Aparências e aspectos menos evidentes da crise brasileira

Por Eduardo Perondi, para Desacato.info, México.

Há um mundo real em ebulição pulsando por baixo das versões distorcidas que tentam explicar o caos aparente que reina atualmente no Brasil. Enquanto a política se traveste de espetáculo, está em curso uma generalizada piora das condições de vida, rebaixamento de salários e aumento da repressão social. A forma como se manifesta a crise encobre uma estratégia de desintegração da sociedade mesma, necessária para consolidar um profundo processo de reestruturação econômico-social. O golpe contra o governo Dilma Roussef, nesse caso, pode ser parte dessa estratégia, mas não seu objetivo principal.

http://radios.ebc.com.br/votacao-do-impeachment/edicao/2016-04/aprovada-abertura-de-impeachment-da-presidente-dilma-rousseff

  1. A falácia do combate à corrupção

O golpe não está em interromper um governo ruim como o de Dilma. O golpe consiste em que sua destituição seja feita pelo candidato derrotado nas últimas eleições Aécio Neves (citado em boa parte das deleções sobre o esquema de corrupção), em parceria com o réu e Presidente da Câmara Eduardo Cunha e mais o Vice-presidente da República Michel Temer, organizador geral do fisiologismo predador no aparato estatal. Apoiados por congressistas processados e obviamente muitas entidades empresariais. Todos envolvidos no lamaçal da corrupção. Perto disso, as acusações de “pedaladas fiscais” para derrubar Dilma são piadas hipócritas, até porque esse “crime” é praticado por governadores e prefeitos a todo momento e nenhum deles será deposto por isso. Como admitiu o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso recentemente, havia corrupção “também no seu governo e até no tempo de Jesus Cristo”[1], numa tentativa cínica de justificar seu apoio ao impeachmeant, mas que revela a falácia da acusação contra Dilma.

Mas é ingenuidade supor que tais indivíduos orquestram um golpe apenas para salvar a própria pele. São apenas operadores da pá de cal que será jogada sobre as investigações da corrupção sistêmica: a sonegação bilionária de impostos de grandes empresas, os clubes de acordos para saquear grandes obras e empresas públicas, as transferências obscuras de dinheiro a paraísos fiscais.

As investigações da operação Lava Jato (que investiga a corrução na Petrobrás e nas principais construtoras) e da Operação Zelotes (investiga fraudes de grupos como RBS, Gerdau, Ford, Mitsubishi, JBS Friboi e BRF, Bancos Bradesco, Safra e Santander, Embraer, TIM, entre muitas outras) terminarão em uma grande pizza de impunidade saboreada durante o pacto de salvação nacional que se ensaia. Em troca, obviamente Paulo Maluf já não precisará mais se preocupar com a Interpol, Collor poderá circular livremente com suas Ferrari’s, Cunha não será preso nem condenado e Aécio continuará posando como paladino da ética.

Essa é a tragicômica caricatura da impunidade seletiva que reina para os de cima. A punição só serve para lidar com os de baixo: está aí a lei antiterrorismo para criminalizar ativistas que devolvem a lama na porta da Samarco-Vale e manifestantes que fecham ruas congestionadas para defender transporte público; vem aí também a redução da maioridade penal para criminalizar estudantes que ocupam suas escolas. A interpretação judicial do direito de greve logo vai impedir que elas ocorram e suas lideranças serão punidas. A judicialização da questão social já é uma realidade. Isso sem falar na punição extrajudicial: o extermínio de jovens nas periferias, de lideranças camponesas e indígenas.

  1. De onde veio o golpe?

O PT passou 13 anos justificando sua falta de ação em temas considerados importantes por suas bases sociais com o argumento de que não havia correlação de forças suficiente e que a direita estaria voltando com força para retomar o poder. Discutiu-se timidamente temas como democratização dos meios de comunicação, estabelecimento de mecanismos de controle social do poder judiciário, auditoria da dívida pública, reforma agrária e urbana, direito ao aborto, legalização das drogas, medidas efetivas para combater a violência contra mulheres, homossexuais, entre outros. E quando houveram propostas efetivas a respeito, obviamente não avançaram devido à oposição da direita. E o PT aceitou que o palco para resolver tais dilemas era a institucionalidade do Estado, a coalizão com partidos conservadores e moderados para ir avançando em seu projeto na medida do possível. Evitou convocar a população para mudar essa correlação de forças desfavorável.

É uma triste ironia – mas não uma surpresa – que agora o PT seja golpeado por um processo que envolve, entre outras coisas, investigações seletivas da corrupção e atuação partidária de magistrados, manipulação dos fatos e chamado à mobilização pela grande mídia, conspiração às claras e escuras de parlamentares conservadores da base aliada, fisiologistas e corruptos.

Uma pergunta para quem se assustou com os defensores do impeachment justificando o afastamento de Dilma com base em Deus, na família, na moralidade pública: Por acaso estes personagens se esconderam por todo esse tempo e ninguém viu? O que foi feito para diminuir o poder destes senhores “de cima” enquanto eles boicotavam tudo que poderia melhorar a condição dos “de baixo”? O PT deixou de travar as disputas mais importantes enquanto negociava governabilidade com latifundiários como Kátia Abreu, lideranças religiosas como Marco Feliciano, oligarcas regionais como Sarney e Maluf, lobistas de grandes empresas e oportunistas de toda sorte.

Todos os aspectos louváveis dos governos do PT, que o diferenciaram com razão dos anteriores, tiveram que enfrentar fortes resistências das elites (por exemplo as cotas raciais, uma política externa mais progressista, distribuição de renda aos mais pobres) mas nem por isso foram inviabilizados. Se tivesse feito esse embate em outras áreas talvez não tivesse que passar por impeachment, ainda que possivelmente não teria vencido tantas eleições. Mas teria impulsado o debate e a necessidade de as pessoas lutarem por esses temas, teria encorajado a sociedade a disputar seu futuro, teria armado as pessoas com argumentos. Afinal, qual avanço social ou reforma importante ao longo da história brasileira foi feita pelos “de cima” sem que houvesse grande pressão dos “de baixo”?

O PT apostou na institucionalidade, apostou no campo onde as classes dominantes tem imenso controle. Tem razão Eliane Brum[2] quando diz que essa é a mais maldita das heranças do PT. No fim, conseguiu provar apenas que através de eleições a esquerda pode chegar ao governo, mas não ao poder. A direita não tirou férias durante o período petista e agora voltou bronzeada e fascista. A direita nunca deixou de mandar, a burguesia não teve seus interesses principais confrontados. Ela aceitou e tolerou o PT enquanto este renunciou às ruas e garantiu relativa paz social, estabilidade ao regime e lucros ao capital.

Agora, a crise revela uma disputa pela riqueza social que ferve nas entranhas da sociedade de classes: trabalhadores, classes médias, pequenos e grandes setores da burguesia em disputa pra ver quem vai pagar o pato, como bem aponta Virgínia Fontes[3]. Não há mais espaço para a conciliação no país de todos. E o PT é descartado justamente porque já não serve mais para acomodar as contradições do sistema que operou com êxito por mais de uma década. Que o debate político tenha se transformado numa intensa disputa de “bem x mal”, onde os argumentos são defesa da família e Deus, consiste apenas na inevitável distorção enganosa de tais disputas. Ou alguém acha que Dilma seria deposta se seus detratores fizessem campanha aberta em defesa da propriedade privada e dos privilégios, do latifúndio e do extermínio de pobres, do trabalho terceirizado e escravo, do racismo e da homofobia?

Além disso, a constatação de que as manifestações contra o golpe (ainda que tenham crescido muito com a percepção da violação democrática) não empolgaram grandes massas revela a profundidade não admitida desta crise. As coisas já pioraram pra muita gente antes do golpe, o fundo do poço já parece ter chegado para alguns sob mãos visíveis ou invisíveis deste governo. A incerteza do presente e o medo do futuro impelem saídas outras que não a aposta na política: da fé à indiferença, do descrédito generalizado ao pessimismo.

É por pura astúcia (e não ignorância) que os golpistas pregam como pastores a imoralidade da corrupção petista, conhecem bem os termos em que o povo pensa e hipocritamente elaboram seu discurso sob medida. Usurpam o sentimento digno de milhões de brasileiros insatisfeitos e o direcionam seletivamente contra o PT. Acertam no PT, mas também naquilo que um dia este partido representou: a esperança dos de baixo convertida em organização política. É importante não esquecer que Lula foi eleito em 2002 dizendo que a esperança deveria vencer o medo. Uma pena que se tratava então apenas de marketing eleitoral. Talvez demore um tempo até que as pessoas possam novamente direcionar essa expectativa pisoteada em algum outro projeto político. Mas, quando a lição for assimilada, ficará claro também que não adianta terceirizar sua parte da mudança necessária, é preciso ajudar a criar e consolidar as alternativas e saídas.

  1. A face menos visível da crise é também a mais importante

A chantagem e ameaça de impeachment contra o governo de Dilma que se ensaia há mais de um ano, como bem apontou Mauro Iasi[4] à época, não parecia ser o objetivo principal dessa trama, ainda que agora pareça já inevitável a interrupção desse governo. Mas a ameaça serviu como um meio para canalizar a indignação generalizada da sociedade e encobrir a face profunda do que está em jogo nesse momento.

A crise brasileira se explica, em parte, pela desaceleração da economia, especialmente pela queda nos preços das mercadorias que são o eixo de nosso padrão de acumulação: soja, açúcar, minérios, derivados de petróleo, etc. Reflexo da crise estrutural capitalista, esse é o cenário de fundo da crise brasileira e causa maior da insatisfação generalizada. A outra parte da explicação consiste na ofensiva do grande capital monopolista para transformar a desaceleração em recessão, promover uma quebradeira na economia para depois concentrar os negócios nas mãos de poucos. O ajuste fiscal aplicado pelo governo é parte desse segundo momento, assim como a disputa política em torno de quem irá governar durante o ajuste.

O escândalo da Petrobrás não tem a ver com corrupção: o que está em jogo é debilitar e privatizar uma das maiores empresas da América Latina e entregar o petróleo às grandes multinacionais. Como admitiu um executivo da Shell recentemente, o pré-sal brasileiro é um projeto prioritário para essa empresa pelas próximas 3 ou 4 décadas[5]. O mesmo ocorre com outras empresas que o Estado controla: o governo já anunciou a abertura de capital da Caixa e a tendência é que ocorra o mesmo com outros bancos, empresas de energia, água e saneamento, hospitais, etc. As empreiteiras também são vistas como negócios com potencial grande demais para ficar nas mãos de empresário locais – e essa é a razão pela qual alguns deles foram parar na cadeia. Também aqui a corrupção serve apenas de pretexto para abrir o mercado da construção ao capital de fora, como defende claramente as organizações Globo[6], porta-voz oficial dos interesses imperialistas no Brasil.

Os grandes grupos estrangeiros querem estender seus tentáculos sobre esses setores, da mesma maneira que já fizeram ao adquirir a maioria das universidades privadas e como estão fazendo com a aviação civil. Além disso, pequenas e médias empresas falidas pela crise serão adquiridas pelas grandes pelo preço de suas dívidas. Isso explica o ódio das frações menores da burguesia brasileira contra o governo petista. Mas agora a recessão já afeta empresas grandes, e os maiores bancos já separaram bilhões de reais em fundos para enfrentar o calote resultante da crise[7], da qual eles – grandes bancos – sairão ainda mais poderosos. A fração financeira da burguesia, que hegemoniza o poder no Brasil, não tem do que reclamar: nem do governo, que aplica uma política econômica formulada por ela, nem da crise econômica, que lhe assegurou lucros recordes em 2015, a despeito da penúria do resto da sociedade.

O capital monopolista também quer acabar com quaisquer entraves à expansão da fronteira agrícola. Entre as prioridades, segundo deputados da Frente Parlamentar Agropecuária[8], está o fim das restrições à compra de terras por estrangeiros, demanda de corporações como Monsanto e Syngenta, que já monopolizam os mercados de sementes e agrotóxicos. Impedir a demarcação das terras indígenas tal qual determina a Constituição é outra exigência, enquanto 228 povos indígenas que esperam a homologação de suas terras são atacados por jagunços e pistoleiros. Além do assassinato de lideranças e intimidação, as novas táticas de extermínio de indígenas incluem ataques químicos, como o uso de aviões no Mato Grosso do Sul que despejam agrotóxicos nas nascentes de água que abastecem as aldeias[9]. Eixo central das exportações brasileiras, o setor do agronegócio é o que proporciona maiores índices de crescimento da produtividade e as piores condições de trabalho, análogas à escravidão inclusive.

Mas o capital monopolista tem uma outra exigência para fazer as pazes com a economia brasileira. A “questão capital”, como definiu um dos nossos melhores representantes dos interesses estrangeiros[10], é que seja reestabelecida a confiança dos mercados, através de reformas que assegurem a previsibilidade e aumento da produtividade da economia brasileira. Em outras palavras: exige a aniquilação dos direitos dos trabalhadores, flexibilizando as garantias que resistiram às reformas feitas pelos governos tucanos e petistas nos últimos anos, e dessa forma aumentar ainda mais a exploração e as margens de lucro do capital. Não vai faltar capital para a retomada do crescimento, mas só depois que a terceirização passar por cima da CLT, ou que a reforma da previdência transferir para o mercado a poupança dos trabalhadores.

De uma maneira geral, os governos de Lula e Dilma foram coniventes e não enfrentaram abertamente tais interesses do grande capital monopolista. Mesmo assim agora até mesmo os setores da burguesia que mais se beneficiaram durante estes governos parecem apoiar sua destituição.

  1. O impasse continua

As classes dominantes no Brasil estão processando nesse momento um grande acordão político nacional. Os termos desse acordo podem variar: parece claro que Dilma não termina seu mandato, mas não há muita garantia sobre o que virá em seu lugar. Insuflar o povo contra a corrupção serviu para desacreditar a presidenta, mas evidenciou o pântano no volume morto em que se encontra o conjunto da política brasileira, como afirma com precisão Ricardo Antunes[11]. O vice-presidente Michel Temer senta na cadeira presidencial antes da hora e discursa como vencedor de uma eleição que não ocorreu. Mas a rejeição a ele e ao Presidente da Câmara Eduardo Cunha é ainda maior do que contra Dilma. Obviamente ele conta com o apoio indisfarçado do empresariado e dos setores dominantes. Mas será suficiente para governar um país em profunda crise e aplicar um projeto absolutamente impopular? Um governo desse tipo pode compensar a falta de legitimidade apenas com repressão e medidas de exceção?

Nem a grande burguesia tem certeza disso. É claro que os mercadospodem brindar a novidade com elevações artificiais da bolsa e valorização dos ativos brasileiros num primeiro momento. A mídia baixa o tom e os empresários se acalmam. Mas a realidade logo cobrará um chão firme em que as coisas precisam se apoiar. É bom lembrar que os grandes bancos aparentemente estiveram até o momento derradeiro defendendo que a repactuação pudesse ocorrer sem o impeachmeant[12], talvez com renúncia ou novas eleições. Não porque gostem do PT ou não quisessem tirá-lo do governo. Talvez porque sabiam que, em meio a uma crise global do capitalismo, cada passo deve ser bem calculado. Em países de economia dependente como o Brasil, a democracia precisa ser restrita e subsumida ao capital imperialista. Mas passar por cima de suas regras também provoca fissuras no edifício sob o qual se legitimam as estruturas de dominação. As classes dirigentes brasileiras não teriam conseguido golpear o PT sem as mobilizações esquizofrênicas e protofascistas que impulsaram. Quem sabe o futuro lhes demonstre que indicar o caminho das ruas pra fazer valer os interesses de classe pode ser uma tática muito indigesta.

[1] Jornal Valor Econômico, 16/03/2016. http://www.valor.com.br/politica/4484642/citado-por-delcidio-fhc-diz-que-desvios-ocorreram-ate-com-jesus

[2] Jornal El País América, 16/03/2015. http://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/16/opinion/1426515080_777708.html

[3] Portal do Partido Comunista Brasileiro, 19/03/2016. http://pcb.org.br/portal2/10663

[4] Blog da Boitempo, 17/03/2015. https://blogdaboitempo.com.br/2015/03/17/a-adaga-dos-covardes-ou-o-limite-da-imbecilidade-direitista/

[5] Jornal Estadão, 15/02/2016. http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,shell-diz-ter-interesse-em-atuar-no-pre-sal-e-defende-fim-do-monopolio-da-petrobras-,1832574

[6] Jornal O Globo, 30/01/2016. http://oglobo.globo.com/opiniao/condenar-os-corruptos-preservar-as-empresas-15190840

[7] Jornal Folha de SP, 27/03/2016. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/03/1754412-supercalotes-de-empresas-preocupam-grandes-bancos.shtml

[8] Portal da Frente Parlamentar Agropecuária, 21/09/2015. http://www.fpagropecuaria.org.br/newsletter/fpa-entrega-prioridades-ao-presidente-da-camara-dos-deputados-2#.VwqwW0fk9Og

[9] Portal do Conselho Indigenista Missionário, 22/01/2016. http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8557&action=read

[10] Henrique Meirelles, Folha de São Paulo, 03/04/2016. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/henriquemeirelles/2016/04/1756859-questao-capital.shtml

[11] Portal Correio da Cidadania, 02/04/2016. http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11554:2016-04-02-16-38-22&catid=34:manchete

[12] Folha de São Paulo, 10/04/2016. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/04/1759345-governo-ainda-pode-recuperar-confianca-diz-presidente-do-santander.shtml

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