoDebate

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